Por GIOVANNI MESQUITA*
O dia em que a elite paulista virou democrata
Dizem que os gaúchos são o único povo que comemoram uma guerra que perdeu. Na realidade o povo gaúcho é o único que comemora uma revolução derrotada. Isso porque o povo paulista comemora uma guerra que também perdeu, com um detalhe: por seu caráter político, era uma contrarrevolução.
No dia 9 de julho de 1932, o presidente Getúlio Vargas foi informado de que São Paulo havia corrido às armas. E o grande mote dos paulistas era: contra a ditadura de Getúlio Vargas, por uma nova constituição. Esse clamor por democracia, que arrebatou os corações e almas de milhares de paulistas, é, se olharmos de perto, bem peculiar. Mas por quê?
Ocorre que São Paulo, desde o período imperial, sempre foi um estado poderoso. Com sua poderosa capital construída, como uma fortaleza, para além da muralha de um país litorâneo. Antes da era Getúlio, São Paulo teve quatro presidentes. Então, num belo dia de 1930, quando o poder lhe saiu das mãos ocorreu entre as elites paulista um surto de sentimento democrático. Vírus desse tipo, que gera súbita transformação, é detectável nos dias de hoje entre as hordas bolsonaristas.
Hoje sabemos como é real a possibilidade de vencer na narrativa o que se perdeu nos campos de batalha, ou nas urnas, para citar um exemplo mais recente. No Rio Grande do Sul houve uma grande mobilização militar para combater aqueles que dormiram saudosos da escravidão e acordaram sedentos de um regime democrático e constitucionalista. Eu conheci uma senhora, gaúcha, que tinha cinco irmãos. Três lutaram em 1932.
No acervo de sua família e pode-se ver seus irmãos fardados, fazendo turismo em São Paulo depois da vitória. Desfilaram nas principais ruas de São Paulo e posaram no monumento Grito do Ipiranga e no Museu Paulista. Deve ter dado uma raiva aos contras recém surrados…
Costumamos achar que a nossa última guerra foi a de 1924, quando libertadores se juntaram as tropas de Prestes para vencer o Chimango. Mas não! Em 1932 sustentamos o governo saído da Revolução de 1930. Demos de relho neles e relho neles e depois salgamos o lombo retalhado.
Desarmados e acanhados, como guris mijados, não lhes sobrou outra alternativa a não ser respeitar o Governo desenvolvimentista de Getúlio. Mas, demonstrando alguma astúcia, reagiram de maneira ardilosa: fundaram a USP. A instituição tinha com missão precípua: pintar em cores dissimuladas a trajetória do movimento fracassado que visava restaurar a ditadura de sua oligarquia e de quebra constituir lideranças que no futuro não se deixassem tundar.
De qualquer forma no campo da propaganda e da revisão histórica os vitoriosos foram eles. Ensinaram manadas de historiadores, paulistas e gaúchos, a pintar o governo Vargas como o mais terrível erro histórico da nossa nação. A coisa pegou tanto que não temos por aqui uma única comemoração da Revolução de 1930, não se faz um reles drinque em sua homenagem. A maioria das pessoas não sabe, nem pergunta por que há uma importante rua chamada 24 de outubro.
Derrotados os paulistas, o ignóbil e bárbaro gaúcho fronteiriço Getúlio Vargas submeteu aquele estado a um castigo terrível: tornou-o o centro da nascente indústria nacional. Fortunas se erigiram sobre o forte apoio financeiro da política do governo federal. Minha avó sempre me dizia “a pior coisa que tem é gente mal-agradecida”. O ódio de classe por aquele que possibilitou a CLT, a carteira de trabalho, o salário mínimo etc. Renova-se anualmente nos 9 de julho. Um pouco de honestidade intelectual dessa elite resultaria em uma estátua do Getúlio de dez metros de altura em plena avenida Paulista.
Eu fico observando as ações do atual governador de São Paulo e fico me perguntando: será que teremos uma nova 32 contra o herdeiro de Getúlio, aquele que de fato derrotou o fascismo no novembro de 2022, 90 anos depois da reação de 32? Quando eu vejo Tarciso de Freitas se esforçando para fascistizar sua polícia, transmutando as escolas em quartel e evangelizando a força funcionários públicos, chego a desconfiar disso. Sabe como é sou gaúcho e nós gaúchos somos desconfiados.
*Giovanni Mesquita é historiador e museólogo. Autor do livro Bento Gonçalves: do nascimento à revolução (Suzano).
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