Por JOÃO HÉLIO FERREIRA PES*
A mercantilização da infância e a exposição precoce a estímulos adultos comprometem o desenvolvimento integral das crianças, transformando-as em consumidores e objetos de desejo em uma sociedade hipersexualizada
Nos últimos dias, emergiu um tema que tem sido amplamente discutido, mas ainda não aprofundado com a radicalidade necessária, no sentido de se analisar a raiz do problema. Trata-se do fenômeno da adultização precoce e da sexualização infantil, que tem despertado crescente preocupação entre pais, educadores e pesquisadores. A exposição de crianças, sobretudo pela internet, a comportamentos, práticas e valores que não condizem com sua faixa etária compromete seu desenvolvimento integral.
Mais do que um problema isolado, esse fenômeno revela as contradições do sistema capitalista contemporâneo que, ao mercantilizar a infância, transforma meninos e meninas em consumidores precoces e, ainda mais grave, em objetos de desejo em contextos de hipersexualização cultural.
A lógica do mercado, sustentada pela exploração incessante do consumo, tem papel central nesse processo. A publicidade direcionada, o marketing infantil e a cultura midiática voltada para a erotização de corpos ainda em formação contribuem para naturalizar a exposição precoce das crianças a estímulos que estimulam condutas adultas.
Programas de televisão, redes sociais, influenciadores digitais e até mesmo a indústria da moda alimentam a ideia de que meninas e meninos precisam se comportar como adultos em miniatura. Nesse contexto, a infância é corroída pela lógica capitalista, que coloca o lucro acima da proteção e do bem-estar.
No contexto histórico da antropologia social é bem recente a preocupação com cuidados a crianças e adolescentes enquanto pessoas em desenvolvimento, de modo geral, as crianças eram consideradas adultos em miniatura sujeitos às mesmas responsabilidades dos adultos[i].
O reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direito, capazes de invocar não apenas os direitos humanos atribuídos aos adultos, mas também direitos próprios de sua condição peculiar de desenvolvimento, é um marco recente.
Internacionalmente, esse avanço consolidou-se com a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, considerada por Antonio Augusto Cançado Trindade uma das seis “Convenções centrais”[ii] das Nações Unidas. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 já havia incorporado a doutrina da proteção integral em seu artigo 227, em sintonia com as discussões internacionais preparatórias da Convenção.
A Convenção de 1989 representou um salto qualitativo ao abranger direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, reafirmando a Declaração Universal de 1948, que já previa cuidados e assistência especiais à infância. No Brasil, sua incorporação transformou o paradigma jurídico e social: crianças e adolescentes passaram a ser titulares de direitos fundamentais plenos, e não meros objetos de tutela. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), inspirado nesse novo marco, instituiu garantias legais que refletem a prioridade absoluta e a responsabilização compartilhada entre Estado, família e sociedade. Essa mudança foi decisiva para consolidar uma visão mais ampla de cidadania e dignidade da criança.
No entanto, a efetividade de qualquer legislação que garanta direitos humanos fica profundamente comprometida numa sociedade em que a competição, o individualismo e a garantia de direitos patrimoniais se sobressaem. O período pandêmico agravou essa realidade. Com o aumento do tempo de crianças e adolescentes em ambientes virtuais, intensificou-se a exposição a conteúdos impróprios e a pressões estéticas e comportamentais.
Muitas vezes sem a supervisão adequada, esse público foi alvo fácil da propaganda e de dinâmicas de interação online que reforçam a adultização e a sexualização. Nesse período “milhões de crianças ao redor do mundo foram obrigadas a ficar em casa, privadas do ambiente escolar estruturado, da interação com colegas e do suporte dos professores”[iii]. O isolamento social, aliado à necessidade de lazer e conexão, colocou a internet como espaço central, mas também como ambiente de risco.
O problema, entretanto, não se resume ao mundo virtual. Ele reflete uma cultura mais ampla, na qual a erotização da infância serve como estratégia de mercado. A indústria cultural lucra com a transformação de crianças em consumidores de roupas, cosméticos, brinquedos erotizados e estilos de vida incompatíveis com sua idade. Essa lógica de consumo compromete a construção de identidades saudáveis e amplia os riscos de violência, abuso e exploração sexual.
Nesse cenário, torna-se evidente a conexão entre degradação humana e degradação social, como enfatiza o Papa Francisco em sua Encíclica Laudato Si’. Para o pontífice, “os poderes econômicos continuam a justificar o sistema mundial atual, onde predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente”[iv].
A adultização precoce é, portanto, uma das faces dessa degradação ética e social: a infância, realidade frágil por excelência, torna-se indefesa diante dos interesses do mercado divinizado, transformado em regra absoluta.
Diante desse cenário, é urgente repensar as práticas sociais e institucionais. A proteção da infância deve ser tratada como prioridade absoluta, conforme estabelecem a Constituição Federal de 1988, tratados internacionais ratificados pelo Brasil e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei nº 8.069/1990). Isso implica regulamentar melhor a publicidade infantil, regulamentar e fiscalizar as plataformas digitais, responsabilizar empresas que se aproveitam da erotização precoce e investir em educação crítica para pais, escolas e comunidades. Mais que isso, exige questionar a lógica capitalista que reduz a criança a mero consumidor e mercadoria.
Ao final, discutir adultização precoce e sexualização infantil é discutir o tipo de sociedade que queremos construir. Uma sociedade que preserva a infância como fase essencial de formação humana, livre de pressões mercantis e da erotização precoce, é também uma sociedade mais justa, igualitária e comprometida com os direitos fundamentais.
*João Hélio Ferreira Pes é professor de direito da Universidade Franciscana – UFN (Santa Maria, RS). Autor, entre outros livros de Privatização e mercantilização das águas (Dialética). [https://amzn.to/465GYjX]
Referências
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2° edição. Tradução Dora Falksman. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
FRANCISCO, Papa. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulus, 2015.
PES, João Hélio Ferreira. Direitos Humanos: crianças e adolescentes. Curitiba: Juruá, 2010.
PES, João Hélio Ferreira; GARCIA, Jaci Rene Costa; WERNER, Priscila Cardoso; LIMA, Lara Gabrielle Oliveira de. Adultização precoce, sexualização infantil e outros fenômenos decorrentes da exposição de crianças e adolescentes em ambiente virtual no período pandêmico. In SILVA, Rosane Leal; VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito à saúde e à educação de crianças e adolescentes em tempos de pandemia. Florianópolis: Habitus Editora, 2024.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2021.
Notas
[i] ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2° edição. Tradução Dora Falksman. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986, p. 14.
[ii] PES, João Hélio Ferreira. Direitos Humanos: crianças e adolescentes. Curitiba: Juruá, 2010, p.35.
[iii] PES, João Hélio Ferreira; GARCIA, Jaci Rene Costa; WERNER, Priscila Cardoso; LIMA, Lara Gabrielle Oliveira de. Adultização precoce, sexualização infantil e outros fenômenos decorrentes da exposição de crianças e adolescentes em ambiente virtual no período pandêmico. In SILVA, Rosane Leal; VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito à saúde e à educação de crianças e adolescentes em tempos de pandemia. Florianópolis: Habitus Editora, 2024, p. 210.
[iv] FRANCISCO, Papa. Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulus, 2015, p. 36.
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