O espectro da infocracia

Imagem: Max DeRoin
image_pdf

Por LUIZ MARQUES*

As mídias eletrônicas destruíram a cultura livresca do iluminismo, produzindo uma midiocracia que contribuiu para a erosão da esfera pública horizontal

Byung-Chul Han é um sul-coreano que leciona na Universidade de Artes, de Berlim. Ganhou projeção com a publicação de vários ensaios curtos sobre temas contemporâneos. Em Infocracia: digitalização e a crise da democracia, esboça uma descrição do poder sob o regime de informação e processamento de algoritmos com inteligência artificial para controlar a sociedade, a economia e a política. Infokratie é a distopia do “capitalismo de informação que se desenvolve em capitalismo da vigilância e que degrada os seres humanos em gado, em animais de consumo e dados”. Ponto.

Michel Foucault, em Vigiar e punir, estudou o regramento disciplinar sobre os corpos. Interessava-lhe a “biopolítica” voltada à domesticação corporal e somática para adequar as idiossincrasias aos regulamentos. O processo iniciava na isolação espacial até chegar à submissão total. A “sociedade de espetáculo” teatralizou símbolos e cerimônias nas ações de dominação, A “sociedade panóptica” neoliberal ordena dados para direcionar as condutas e o consumo, sem que as pessoas percebam. Na transição, o corpus foi absorvido pela indústria da beleza como objeto da estética e do fitness.

Byung-Chul Han foca nas redes comunicacionais ininterruptas. Em vez do isolamento para reeducar presos, as conexões telemáticas que se transmutam em controle. “Quanto mais geramos dados, quanto mais intensivamente nos comunicamos, mais a vigilância fica eficiente”. O curioso é que os indivíduos não se sentem ou não se importam em ser vigiados, devassados em suas opiniões e em gostos íntimos. Acreditam-se livres. Ilusão. Individualidades não usufruem a liberdade para circular; as informações, sim. Nosso presídio tem a forma da liberdade, da comunicação, da comunidade.

As mídias eletrônicas destruíram a cultura livresca do iluminismo, produzindo uma midiocracia que contribuiu para a erosão da esfera pública horizontal. Com o discurso vertical, eclipsou os cidadãos críticos e, no lugar, pôs os consumidores passivos sem muita iniciativa própria (os “vidiotas”). O entretenimento engolfou a razão. A própria dinâmica dos debates políticos obedeceu ao estilo dos programas de auditório. Quem quer ser milionário? Performances substituíram o conteúdo. A política se resumiu em esquetes de persuasão das massas. O que se saía melhor no palco, vencia.

A história da dominação tem sido a sequência de diferentes tipos de tela. A prima parede de Platão, no Mito da caverna, simulava a realidade; a “teletela” de George Orwell, em 1984, estampava as aglomerações em rituais de servilismo; a TV matinal condicionava as almas para o trabalho; Aldous Huxley, em Admirável mundo novo, por via do divertimento instrumentalizava a subordinação. Na era infocrática, o smartphone é a caverna digitalizada onde restamos confinados, com cara de bobo.

O regime disciplinar dispunha apenas de informações demográficas necessárias ao exercício da biopolítica. O regime de informação tem acesso a psicográficos para implantação da psicopolítica, na qual a racionalidade se vê substituída pelos signos da afetividade. Afetos mobilizam mais o inconsciente que um argumento fundamentado. Por aí, o comportamento eleitoral e o consumismo é manipulado. A infocracia mina a dinâmica democrática que pressupõe a autonomia e a liberdade de escolha. A propaganda em mídias forjava o poder; as informações asseguram um pleno domínio.

A empresa britânica Cambridge Analytica se jacta de possuir os psicogramas de todos (todos!) os estadunidenses adultos. “Fomos decisivos na vitória de Donald Trump”. Anúncios obscurantistas poluem o ambiente interativo e bestializam a sociedade. Não por acaso, mas com um script à la Olavo de Carvalho para levar ao paroxismo a virulência. Extremistas da direita classificam as páginas da internet de infowars (guerra de informação) e se autodefinem como os guerreiros da informação (infowarrior): sem açúcar, mas com afeto. “Pós-verdade” é a palavra de nosso tempo.

Os memes revelam que as trocas internéticas privilegiam num crescendo as imagens. Interpelam com rapidez, enquanto os textos são lentos. A mídia viral debocha da coerência lógica explanativa. A democracia representativa é prolixa e cansativa. A democracia digital, vibrante. Celulares são parlamentos móveis, polemizam a qualquer hora. Não, não se parece com as antigas ágoras gregas. Enxames digitais não formam coletivos responsáveis para intervir na pólis. A comunicabilidade algorítmica nas mídias sociais nada tem de democrática. As informações se propagam sem cruzar pela praça pública. São produzidas em espaços privados e se endereçam a outros espaços privados, fragmentariamente, aos solavancos. Os followers são adestrados por influencers. Bovinamente.

Byung-Chul Han conclui, daí, que influenciadores e seguidores “não são capazes de ação política”. Equívoco desmentido na invasão do Capitólio pela turba trumpista, em Washington; e na terrorista depredação da sede dos poderes republicanos pela malta bolsonarista, em Brasília. O correto seria dizer que são incapazes de uma ação política racional construída a partir de um discursus (em latim, andar ao redor) para a concertação de ideias publicizadas. Arena recusada pelos pseudopatriotas, cujo habitat natural são as redes sociais e não as estruturas institucionais da democracia tradicional, sustentada na escuta do outro e na ponderação de novos pontos de vista para fechar consensos.

Ocorreu uma desfatualização do mundo. A narrativação prevalece. A hiperpersonalização narcísica acionada pelos algoritmos para reforçar preferências, continuamente, dinamita os alicerces do livre arbítrio. A professora do Barnard College, de New York, Cathy O’Neil, em Algoritmos de destruição em massa: como o Big Data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia, batizou tais modelos nocivos de “Armas de Destruição Matemáticas (ADMs)”. A sociabilidade se desintegra. Tribos carentes de identidade ideológica, assediadas pela digitalização da extrema-direita, mergulham no solipsismo. Sem um “nós” para tecer as alteridades e formatar uma comunidade autêntica, a civilização desmancha no ar. O sonho dos infocráticos é uma sociedade administrada somente por intermédio dos dados, – sem a política. Com o status quo congelado.

Citada apenas de passagem pelo pop star, as sacadas de Infocracia são um produto da formidável obra sobre os novos tempos, Capitalismo de vigilância, de Shoshana Zuboff. Para a professora da Havard Business School a renovação da democracia exige de nós “um sentimento de indignação, uma sensibilidade para perceber o que nos está sendo tomado; o que está em jogo é a expectativa dos seres humanos de ser senhor de sua própria vida e de sua própria experiência”. O presidente Lula está certo em galvanizar as nações e a opinião pública internacional para o combate às fake news. Para revigorar o Estado de direito democrático, há que legislar forte sobre as Big Techs.

A crise da verdade anda junto com a crise da democracia, pavimentando o neofascismo. A crença na facticidade foi perdida, como se observou no negacionismo durante a pandemia. As teorias da conspiração pintaram o contraditório com tintas delirantes, normalizadas por psiquês influenciáveis. Na crise da verdade, perde-se o mundo comum, a linguagem comum. A verdade é um regulador social, um prumo orientador da sociedade. O niilismo, em curso, desconstrói a coesão social.

Não é que todos viraram mentirosos. Estes, sabem a diferença entre a mentira e a verdade. É que uma e outra, agora, configuram narrativas de mesmo valor. Desapareceu a distinção. A praga dadesinformação devora a facticidade do real. Aquele que é imune aos fatos e à realidade, constitui um perigo maior à verdade do que o que mente. Falar merda não é se opor à verdade, mas ser indiferente à verdade. A crise de veracidade estremece a crença nos fatos concretos. A “novilíngua” (newspeak) orwelliana bate à porta da contemporaneidade. Aliás, já entrou e se acomodou na sala. A democracia é o remédio para curar a alienante doença do homo demens. Quem vai, quem vem.

Michel Foucault, ao final da vida, pensava em quão importante é a “coragem da verdade”, com suporte nos princípios que guiam a democracia: isegoria, que é o direito de todos se expressarem livremente; e parrhesia, a obrigação de ser verdadeiro, o que excede o direito constitucional de tomar a palavra para se manifestar. Politicamente, o que age para promover o bem da comunidade humana celebra a franqueza, em público. Sócrates foi o parresiasta, por excelência, ao preferir a morte a abdicar da verdade em prol da justiça e das leis. Esse é o desafio dos democratas e dos socialistas: falar a verdade sobre as desigualdades de classe, de gênero e de raça; a hecatombe climática, o risco de guerra nuclear e o difícil labirinto da democracia. Até o sol raiar, amanhã.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
3
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
4
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
5
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
9
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
10
A esquerda radical deveria apoiar Lula desde o primeiro turno. Por quê?
04 Dec 2025 Por VALEIRO ARCARY: O voluntarismo não é bom conselheiro. Ideias revolucionárias são poderosas e podem colocar em movimento milhões de pessoas até então desesperançadas. Mas é imprudente desconhecer a impiedosa força da realidade objetiva.
11
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
12
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
13
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
14
A voz da saga
30 Nov 2025 Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: Prefácio do livro “Melhores contos”, de João Guimarães Rosa
15
Por que a Inteligência artificial não faz justiça? – 2
29 Nov 2025 Por ARI MARCELO SOLON & ALAN BRAGANÇA WINTHER: Os fundamentos da ciência da computação e da filosofia do direito mostram que a Inteligência Artificial é estruturalmente incapaz de realizar justiça, pois esta exige historicidade, interpretação contextual e uma "variável caótica" humana que transcende a mera racionalidade algorítmica
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES