Comida, sensualidade e exibicionismo virtual

Adir Sodré, Cachos de seios [óleo sobre tela, 100 x 80 cm, 1980]
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Comentário sobre o livro “O sensualismo alimentar em Portugal e no Brasil”, de Dante Costa

O sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) costuma encantar os leitores com seu texto fluente, saboroso, literário, onde subverte a ideia de que ensaios sociológicos devem ser pesados, acadêmicos, destituídos de qualquer concessão ao prazer. Casa Grande & Senzala, sua obra mais famosa, é cheia de descrições eróticas, engraçadas, musicais, apaixonadas. Freyre termina seu fabuloso ensaio falando de comida, e quase sentimos o cheiro das tapiocas, dos doces, dos tabuleiros das pretas quituteiras, dos “mocotós, vatapás, mingaus, pamonhas, canjicas, acaçás, abarás, arroz-de-coco, feijão-de-coco, angus, pão-de-ló de arroz, pão-de-ló de milho, rolete de cana, queimados, isto é, rebuçados, etc.”

Toda vez que arrumo as prateleiras e sopeso o alentado volume (uma edição comemorativa dos 80 anos do autor, de 1980, com poemas de Drummond, Bandeira e João Cabral, desenhos de Santa Rosa, Cícero Dias e Poty), releio alguns trechos, fruindo o delicioso estilo do pernambucano.

Há alguns anos ganhei de um amigo um opúsculo editado em 1952 pelo Ministério da Educação e Saúde do Brasil. O título: O sensualismo alimentar em Portugal e no Brasil. O autor, Dante Costa. Confesso que nunca tinha ouvido falar do escritor. Uma pequena pesquisa mostra que escreveu outros títulos relacionados à alimentação, além de livros de viagem e até um O Socialismo.

A tese de Costa é a de que os portugueses têm uma relação de amor com a comida, e os brasileiros, desdém. Lá pelas tantas cita Freyre, claro, mas seu método de pesquisa é baseado na literatura, não em andanças pelos tabuleiros das baianas. Começa por Camões, de onde pinça versos do canto IX dos Lusíadas:

Mil árvores estão ao céu subindo

Como pomos odoríferos e belos:

A laranjeira tem no fruto lindo

A cor que tinha Daphne nos cabelos.

Encontra-se no chão, que está caindo,

A cidreira c’os pesos amarelos;

Os formosos limões, ali cheirando

Estão virgíneas tetas imitando.”

E Camões também fala de “amoras, que o nome tem de amores” entre outras saliências que mostram a forte relação dos portugueses com a comida desde os primórdios da língua. Nosso Dante cita Fialho D’Almeida, Eça de Queiroz (“o caráter de uma raça pode ser deduzido simplesmente do seu método de assar a carne”) e Ramalho Ortigão (“torrentes de ovos de fio brotam de rochedos de nogada, cobertos de chalets de massa, sobre tanques de torrão de Alicante, em que se abeberam pombas de rebuçado e boizinhos de pão-de-ló com chavelhas de açúcar e entranhas de creme.”).

Para ele, escritor brasileiro só fala de fome, não de comida. “A pobreza mutila-lhe muito da alegria. Com as outras, vai-se a alegria de comer”. Segundo Dante Costa, as descrições de jantares e acepipes ”são raras na literatura, porque são raras na vida mediana do povo.” Citando uma conferência de Joaquim Ribeiro, diz que “a fome, no Brasil, começou com a civilização”.

O ensaio foi publicado em 1952. Dante escreveria isso hoje? Se vivesse numa grande cidade brasileira, provavelmente não, a menos que focasse sua análise nas populações mais periféricas. Mas se passeasse pelo sertão nordestino, comprovaria a validade de sua tese. O que não significa que nos rincões mais desprovidos de Portugal a miséria alimentar também não existisse. Afinal, Eça e seus colegas de ofício viviam na cidade, não nos campos. Onde o sexo é só reprodução, não há sensualidade. Onde o ato de comer é somente uma questão de sobrevivência, não há como ser uma refinada fonte de prazer.

Mas o ensaísta se depararia com um fenômeno impressionante, no Brasil contemporâneo: a postagem de fotos de comida nas redes sociais. Significaria uma nova postura do brasileiro em relação à comida? A relação sensual com a alimentação estaria dominada pelo aspecto visual, antes dos outros sentidos?

Depende de que brasileiro estamos falando. Além dos casos clínicos de compulsão ou transtorno alimentar – e existem muitos na internet! –, há um ainda pouco estudado exibicionismo, que não oculta um sentimento de afirmação do nível social através da comida.

Quem era pobre e passou à condição de remediado, ostenta isso através do novo cardápio: “Veja o que eu estou comendo agora!”. A classe média, sempre aspirante ao luxo dos abastados, não perde a chance de, quando pode “comer fora”, ostentar a comilança nas redes. É quase impossível ir a um restaurante em São Paulo e não ver alguém na mesa ao lado fotografando o prato pedido. Desnecessário dizer que os verdadeiramente ricos e os verdadeiramente pobres, por motivos bem diversos, não praticam esse tipo de perversão.

Com a pandemia, este comportamento passou para o ambiente doméstico. Os pratos continuam sendo exibidos ad nauseam, agora com o acréscimo do “eu que fiz”. No entanto, quase sempre se nota o retro gosto de “eu posso”, ou “eu tenho”. Com poucas e honrosas exceções, o que se percebe não é um amor pelo alimento, mas pelo status que este confere ao indivíduo.

Pode-se dizer que a proliferação de programas culinários na TV, aberta ou fechada, na última década, contribuiu para o surgimento dessa nova seita de adoradores de comida. Mas não podemos esquecer o que Dante Costa percebeu, lá na década de 1950: ainda somos um país de famintos, onde esse tipo de exibicionismo não deixa de carregar um incômodo tempero de classe.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis(Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Leonardo Sacramento Ricardo Fabbrini Dênis de Moraes Ronald León Núñez Paulo Fernandes Silveira José Luís Fiori Eduardo Borges Bernardo Ricupero Rubens Pinto Lyra João Carlos Loebens Luciano Nascimento Gilberto Lopes Kátia Gerab Baggio Lorenzo Vitral Marcos Aurélio da Silva Luiz Bernardo Pericás Michel Goulart da Silva Luis Felipe Miguel Rafael R. Ioris José Costa Júnior Antonino Infranca Julian Rodrigues Afrânio Catani André Márcio Neves Soares Antônio Sales Rios Neto Ari Marcelo Solon Paulo Capel Narvai Mário Maestri Leonardo Boff Lincoln Secco Henri Acselrad José Machado Moita Neto Jean Marc Von Der Weid Carlos Tautz Luiz Carlos Bresser-Pereira João Sette Whitaker Ferreira Jean Pierre Chauvin Marcus Ianoni Gabriel Cohn Priscila Figueiredo Marcelo Módolo Claudio Katz Sergio Amadeu da Silveira Luiz Roberto Alves João Feres Júnior Michael Roberts Tadeu Valadares João Carlos Salles Tales Ab'Sáber Mariarosaria Fabris Paulo Martins Elias Jabbour Marjorie C. Marona Fábio Konder Comparato Fernando Nogueira da Costa Daniel Costa Yuri Martins-Fontes André Singer Eleonora Albano Andrés del Río Carla Teixeira Michael Löwy Plínio de Arruda Sampaio Jr. José Geraldo Couto Liszt Vieira Gerson Almeida Dennis Oliveira Boaventura de Sousa Santos Francisco Pereira de Farias Renato Dagnino Anderson Alves Esteves Vladimir Safatle Otaviano Helene Salem Nasser Jorge Luiz Souto Maior Manchetômetro Alysson Leandro Mascaro Daniel Brazil Ricardo Musse Vinício Carrilho Martinez Ronald Rocha Tarso Genro Alexandre de Freitas Barbosa Luiz Werneck Vianna Alexandre de Lima Castro Tranjan Chico Alencar Vanderlei Tenório Armando Boito Bruno Machado Samuel Kilsztajn Benicio Viero Schmidt Matheus Silveira de Souza Lucas Fiaschetti Estevez Érico Andrade Fernão Pessoa Ramos Slavoj Žižek Flávio Aguiar Caio Bugiato Marilena Chauí Bento Prado Jr. Paulo Nogueira Batista Jr Rodrigo de Faria Atilio A. Boron Berenice Bento Thomas Piketty Marcos Silva Luís Fernando Vitagliano Remy José Fontana Andrew Korybko Maria Rita Kehl Sandra Bitencourt Henry Burnett Ricardo Antunes Antonio Martins Daniel Afonso da Silva Flávio R. Kothe Leonardo Avritzer Eugênio Trivinho Francisco Fernandes Ladeira Marcelo Guimarães Lima Eugênio Bucci João Lanari Bo Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Annateresa Fabris Paulo Sérgio Pinheiro Chico Whitaker João Paulo Ayub Fonseca Denilson Cordeiro Celso Favaretto Heraldo Campos Francisco de Oliveira Barros Júnior Leda Maria Paulani Osvaldo Coggiola Juarez Guimarães Ladislau Dowbor Airton Paschoa Ronaldo Tadeu de Souza Ricardo Abramovay José Micaelson Lacerda Morais Milton Pinheiro Alexandre Aragão de Albuquerque Walnice Nogueira Galvão Valerio Arcary Luiz Marques Igor Felippe Santos Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Renato Martins Everaldo de Oliveira Andrade Luiz Eduardo Soares José Raimundo Trindade José Dirceu Eliziário Andrade Marilia Pacheco Fiorillo Eleutério F. S. Prado Manuel Domingos Neto Celso Frederico Jorge Branco Gilberto Maringoni João Adolfo Hansen Anselm Jappe

NOVAS PUBLICAÇÕES