Por BENÍCIO VIERO SCHMIDT*
Comentários sobre acontecimentos recentes
A crise fiscal tem sido um fantasma a ameaçar as relações do governo com o mercado financeiro, de modo especial; bem como o comportamento frente aos interesses maiores da população e dos trabalhadores. As idas e vindas desta tumultuada relação transparece nas oscilações do dólar, dos juros e da Bolsa de Valores; tendo como indicador de insegurança e instabilidade a saída de capitais estrangeiros do país; tendo a resistência da inflação como marca registrada de política antipopular.
Diante da execução do orçamento federal para 2022, ainda a ser votado pelo Congresso Nacional, surge o espectro “inesperado” dos precatórios a serem pagos pela União aos outros entes federativos, empresas e cidadãos ( R$ 89 bilhões). A cultura inflacionária tem aumentado estes créditos ao longo do tempo, assumindo enorme relevância no total das despesas públicas. O ministro Paulo Guedes e demais autoridades econômicas acusam o impacto sobre as finanças federais e buscam soluções alternativas: da suspensão de parte dos pagamentos (até um certo limite, presumivelmente de R$ 400 mil reais), até a reversão dos créditos em operações de privatização de empresas estatais.
Uma engenharia fiscal difícil. Paulo Guedes, apesar disto, alude a possível adiamento dos pagamentos em diversas parcelas anuais para fugir à possibilidade de um calote; fator perturbador nas já tênues relações com o mercado e com os demais entes federativos. Se os R$ 89 bilhões vierem a integrar o Orçamento tornarão inviável a cobertura das demais despesas não-obrigatórias, incluindo salários dos servidores e a própria Bolsa Família. Caso tudo for incluído, se romperá o teto dos gastos, cláusula pétrea do austericídio vigente. A peça do Orçamento Anual deve ser enviado ao Congresso Nacional até 31 de agosto. Uma tormenta à espreita, alimentando dissenções no âmbito do próprio Executivo, na medida em que Bolsonaro quer duplicar o valor da Bolsa Família (Auxílio Brasil, doravante) como forma de catapultar sua candidatura à reeleição . O custo do programa, hoje, é de R$ 34,89 bilhões, atendendo a 15,2 milhões de famílias.
Desde a decisão do STF (2015) proibindo o financiamento empresarial de campanhas políticas, o dinheiro público tem sido abundante para o Fundo Eleitoral, bem como para o Fundo Partidário. Todavia, os mecanismos de fiscalização e controle permanecem os mesmos. Neste quadro agora o Congresso Nacional discute propostas de reforma político-eleitoral. Oriundas do Grupo de Trabalho da Câmara Federal que elabora o novo Código Eleitoral, as medidas devem ser votadas imediatamente pela Câmara e depois seguem ao Senado. São propostas de afrouxamento de vários mecanismos de funcionamento da Justiça Eleitoral, indo da auditoria a multas aos partidos políticos e seus dirigentes. Um regresso institucional que reduz os já parcos recursos da Justiça sobre o funcionamento de partidos e campanhas eleitorais. O Projeto de Lei Complementar (PLC 11/2021) tem mais de 900 artigos e foi protocolado em 2 de agosto, podendo ser votado imediatamente. Entre outras propostas, o PLC limita o tempo de divulgação das pesquisas eleitorais e enfraquece a política de cotas para as mulheres e não-brancos nas eleições.
Ainda pertinente ao sistema eleitoral e seu funcionamento, tomado equivocadamente como a própria “reforma eleitoral”, destaque-se a rejeição do voto impresso (23 x 11), nesta quinta-feira; devendo ir à apreciação do plenário da Câmara Federal, tal como anunciado pelo presidente Lira. Mesmo assim, uma vitória parcial importante contra Bolsonaro e suas imprecações sobre a fraude nas urnas eletrônicas.
Importante matéria sobre a regularização de terras ocupadas pela União e pelo INCRA foi objeto de projeto de lei (PL da Grilagem) aprovado por 296 votos a 136 na Câmara Federal (03/08/21). Ele facilita sobremodo a legalização de terras invadidas e desmatados por grileiros e mineradores, especialmente na Amazônia. Reduz a fiscalização estatal sobre o marco temporal, baseando-se, inclusive, na auto-declaração dos invasores. Um regresso inaudito sobre os controles governamentais relativamente à ocupação de terras rurais. O projeto segue agora para o Senado, onde também deverá ser aprovado.
Enquanto isto, segue a saga do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) para sanar os problemas da Plataforma Lattes, com forte impacto sobre o cotidiano dos cientistas e bolsistas brasileiros. Na verdade, trata-se do resultado direto da escassez de recursos dotados à principal agência da ciência brasileira (R$ 3,1 bilhões em 2013 e R$ 1,2 bilhão em 2021).
As escaramuças entre TSE, STF e Presidência da República – sob o pretexto do voto impresso – continuam a perturbar o ambiente, em geral, como atesta recente manifesto de empresários, grandes investidores , acadêmicos e consultores (mais de seis mil assinaturas até o momento) a favor da democracia, da urna eletrônica e de um clima pacífico nas relações entre Estado e mercado. Todavia, o presidente continua seus viperinos ataques a ministros do Judiciário, sem arrefecimento e com ameaças de quebra do padrão sucessório. Algo que sublinha sua queda de prestígio em constantes pesquisas de opinião, sendo a última a do PoderData; bem como uma deterioração da linguagem oficial assumida que lembra os últimos dias e pronunciamentos de Fernando Collor antes da renúncia.
*Benicio Viero Schmidt é professor aposentado de sociologia na UnB e consultor da Empower Consult. Autor, entre outros livros, de O Estado e a política urbana no Brasil (LP&M).