Do beco da Vila Rica

Imagem: Antonio Lizárraga
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por CONRADO RAMOS*

Comentário sobre o livro de Cora Coralina

Em Do Beco da Vila Rica – publicado em 1965 –, da Aninha feia da ponte da Lapa, a Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, a nossa Cora Coralina – nome prenhe de poesia -, a história dos vencidos encontra um lugar: “A estória da Vila Rica / é a da cidade mal contada, / em regras mal traçadas. / Vem do século dezoito, / vai para o ano dois mil.”

“Vila Rica não é sonho, inventação, / imaginária, retórica, abstrata, convencional.” Mas tem seu materialismo alegórico. “É real, positiva, concreta e simbólica. / Involuída, estática. / Conservada, conservadora. / E catinguda.” (CORALINA, C. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Círculo do Livro, 1990, p. 66).

Neste lugar a presença irrecalcável da morte é diária e indiferente e é com ela que entramos no Beco, já nos primeiros versos do poema, como quem sai das zonas de proteção do Estado: “No Beco da Vila Rica / tem sempre uma galinha morta. / Preta, amarela, pintada ou carijó. / Que importa? / Tem sempre uma galinha morta, de verdade. / Espetacular, fedorenta. / Apodrecendo ao deus-dará.” No Beco da Vila Rica a história de abandono tem longa duração e nenhuma esperança. Nele, a necropolítica se camufla de segunda natureza, como um hábito diário que a morte tem de morrer; morte que o Beco herdou como tradição, como monumento, sem que ninguém mais ali pensasse no Beco sem ela: “No Beco da Vila Rica, / ontem, hoje, amanhã, / no século que vem, / no milênio que vai chegar, / terá sempre uma galinha morta, de verdade. / Escandalosa, malcheirosa. / Às vezes, subsidiariamente, também tem / – um gato morto.” (p. 65). Nos becos do mundo a morte compõe a paisagem ordinária. Paisagem subsidiária do progresso e da ordem desse mundo.

A cadeia de acontecimentos que o Angelus Novus vê como uma catástrofe que acumula ruínas dispersas a nossos pés aparece, ao feitio de Coralina, na forma que os destroços aglomerados ganham nos becos, como monturos: “No Beco da Vila Rica tem / velhos monturos, / coletivos, consolidados, / onde crescem boninas perfumadas.” (p. 65). Mas não nos deixemos enganar pela poesia das boninas, pois lá elas estão não como a flor de Drummond, que nasceu na rua, furando o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. As boninas dos monturos de nosso Beco é a teimosia ruderal da miséria lumpensinata; a vida que insiste em sua pouquidão agreste e inculta, espalhando-se, sempre emigrada, entre tédios, nojos e ódios; as sobrevivências refugiadas de várias cores que se agarram aos cantos e vielas do mundo (quantos becos nos êxodos das lentes de Salgado!…): “E a ervinha anônima, / sempre a mesma, / estendendo seu tapete / por toda a Vila Rica. / Coisinha rasteirinha, sem valia. / Pisada, cativa, maltratada. / Vigorosa. / Casco de burro de lenha. / Pisadas de quem sobe e desce. / Daninheza de menino vadio / nunca dão atraso a fedegoso, / federação, manjiroba, caruru-de-espinho, / guanxuma, são-caetano. / Resistência vegetal… Plantas que vieram donde? / Do princípio de todos os princípios. / Nascem à toa. Vingam conviventes. / Enfloram, sem amparo nem reparo de ninguém. / E só morrem depois de cumprida a obrigação: / amadurecer… sementear, / garantir sobrevivência. / E flores… migalhas de pétalas, de cores. / Amarelas, brancas, roxas, solferinas. / Umas tais de andaca… boninas… / Flor de brinquedo de menina antiga. / Flor de beco, flor de pouco-caso. / Vagabundas, desprezadas.” (p. 68-9). Flores sem fronteiras e destinos, aos mil-milhares, prófugas e redivivas.

As mais duradouras heranças das classes dominantes desaparecem das paisagens burguesas e vão parar nos escondidos das passagens às portas e portões dos fundos do capitalismo: “Monturo: / Espólio da economia da cidade. / Badulaques: / Sapatos velhos. Velhas bacias. / Velhos potes, panelas, balaios, gamelas, / e outras furadas serventias / vêm dar ali.” (p. 66). Todas as espécies de inutilezas – não aquelas de Manoel de Barros, que ganham prestanças poéticas – vivas ou não, acidentais ou impostas, vão dar nos becos.

Também no monturo do nosso Beco o duradouro casamento entre o legado do consumismo e a violência ambiental: “Não há nada que dure mais do que um sapato velho / jogado fora. / Fica sempre carcomido, / ressecado, embodocado, / saliente por cima dos monturos. / Quanto tempo! / Que de chuva, que de sol, / que de esforço, constante, invisível, / material, atuante, / silencioso, dia e noite, / precisará um calçado, no lixo, / para se decompor absolutamente, / se desintegrar quimicamente / em transformações de humo criador?…” (p. 67). É genial o recurso do excesso de vírgulas de modo a ritmar a respiração da temporalidade lenta. Nos becos do mundo um magma de vírgulas e reticências se solidificam sobre as potencialidades históricas (transformações do humo criador).

“Às vezes, um vadio, / malvado ou caridoso, / põe fogo no monturo. / Fogo vagaroso, rastejante. / Marcado pela fumaceira conhecida. / Fumaça de monturo: / Agressiva. Ardida. / Cheiro de alergia. / Nervosia, dor de cabeça. / Enjoo de estômago. / Monturo: / tem coisa impossível de queimar, / vai ardendo devagar, / no resto da cinza, na mortalha da fumaça.” (p. 67). O Beco da Vila Rica também tem seus holocaustos: catingudo, fedorento, malcheiroso – ainda que ali vinguem boninas perfumadas -, a fumaça dos monturos é fumaceira conhecida. A periferia do capitalismo cheira a fumaça: fumaça de lixo, fumaça de fábrica, fumaça de floresta, fumaça de queimada, fumaça de incêndio, fumaça de guerra, fumaça de morte, fumaça. É das nuvens do gás da pobreza que o Angelus Novus tenta acordar os mortos e juntar os fragmentos. A vida defumada dos becos agarra de mal-estares o corpo: o que do sistema encontra rejeições, ganha vapores nauseabundos. É pela fumaça que os becos entram nos corpos.

Também para os monturos do Beco da Vila Rica vão os patriarcas falidos que ao sistema não servem mais: “Monturo… / Faz lembrar a Bíblia: / Jó, raspando suas úlceras. / Jó, ouvindo a exortação dos amigos. / Jó, clamando e reclamando de seu Deus. / As mulheres de Jó, / As filhas de Jó, / gandaiam coisinhas, pobrezas, / nos monturos do beco da Vila Rica.” (p. 67). (No capitalismo tomado como religião, que o nome do pai continue a ser louvado.) Os monturos dos becos, para as cidades interioranas, equivalem aos debaixos das pontes das grandes capitais: locus da exclusão máxima do laço social a ocupar nossos fantasmas burgueses e que assombrou também a tradicional família da menina-poeta: “Eu era menina pobrezinha, / como tantas do meu tempo. / Me enfeitava de colares, / de grinaldas, / de pulseiras, / das boninas dos monturos.” (p. 67-8).

De costas para o Beco, os muros e portões mimetizam a aristocracia, a fragilidade política de sua existência ultrapassada e suas salvaguardas institucionais historicamente engessadas: “Velhos portões fechados. / Muros sem regra, sem prumo nem aprumo. / (Reentra, salienta, cai, não cai, / entorta, endireita, / embarriga, reboja, corcoveia… / Cai não. / Tem sapatas de pedras garantindo.)” (p. 66).

Muros e portões a fazerem a austera e avarenta fronteira entre o desamparo do Beco e a sempiterna propriedade privada: “Vivem perrengando / de velhas velhices crônicas. / Pertencem a velhas donas / que não se esquecem de os retalhar / de vez em quando. / E esconjuram quando se fala / em vender o fundo do quintal, / fazer casa nova, melhorar. / E quando as velhas donas morrem centenárias / os descendentes também já são velhinhos. / Herdeiros da tradição / – muros retalhados. Portões fechados.” (p. 66).

Tal qual com os monturos, o desdém adorna os muros: “Na velhice dos muros de Goiás / o tempo planta avencas.” (p. 66).

Mas o olhar atento da poeta-menina revela que as elites têm medo dos becos: “Vila Rica da minha infância, / do fundo dos quintais… / Sentinelas imutáveis dos becos, os portões. / Rígidos. Velhíssimos. Carunchados. / Trancados à chave. / Escorados por dentro. / Chavões enormes (turistas morrem por elas). / Fechaduras de broca, pesadas, quadradas. / Lingueta desconforme, desusada. / Portões que se abriam, / antigamente, / em tardes de folga, / com licença dos mais velhos.” (p. 68).

Mas nosso Beco já teve seu momento romântico para as famílias de renome antes do fechamento dos portões: “Aonde a gente ia – combinada com a vizinha, / conversar, espairecer… passar a tarde… / Tarde divertida, de primeiro, em Goiás, / passada no Beco da Vila Rica, / – a dos monturos bíblicos. / Dos portões fechados. / Dos mosquitos mil. Muriçocas. Borrachudos. / E o lixo pobre da cidade, / extravasando dos quintais. / E aquela cheiração ardida.” (p. 68). E já foi rota de escondidas coisas de diferentes classes, como “Dos escravos de sunga de tear, camisa de baeta, / pulando o muro dos quintais, / correndo pra o jeguedê e o batuque.” (p. 65); como das visitas de sinhazinhas: “Estas e outras visitas se faziam / passando pelo portão. / Andar pelas ruas. Atravessar pontes e largos, / as moças daquele tempo eram acanhadas. / Tinham vergonha de ser vistas de ‘todo o mundo’…” (p. 71). As praças, os largos, as feiras e avenidas, lugares de palcos, palanques, púlpitos, tribunas, altares e publicidades mal sabem que é pelos becos que circulam as verdades da cidade: “Becos da minha terra… / Válvulas coronárias da minha velha cidade.” (p. 69). A geografia dos conluios, ardis e conchavos, o mapa das confidências, armadilhas e traições, o labirinto das intimidades, discrições e tocaias, tudo o que a história dos vencedores oculta, renega, silencia, incorpora o mosaico dos becos: “Dar lembrança, dar recado. / Visitas com aviso prévio. / Mulheres entrarem pelo portão. / Saírem pelo portão. / Darem voltas, passarem por detrás. / Evitarem as ruas do centro, / serem vistas de todo o mundo.” (p. 72).

O mais importante, no entanto, é reconhecer que, enquanto a praça pública acolhe o cortejo de vencedores, pelo chão dos becos escorrem os horrores impostos a gerações de derrotados: “Além do mais, Vila Rica tem um cano horroroso. / Começa no começo. / Abre sua boca de lobo / e vai até o rio Vermelho. / Coitado do rio Vermelho!… / O cano é um prodígio de sabedoria, / engenharia, urbanismo colonial, / do tempo do ouro. / Conservado e confirmado. / Utilíssimo ainda hoje. / Recebe e transfere. / Às vezes caem lajes da coberta. / A gente corre os olhos sem querer. / Meninos debruçam para ver melhor / o que há lá dentro. / É horroroso o cano do seu arrastar de espurcícias, / vagaroso.” (p. 69). Herança do colonialismo, conservada e confirmada, utilíssima ainda hoje, pelos canos que atravessam a América Latina, como veias abertas de Galeano, ainda correm os horrores genocidas, racistas, machistas, LGBTfóbicos. O espurco da civilização insiste em romper o esgoto ideológico feito para encobri-lo – o cano é um prodígio de sabedoria. E por vezes ele vence lajes, irrompe vulcânico à flor do dia.

Mas eis que bradam dos céus torrentes censuradoras, chega rapidamente a enxurrada dos biopoderes higienizantes e os dilúvios eugênicos a garantir que o proletariado siga existindo livre como os pássaros: “Deus afinal se amerceia de Vila Rica / e um dia manda chuvas. / Chuvas pesadas, grossas, poderosas. / Dilúvio delas. Chuvas goianas. // A enxurrada da Rua da Abadia lava o cano. / O fiscal manda repor as lajes. / E a vida da cidade continua, / tão tranquila, sem transtornos.”

Diz Benjamin na segunda tese sobre o conceito de história que o passado traz consigo um índice misterioso que o impele à redenção. E diz também que nos foi concedida uma frágil força messiânica à qual o passado dirige um apelo. E diz ainda, na tese quatro, que, graças a um misterioso heliotropismo, o passado tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. No nosso Beco, por mistérios alquímicos, a história vira ouro. E são poucos os que, do apelo poético dos becos do mundo, sabem ouvir os brilhos: “Diz a crônica viva de Vila Boa / que, debaixo do cano da Vila Rica, / passa um filão de ouro. / Vem da Rua Monsenhor Azevedo. / Rico filão. Grosso filão. / Veia pura, confirmada. / Atravessa o beco – daí o nome de Vila Rica. / E vai engolido pelo rio Vermelho.“ (p. 69-70).

É dos subsolos dos becos do mundo, dos chãos que sustentam, acolhem e engolem os vencidos, do que neles se recolhe e condensa, que podemos extrair o precioso metal do qual faremos as ferramentas da transformação.

Pelos becos de Cora Coralina, pelos becos de Goiás, “Beco do Cisco. / Beco do Cotovelo. / Beco do Antônio Gomes. / Beco das Taquaras. / Beco do Seminário. / Bequinho da Escola. / Beco do Ouro Fino. / Beco da Cacheira Grande. / Beco da Calabrote. / Beco do Mingu. / Beco da Vila Rica…” (p. 62), flanaria Walter Benjamin com seu olhar de constelar a história e de buscar a totalidade no particular. Mas foi a menina feia da ponte da Lapa quem o fez.

*Conrado Ramos é psicanalista e poeta, pós-doutor pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC-SP.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Eugênio Bucci Priscila Figueiredo Mário Maestri Luciano Nascimento José Luís Fiori André Márcio Neves Soares Renato Dagnino Fábio Konder Comparato Tarso Genro Leonardo Avritzer Marilena Chauí Boaventura de Sousa Santos Tales Ab'Sáber Denilson Cordeiro Milton Pinheiro Ricardo Antunes João Feres Júnior Antonio Martins Paulo Nogueira Batista Jr Claudio Katz Ari Marcelo Solon Slavoj Žižek Marcos Silva Antônio Sales Rios Neto Daniel Brazil Andrew Korybko Salem Nasser Fernando Nogueira da Costa Sandra Bitencourt Luiz Werneck Vianna Marcelo Guimarães Lima José Dirceu João Carlos Loebens Liszt Vieira Carla Teixeira Leonardo Boff Ronaldo Tadeu de Souza Gilberto Lopes Andrés del Río Jorge Branco Vinício Carrilho Martinez Vladimir Safatle Manchetômetro Manuel Domingos Neto Henri Acselrad Flávio R. Kothe Thomas Piketty Eliziário Andrade Eleonora Albano Celso Frederico Elias Jabbour Eugênio Trivinho Gerson Almeida Plínio de Arruda Sampaio Jr. Lincoln Secco Benicio Viero Schmidt Luiz Marques José Machado Moita Neto Bernardo Ricupero Igor Felippe Santos Juarez Guimarães Daniel Costa Alexandre Aragão de Albuquerque Valerio Arcary José Costa Júnior Eleutério F. S. Prado João Paulo Ayub Fonseca Marcus Ianoni Anderson Alves Esteves Ricardo Musse Dennis Oliveira Gabriel Cohn José Raimundo Trindade Everaldo de Oliveira Andrade Jean Marc Von Der Weid Walnice Nogueira Galvão João Adolfo Hansen Maria Rita Kehl José Micaelson Lacerda Morais Antonino Infranca Gilberto Maringoni Ronald Rocha Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Otaviano Helene Mariarosaria Fabris Dênis de Moraes Marcelo Módolo Michel Goulart da Silva Chico Alencar Jorge Luiz Souto Maior Luiz Carlos Bresser-Pereira Armando Boito Fernão Pessoa Ramos Rubens Pinto Lyra Érico Andrade Alexandre de Freitas Barbosa Chico Whitaker Eduardo Borges Marjorie C. Marona Bento Prado Jr. Rodrigo de Faria Heraldo Campos Ladislau Dowbor Yuri Martins-Fontes Samuel Kilsztajn Ronald León Núñez João Sette Whitaker Ferreira João Carlos Salles Francisco Pereira de Farias Tadeu Valadares Paulo Sérgio Pinheiro Marcos Aurélio da Silva Airton Paschoa Leda Maria Paulani Francisco Fernandes Ladeira Atilio A. Boron Michael Löwy Remy José Fontana Celso Favaretto Vanderlei Tenório Luís Fernando Vitagliano Sergio Amadeu da Silveira Luiz Eduardo Soares Matheus Silveira de Souza Luiz Roberto Alves Flávio Aguiar Anselm Jappe Berenice Bento André Singer Osvaldo Coggiola Henry Burnett Lorenzo Vitral Annateresa Fabris Lucas Fiaschetti Estevez Alexandre de Lima Castro Tranjan Kátia Gerab Baggio José Geraldo Couto Alysson Leandro Mascaro Leonardo Sacramento Marilia Pacheco Fiorillo Bruno Fabricio Alcebino da Silva Michael Roberts Francisco de Oliveira Barros Júnior Rafael R. Ioris Caio Bugiato Julian Rodrigues Jean Pierre Chauvin Ricardo Abramovay Luis Felipe Miguel Afrânio Catani Ricardo Fabbrini Paulo Martins João Lanari Bo Carlos Tautz Paulo Fernandes Silveira Luiz Renato Martins Paulo Capel Narvai Daniel Afonso da Silva Bruno Machado Luiz Bernardo Pericás

NOVAS PUBLICAÇÕES