Por MANUEL DOMINGOS NETO*
Siglas partidárias e regras eleitorais são instrumentos para o exercício de um sistema democrático de fachada, erigido para negar o princípio da soberania popular
Parei de ler análises de tabelas e gráficos mostrando os “resultados” das eleições. Em todas, encontrei inconsistências; nenhuma me respondeu perguntas cruciais. Quantos reacionários foram eleitos por partidos considerados de “esquerda”? Quantos fundamentalistas religiosos e clientelistas à moda antiga se agasalham nestas legendas?
Quantas mulheres obedientes aos maridos e avessas à luta pela defesa do gênero foram eleitas? Quantas pessoas com raiva de sua cor ganharam mandatos? Quantos votaram em troco de telha, botijão de gás, promessa de empreguinho, cargo importante ou perdão de dívidas milionárias? Quantos votaram em pagamento de pacotinhos de cocaína, pedrinhas de crack ou, simplesmente, sossego em seus locais de moradia? Quantos professores doutores votaram sonhando com emendas orçamentárias para seus laboratórios, pouco importando com o naufrágio do país?
Quem garante que pessoas sensíveis às causas populares não obtiveram mandatos usando siglas agrupadas como de “centro-direita” e “centrão”?
Tabelas não mostram os cidadãos que repelem Bolsonaro e admiram Lula votando em partidos que sustentam o governo. Ensejam conclusões tão variadas como os arranjos visuais de um caleidoscópio porque os partidos não refletem os diversificados sentimentos, humores e vontades do povo.
Siglas partidárias e regras eleitorais são instrumentos para o exercício de um sistema democrático de fachada, erigido para negar o princípio da soberania popular, ou seja, negar que o poder emane do povo e em seu nome seja exercido.
Partidos organizados para disputar eleições refletem projetos de elites que disputam a hegemonia. Derivam muitas vezes da vontade e da força de personalidades influentes. Compreendem redes de compadrio, esquemas de dominação localizados e arranjos de oligarquias familiares.
Nas pequenas e médias cidades, onde está a maioria dos eleitores brasileiros, muitos votaram no “amigo” que lhe “protege” ou que pode lhe beneficiar. O mesmo se passa nas periferias das megalópoles brasileiras onde se aglomeram os sem arrimo.
Como argumentou Florestan Fernandes, o sistema representativo consagrado pelas democracias modernas é incompatível com grandes massas desvalidas sobreviventes do domínio colonial. Democracia moldadas em países dominantes não rima com penúria extrema. A representatividade política é falseada pelo clientelismo, prática incompatível com a distinção entre o interesse público e o interesse privado.
Entre as classes médias urbanas, usualmente tidas como mais letradas e “esclarecidas”, o voto corporativo – uma modalidade de clientelismo – escamoteia as propensões políticas. Este, inclusive, foi o voto que garantiu a carreira política de Bolsonaro, assim como a de muitos políticos com histórico sindicalista.
O coronel Pedro Freitas, patriarca de uma família que esteve em posição de mando no Piauí desde a República Velha, me disse que o voto secreto não abalara os domínios eleitorais, havia apenas encarecido as eleições.
A representação das oligarquias familiares não mudou de fato depois da ruptura de 1930, do Estado Novo e da ditadura de 1964. Usei as conversas que mantive com este oligarca para questionar o conceito “coronelismo” formulado por Victor Nunes Leal com base na observação do mundo rural sudestino. Esse clássico disse que o “coronelismo” era o falseamento do voto. Considerei que os “coronéis” eram expressão real do sistema de poder estabelecido.
Repeli a noção de que o “coronelismo” tenha sido uma prática eminentemente rural e de elites “atrasadas”. Havia e há “coronéis” para todos os gostos, eruditos e analfabetos, grosseiros e refinados, riquíssimos e remediados, na cidade e no campo, em todas as regiões brasileiras.
O termo “coronel” virou xingamento político, sendo particularmente empregado para estigmatizar as regiões mais pobres. O poder oligárquico se espalha em todo o país, mas intelectuais sudestinos insistem em caracterizá-lo como nordestino, como fez hoje Fernando Haddad em sua coluna na Folha de São Paulo. Pegou mal para a Ciência Política da USP. Para um potencial candidato a presidente, nem se fale!
Nestas eleições, lembrei muito de Pedro Freitas e Victor Nunes Leal. Os sistemas clientelistas que descreveram não foram arranhados pelas novidades.
Hoje há clientelas consolidadas por representantes sindicais, pastores, milicianos, policiais, militares, empresários agrícolas, ativistas de segmentos sociais estigmatizados… Há mulheres que querem votar em mulheres, negros em negros, gays em gays, jovens em jovens, nordestinos migrados em nordestinos migrados.
Programas que abarcam o conjunto dos impasses da sociedade e do Estado cederam vez para proposições de alcance restrito. Chamo isso de cultura política atrasada.
É verdade que o discurso do ódio nega a política. É chumbo derretido sobre o sonho de um país democrático, justo e soberano.
Mas o clientelismo multifacetário e de bons modos praticado pela direita e pela esquerda também alimenta a onda maluca
*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC. Foi presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e vice-presidente do CNPq