Por IURY TAVARES*
A dessensibilização do povo brasileiro para a gravidade do coronavírus é a grande realização de Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde
Barracas coladas na areia, toalhas lado a lado, altinho no espelho d’água. Batucada na mesa do bar, outro chope ao som de um samba antigo, bem ali na rua bloqueada pela multidão. Resenha no sábado à tarde, mas o churrasco é fechado com família e amigos.
A oficialização de mais um militar da ativa no Planalto foi o grato reconhecimento pela sua contribuição na pior crise sanitária da história do Brasil. A dessensibilização do povo brasileiro para a gravidade do coronavírus é a grande realização de Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde. O trabalho foi reconhecido pelo chefe que, na meritocracia neoliberal, o efetivou após período-teste.
Quando anunciado como interino, em maio, Pazuello encontrou um país que mal sabia o que teria pela frente sob o ainda modesto registro de 14.817 mortes por Covid-19. Quatro dias depois, Bolsonaro o classificou como “um gestor de primeira linha” e disse que “está fazendo um excepcional trabalho lá”[i]. Talvez, as lentes pelas quais o Presidente via Pazuello estivessem contaminadas com o otimismo gerencial do general que, no final de abril, afirmou que a prevenção do coronavírus “Está sendo mais fácil para nós do que para quem começou”[ii]. Aliás, sua capacidade de planejamento-logística é seu cartão de visita e trunfo argumentativo dos defensores do governo. Vale lembrar a declaração de um general colega de turma: “Se a parte de gestão e logística no Ministério da Saúde estiver enrolada, o Pazuello vai resolver”[iii].
Passado o estágio probatório do bolsonarismo ressabiado pelas contestações de antigos amores, Pazuello rezou a cartilha do comandante. Ele sabia que teria de ser cúmplice nos devaneios irresponsáveis do chefe sob o risco de ser queimado como foram Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Imposição do juramento de profissão, o compromisso ético com a vida traçou uma linha que os antecessores não cruzaram, mas é potencialmente a falta desse comprometimento que permitiu a Pazuello chegar até onde outros não ousaram ir.
A falsa retórica de um governo técnico estava demonstrada desde o início pelo “posto Ipiranga”, que nunca sequer havia trabalhado no setor público ou no meio político, e atingiu um novo patamar com Pazuello, sem formação ou experiência em Saúde, responsável pelo ministério que trataria de uma pandemia. Os possíveis efeitos trágicos do desconhecimento da área poderiam ser atenuados se uma equipe de especialistas o auxiliasse. Em direção contrária, na chegada Pazuello demitiu quadros técnicos e nomeou militares igualmente desconectados com o setor. Sua mais recente indicação foi de um veterinário para o departamento de imunizações e doenças transmissíveis, entre elas, a Covid-19[iv].
O governo da destruição avança para arruinar, mesmo que por vezes pelas regras, os pilares de sustentação do Estado brasileiro de dentro das instituições. O desmonte do corpo técnico do Ministério da Saúde enfraquece um serviço público já precarizado, mas que se mostrou fundamental no atendimento aos mais vulneráveis durante a pandemia. Dos recursos autorizados pelo Congresso Nacional para o combate ao coronavírus, a pasta havia usado, até julho, apenas 29%. Se, por um lado, há o loteamento de cargos por militares em detrimento de especialistas, por outro, o governo estrangula o financiamento diante da evidente falta de equipamentos, funcionários e campanhas de conscientização. A ação prática no período foi a omissão das estatísticas referentes aos números de mortos e de casos, agredindo à transparência pública e negando aos cidadãos o direito ao acesso à situação real do país.
Uma das razões de embate entre Bolsonaro e seus ex-ministros, a cloroquina foi liberada para pacientes leves tão logo Pazuello assumiu como interino, em discordância com estudos científicos que não apontam, até hoje, qualquer eficácia do medicamento. O uso indevido, este sim, pode ter consequências fatais. O desserviço e desinformação são ainda mais graves quando referendados pelo próprio Conselho Federal de Medicina que, refugiado em uma malandragem semântica, autorizou (mas não recomendou) a substância, após audiência com o Presidente. Com o laissez-passer, toneladas de cloroquina foram adquiridas com dinheiro público e milhares de comprimidos distribuídos na rede pública, inclusive para indígenas.
Desejos presidenciais atendidos, o pronunciamento de posse do novo ministro revela que o objetivo do governo é normalizar as mortes e o contato com a doença: “O que será o novo normal? Novos hábitos, mais atenção a medidas de profilaxia e higiene, condutas de tratamento médico e precoce, naturalidade em conviver com a doença, assim como outras do nosso cotidiano.”. E emendou: “Por isso, temos falado dia após dia, ‘não fique em casa’, receba o diagnóstico clínico do médico. Receba o tratamento precoce.”[v].
Logo, vê-se que a política de governo passa pelo incentivo à retomada da vida tal qual pré-pandemia sem nenhuma sinalização de mudança da ação pública. Se, nos meses iniciais, quando a estado de alerta era maior, não houve campanhas de conscientização ou coordenação nacional da crise, qual a garantia de que haverá alguma mudança que permita à população acreditar que pode retomar suas atividades em segurança? Não há testagem em massa, distribuição de máscaras ou reforço do estoque de insumos hospitalares. O esforço está na normatização da doença e de suas consequências. A lógica se insere em uma estratégia de absolvição do governo, que nada fez, visto que a circulação contínua do vírus é inevitável e, portanto, qualquer medida restritiva não só é ineficaz como prejudicial ao desenvolvimento do país. Nesse sentido, a dessensibilização para a morte é fundamental, mas não é novidade, vide que as milhares de vidas ceifadas nas periferias todos os anos não provocam revolta minimamente equivalente a um “desejo de paz” da sociedade.
O sadismo da situação é tão chocante quanto claro. O Presidente submete o país às práticas de tortura que sempre elogiou e defendeu: quando o torturado parece entorpecido, o torturador sempre pode satisfazer sua crueldade com mais um aperto para mostrar que detém o poder de infligir nova dose de dor ao preso. Ao laurear Pazuello com a titularidade no cargo quando o Brasil ultrapassa 133 mil mortes por Covid-19, o capitão tortura o brasileiro. O país tem o maior coeficiente de mortalidade por Covid-19 no G20[vi] e, enquanto cada vez mais famílias desesperançadas enterram seus parentes, o “gestor de primeira linha” respira o orgulho da promoção a plenos pulmões.
O descaso e a desimportância para com a vida são rigorosamente política de Estado durante a pandemia, mas oportunamente cessam frente ao moralismo bolsonarista, personificado por Damares Alves. Na fatídica reunião ministerial, a ministra alertou o recém-chegado Teich que “O seu ministério está lotado de feministas com pauta única de liberação do aborto”[vii]. A espetacularização reacionária do caso de interrupção da gravidez de uma menina de dez anos, estuprada pelo tio desde seis anos, deve ter calado fundo em Pazuello. Portaria assinada pelo ministro obriga a equipe médica a informar à polícia sobre a paciente violentada, além de lhe oferecer ver o feto em uma ultrassonografia. Nada consta sobre a segurança da sua condição física e psicológica ou garantia de preservação de sua identidade após um crime traumático. Energizado por um conservadorismo chucro, o general formaliza práticas coercitivas e intimidatórias contra vítimas fragilizadas por violência sexual.
Se um administrador e formulador de políticas públicas é avaliado pelo impacto de seus projetos no conjunto da sociedade, os quatro meses de interinidade de Eduardo Pazuello deixam claro que pretos, pobres, e idosos (perfil majoritário nas mortes por Covid-19) e meninas e mulheres (vítimas de abuso sexual) não são prioridades do Ministério da Saúde no governo Bolsonaro.
*Iury Tavares é mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa.
Notas
[i] https://oglobo.globo.com/sociedade/governo-oficializa-general-pazuello-como-ministro-interino-da-saude-1-24459898
[ii] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/27/secretario-executivo-ministerio-da-saude-eduardo-pazuello-coletiva.htm
[iii] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/15/saiba-quem-e-general-pazuello-o-novo-ministro-interino-da-saude.htm
[iv] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/08/pazuello-nomeia-veterinario-para-cargo-estrategico-no-debate-da-vacinacao-contra-covid-19.shtml
[v] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/09/16/apos-4-meses-como-interino-general-pazuello-assume-ministerio-da-saude.htm
[vi] https://exame.com/brasil/brasil-ja-e-o-pais-do-g20-com-mais-casos-de-covid-19-por-milhao/
[vii] https://www.youtube.com/watch?v=LZrXaluSGL8