Os sabujos da imprensa

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Por JOÃO FERES JÚNIOR*

Ignorar o papel que a imprensa teve na corrosão das instituições democráticas brasileiras é assombroso

Gabriela Prioli, o mais novo fenômeno de popularidade do jornalismo brasileiro, publicou recentemente vídeo em seu Instagram criticando Bolsonaro pela ameaça proferida contra jornalista de O Globo que perguntou ao presidente sobre os cheques depositados por Queiroz na conta de sua esposa.[i]

Prioli, que ganhou notoriedade no canal de notícias da TV a cabo CNN, primeiramente como participante do quadro “O Grande Debate”, no qual representava a opinião de “esquerda”, em seu vídeo do Insta, estende a crítica à atitude geral do presidente de ataque à mídia corporativa. No tom didático quase paternalista que caracteriza suas intervenções, estilo “deixa-eu-explicar-pra-vocês-que-são-mais-burros”, a advogada questiona a afirmação de que a imprensa persegue Bolsonaro e coloca a seguinte questão para sua audiência: “Será que a imprensa fala essas coisas ruins para a imagem só do presidente Jair Bolsonaro, ou será que a imprensa divulgou também coisas que eram prejudiciais a governantes nos governos anteriores? Vamo ver (sic)”.

Então, a causídica passa a “dar print na tela” de imagens de jornais para provar seu ponto. São elas:

(1) Página inteira de O Globo com uma notícia com título em letras garrafais: “Uma organização criminosa de 40 réus”. Acima do título vão três fotografias de Delúbio Soares, José Dirceu e José Genoíno.

(2) Manchete da Folha de S. Paulo: “Não há dúvida que PT comprou votos, diz relator” – repetindo declaração do Ministro Joaquim Barbosa sobre a Ação Penal 470.

(3) Manchete de O Globo: “Denúncias de compra de votos levam governo Lula à pior crise”. Abaixo vai foto de Lula sorrindo ao lado de Ronaldo Fenômeno.

(4) Matéria de página inteira de O Globo com o título: “Dez anos de propina do PT”.

(5) Capa da revista Veja com montagem fotográfica mostrando Lula vestido como presidiário.

(6) Capa da revista Veja com foto de Lula e o título “A vez dele” e subtítulo dizendo que o delator Leo Pinheiro iria contar ao Ministério Público tudo que sabe sobre a participação de Lula no Petrolão e “como o filho Lulinha ficou milionário”.

(7) Manchete da Folha: “Delator diz ter repassado R$ 2 mi para nora de Lula”.

(8) Matéria de O Globo com título em letras garrafais: “Lava-Jato bate à porta de Lula”.

(9) Manchete do Estadão: “Lava Jato liga compra de sítio a repasses de teles a filho de Lula”.

(10) Manchete da Folha: “Lava Jato liga filho de Lula a compra do sítio de Atibaia”.

(11) Capa da Veja com o título: “Lula comandava o esquema”.

Essas são todas as matérias mostradas por Prioli com o intuito de provar com evidências materiais a velha tese do cão de guarda, isto é, que a imprensa cumpre o papel de vigiar e criticar os poderosos, salvaguardando assim o interesse público. A própria imprensa se atribui tal função por meio de seus manuais de redação, cartas de princípios editoriais e textos ad hoc publicados ao longo dos anos, geralmente na forma de editoriais.

Acaba de sair um estudo de minha autoria intitulado “Cerco midiático: o lugar da esquerda da esfera publicada”,[ii] publicado pela Fundação Friedrich Ebert, no qual, entre outras coisas, mostro o quão falaciosa é essa tese, por meio da análise de dados colhidos ao longo dos anos pelo Manchetômetro.[iii]

Antes de oferecer evidências empíricas que refutam a tese da influencer, contudo, é preciso atentar para as deficiências internas de seu argumento, que pode ser resumido da seguinte maneira: Bolsonaro está errado ao afirmar que a imprensa o persegue – no sentido de lhe ser mais crítica que o usual – porque a imprensa na verdade tratou de modo similar os governos anteriores.

Acontece que as 11 matérias que Prioli mostra em seu vídeo são exclusivamente críticas a Lula e ao PT. Contudo, para provar a tese da função cão de guarda em governos anteriores precisaria ter mostrado cobertura negativa de intensidade similar para os presidentes FHC e seu PSDB, e Temer e o MDB. Mas a única coisa que a instagramer de fato revela é uma cobertura de imprensa cáustica recebida pelo PT e por Lula, quando esse ainda era presidente.

Adotemos agora um método de coleta de evidências empíricas um pouco mais sofisticado do que o print de tela de páginas de jornais escolhidas a dedo. A extensa base de dados do Manchetômetro – que contém, devidamente codificados, todos os textos publicados pelos três jornais grandes em suas primeiras páginas e páginas de opinião, de janeiro de 2014 ao presente – oferece uma pletora de evidências contrárias à tese do cão de guarda. Para efeito desse curto artigo, vou selecionar um subconjunto da base de dados bastante ilustrativo que nos permite comparar a cobertura recebida por Dilma e Temer.

Os números que vão acima dizem respeito à análise de valência dos textos nas primeiras páginas e páginas de opinião de O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo.[iv] A primeira coisa a notar é que a curva de matérias contrárias a Dilma fica abaixo a de neutras durante o curto período da campanha eleitoral de 2014. Como já mostramos em outros trabalhos, ao compararmos o perfil de sua cobertura com a dos outros candidatos daquele pleito, constatamos que ela recebeu a mais negativa. Aécio Neves, por exemplo, que fora Governador de Minas Gerais era senador e presidente do PSDB, teve uma cobertura bastante benigna – dado que já começa mostrar as sérias deficiências de nosso cão de guarda.

Entra janeiro de 2015 e Dilma seu total de negativas quase triplicar em relação a outubro de 2014, o último mês da campanha. Dois meses depois ele sofre ainda outra elevação significativa e passa daí em diante a variar em nível altíssimo, atingindo vários picos em torno da marca de 300 negativas por mês. Isso que dizer que nesses meses, Dilma recebia em torno de 10 matérias negativas por dia, em média, o que dá mais de 3 por jornal. Dilma não teve qualquer Lua de Mel por parte da imprensa. Pelo contrário, desde seu primeiro dia de segundo mandato o cão revelava sinais patentes de hidrofobia.

Esse massacre jornalístico dura até maio de 2016, quando Dilma é afastada e sua curva de negativas cai abruptamente, para sofrer ainda um pico em agosto, quando foi votado no senado seu impeachment.

Michel Temer é então conduzido à Presidência da República. Vejamos então o tratamento que recebeu por parte da imprensa.

A primeira coisa a notar é que ao longo de 2015 e início de 2016, enquanto se tecia a trama política da remoção de Dilma, na qual Temer teve papel central, a cobertura recebida pelo experimentado político emedebista foi bastante benevolente.

No mês de sua posse há um pequeno sobressalto de todas as curvas, mas Temer consegue o feito de empatar as curvas de favoráveis, contrárias e neutras, com ligeira vantagem para as últimas. A diferença mais brutal, contudo, em relação ao tratamento recebido por sua antecessora, é a extensão da Lua de Mel de que gozou o presidente. A ciência política estadunidense estima o período da Lua de Mel de um presidente em torno de 100 dias. Nosso compatriota foi muito além. Gozou de uma Lua de Mel de quase um ano. Mesmo se adotarmos um critério mais rígido, considerando o final da Lua de Mel quando suas contrárias superam as neutras, o período é de 150 dias, de maio a novembro de 2016.

Aqui a metáfora do cão de guarda começa a fazer água – todas as metáforas têm seus limites eurísticos –, pois além de ter sido curado da hidrofobia, nosso cão de guarda tornou-se insensível aos vários escândalos de corrupção envolvendo ministros poderosos do Governo Temer e a uma gestão de política econômica incapaz de lidar com a crise que se abatia sobre o país. Ou teria sido uma sequela da hidrofobia a perda de visão e olfato demonstrada durante o Governo Temer? De qualquer maneira, sua suposta função foi seriamente danificada.

Mas eis que o nosso canídeo se levanta do torpor em que estava imerso em junho de 2017, alçando as negativas de Temer para além da marca de 300 textos por mês – coisa que para Dilma era rotina. Este foi o mês do vazamento para a imprensa das gravações entre Temer e Joesley Baptista, que apontam para o envolvimento presidente com corrupção. No entanto, ao seguirmos as curvas da cobertura de Temer após esse pico de negativas constatamos que elas progressivamente se acomodam ao padrão anterior de benignidade, com neutras geralmente superando as contrárias em um grau de ativação bastante baixo. O detalhe revelador dessa triste narrativa é que em meados de 2019 Temer já era réu em seis processos, inclusive por organização criminosa e obstrução de justiça. Assim, o político paulista pode terminar sua gestão tranquilamente, sem ser acossado cachorro da imprensa.

Eu poderia me alongar em exemplos, fundamentados em dados, que mostram quão absurda é a tese esposada por Prioli. Ademais, para quem se apresenta como campeã do pensamento crítico, descontar os males do lavajatismo e ignorar o papel que a imprensa teve na corrosão das instituições democráticas brasileiras é mesmo assombroso. Não tenho elementos para saber se pensava assim antes de aderir à imprensa, ou se passou a defender a tese do cão de guarda depois dessa mudança profissional. Fato é que a imprensa brasileira é exímia produtora de sabujos que lhe lambem as botas sempre quando podem – só para ficarmos no campo das metáforas cínicas.

Ao lançar o curso Manual da Política Racional, a professora de direito se propõe a ensinar seus alunos a debaterem racionalmente a política. Claro que, se a política é uma ciência prática, como nos ensina o filósofo, então uma de suas operações fundamentais é a análise de evidências empíricas. Ora, mas é exatamente nesse quesito que nossa publicista falha fragorosamente em seu vídeo, ao atribuir à mídia corporativa a função de cão de guarda baseada em seleção altamente enviesada de provas.

Alguns colegas da ciência política se opuseram à iniciativa do curso, enxergando-a como uma tentativa de usurpação da competência profissional por uma outsider. Sem entrar na seara dessa discussão, o que constatamos aqui é uma deficiência bem mais basilar de raciocínio daquela que se arroga mestra do argumento político. Imagino o efeito que essa falta de rigor na análise das evidências probatórias pode ter na prática da advocacia criminalista.

*João Feres Júnior é professor de ciência política do IESP-UERJ. É coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) e do Laboratório de Estudos de Mídia e Espaço Público (LEMEP).

 

Notas


[i]https://www.instagram.com/tv/CES3jyuBriR/?utm_source=ig_web_button_share_sheet

[ii]http://www.fes.de/cgi-bin/gbv.cgi?id=16624&ty=pdf

[iii]http://manchetometro.com.br

[iv] A principal metodologia utilizada no Manchetômetro, a Análise de Valências, é empregada em trabalhos acadêmicos no Brasil e no exterior (Feres Júnior, 2016a, Feres Júnior, 2016b). Tal análise busca responder a seguinte pergunta: qual posição o texto expressa em relação ao assunto e aos personagens

nele mencionados? Atribuímos à valência quatro valores: positiva, negativa, neutra e ambivalente. As notícias favoráveis são as que contêm referências predominantemente positivas ao personagem ou tema em questão, sejam elas factuais ou normativas (exemplo: “Programa X diminuiu drasticamente os níveis de desnutrição infantil nos estados da Região Nordeste” ou “Fulano de Tal cumpriu a maioria de suas promessas de campanha”). As contrárias são aquelas que contêm referências predominantemente negativas ao personagem ou tema em questão (exemplo: “Política econômica do governo não detém

inflação” ou “Cicrano não é um ministro confiável”. Quando o texto é mormente descritivo e destituído de conteúdo claramente positivo ou negativo, ele recebe a classificação neutra (exemplo: “Congresso aprova lei Y” ou “Conheça as novas regras do programa Z”). Em caso de equilíbrio entre referências

negativas e positivas, a notícia é classificada como ambivalente (exemplo: “Desemprego cai, mas inflação aumenta”).

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