O Alufá Rufino

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Por MARY DEL PRIORE*

Comentário sobre a biografia do malê Rufino José Maria

Há livros definitivos. Esse é um deles. Definitivo pela excelência da pesquisa em arquivos nacionais e internacionais, a perfeição da narrativa a três mãos e uma tese central: no passado, homens negros não foram apenas vítimas. Feitos de carne, osso, moveram-se com habilidade no universo da escravidão, construindo, com independência, trajetórias moldadas pelas condições de vida então existentes.

Seu fio condutor é a biografia espessa, quase total, do malê Rufino José Maria, escravizado num dos mais poderosos estados da região do golfo do Benin: Oyó. Eram os anos 1820. Feito prisioneiro por um grupo étnico diferente do seu, Rufino veio parar na Bahia. Teve início uma aventura que os autores costuram com a precisão e a paciência de que só apaixonados e grandes especialistas são capazes.

Rufino tinha 17 anos e era muçulmano. Começou a trabalhar na botica de um pardo, onde aprendeu a fazer remédios. Seguiu para Porto Alegre, cozinheiro de um homem poderoso, onde freqüentava, junto com forros e escravos, um “clube mina”, onde se aprendia a ler, contar e rezar. O mais importante é que ali se disseminava o Corão. Na mesma época dos levantes malês no Recôncavo, comprou sua liberdade e foi para a maior babel africana nas Américas: o porto do Rio de Janeiro. Ali freqüentou a minoria mina entre a maioria banto. Ali, também, alistou-se como trabalhador do tráfico transatlântico de escravos: começou como cozinheiro. Tinha dinheiro, boa vida e segurança.

Rufino não era santo, nem seria avis rara a bordo dos navios negreiros em que embarcou. Neles, os africanos se empregavam em grande número. Além de trabalhar como marinheiros conheciam as regiões fornecedoras de escravos, serviam como intérpretes e podiam melhor convencer, acalmar, organizar e controlar cativos cujas línguas soubessem falar. Foram anos em que a importação de escravos cresceu em 150%. Na escuna Paula, Rufino palmeou o litoral angolano: Luanda, Novo Redondo, Ambriz, Cabinda…

Na São José, foi aprisionado em Pernambuco, em cujas praias, o tráfico despejava o que chamava de “colonos” ou “diamantes negros”. No Ermelinda, já tinha ascendido na hierarquia do tráfico: cozinhava para mais de 400 pessoas e era “carregador”, ou seja, embarcava cargas para serem vendidas na África: aguardente, caixas de doce e de charuto. Pequeno comerciante transatlântico, foi apresado por um dos navio da Royal Navy que caçavam os chamados “féretros flutuantes” ou “lazaretos marinhos”. Em vinte anos, Rufino passou de escravo doméstico a comerciante poliglota e cosmopolita.

O livro é notável não só pelo relato de vida de Rufino, mas pelo cenário para o qual nos convida a olhar: a África física, seus povos, reinos e territórios coloniais. A descrição minuciosa de cidades como São Paulo de Luanda ou Freetown. O interior das embarcações, com a exposição fina de seu funcionamento: a despensa, os tripulantes de origem diversa, as doenças que grassavam, os salários rigorosos e pagos sem discriminação de cor, as mercadorias que transportavam, pois eram considerados verdadeiros mercados ambulantes oferecendo rolos de fumo, caixas de açúcar, barris de cachaça, sacos de arroz ou de farinha de mandioca. Quem eram os patrões. A organização das empresas e a luta entre traficantes. O papel de filantropos como o inglês Granville Sharp que abraçou a causa da abolição ou do Equipment Act de 1839, no combate ao tráfico.

A aventura continua do mar para a terra firme, pois, de volta ao Brasil, Rufino vai dedicar-se a lecionar o Corão para “africanos sectários de Maomé”. O célebre alufá, curandeiro, adivinho, padre e mestre-escola, ensinava em casa, usos e costumes maometanos, revelando a presença de grupos religiosos de diferente orientação islâmica numa cosmopolita Recife, em 1835.

Em narrativa apaixonante, o livro percorre os anos de formação do jovem escravo, as circunstâncias de sua ascensão como comerciante e finalmente, seu engajamento ou comprometimento com a religião de seus ancestrais. Mas para interligar Rufino ao seu mundo, o livro convida a considerar a escravidão de forma mais aguda: até o século XVIII na Europa e até o XIX, no resto do mundo, a escravidão, com suas mil variantes, era a forma mais comum de organização de trabalho, o fundamento de toda a economia. Ela era a norma, não a exceção. E desta engrenagem, como qualquer homem de seu tempo, Rufino fez parte. Diferentes matrizes de informações e documentos se entrecruzam, se sobrepõem, se esclarecem e completam a obra que é um mosaico. À sua sombra toda uma época revive, com suas tensões, violências e instabilidade crônica.

O rosto que, todavia, emerge desta composição é o de um homem que teve o discernimento das situações que o cercavam e que fez história. E surge a pergunta que não quer calar: com tantas idas à África e negro livre, por que não voltou à terra natal? Pois lá grassava o permanente perigo de reescravização. Já no Brasil, tinha liberdade, bens, família, discípulos e clientes. A errância conduziu Rufino ao enraizamento.

Entre Brasil e África, a procissão fúnebre dos navios negreiros não deixou quase marcas. Sua rota é abafada pelo silêncio como se tais grandes embarcações viessem de outras águas que não as de nossa história. O horror que emana de seu convés é mudo. Como mudos ficaram os infelizes enviados para o fundo do mar, correntes nos pés. Sinais? Algumas rugas na superfície da água, o mau cheiro varrido pelo vento. Essa epopéia de dor paira sobre uma paisagem esmaecida. O tráfico negreiro é o grande silêncio da história.

Se abordar a complexidade de tantos assuntos referidos à África intimida, aqui, pelo contrário, os autores celebram um feliz casamento entre a reflexão histórica e a biografia que se lê como um romance. O texto possui a genialidade dos contadores de história, dos apkalô africanos. Nenhuma novidade, aliás, para os três historiadores com obras consagradas e de reconhecimento internacional.

O Ocidente se indigna hoje de ter cometido esse pecado supremo contra a humanidade. Mas essa culpabilidade evidente não nos permite fechar os olhos para outra verdade, igualmente cruel: o tráfico não foi um seu apanágio. Várias culturas ou “civilizações” o praticaram, inclusive negros e árabes. A Mauritânia, por exemplo, só aboliu escravidão em 1980. O aporte do Ocidente foi contudo, duplo: por meio de meios técnicos ele promoveu e sofisticou o tráfico. Mas, também, veio do Ocidente a condenação, abjeção e denúncia do vil comércio, sobretudo em função de espíritos corajosos, notadamente protestantes e ingleses.

A trajetória de Rufino faz pensar que não se deve buscar o Monstro no outro, antes de descobri-lo em nós mesmos. Pois ele se esconde lá, onde a história faz silêncio. Provocá-la e ouvi-la falar é fundamental para deixarmos para trás noções de “vitimização” que mais silenciam a vida dos afro-descendentes no Brasil e alimentam o tão detestável “racismo”. Raras são as obras capazes de animar e perceber nuances em categorias tradicionalmente fixas como “o escravo”.

Pois nessa, o leitor há de encontrar abundância de informações necessárias para entender tais personagens, não como indivíduos homogêneos, trazidos de algo abstrato e distante – a África. Mas gente de carne e osso, com pertença a específicos grupos culturais – e eles foram milhares no continente – com seus utensílios de diferenciação capazes de dar-lhes uma identidade, inseridos num sistema econômico, e capazes, como qualquer um de nós, do melhor e do pior. “O alufá Rufino” é um marco numa historiografia sem fronteiras.

*Mary Del Priore é historiadora e autora de Ao sul do corpo: Condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil colônia(Unesp).

Publicado originalmente no Jornal de Resenhas, no. 11, março de 2011.

Referência


João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus J. M. de Carvalho. O Alufá Rufino. Tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c.1822 – c.1853). São Paulo, Companhia das Letras, 482 págs,

 

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