A crise da democracia liberal

Paula Rego, "War", 2003. (Acervo Tate)
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Por RAFAEL R. IORIS*

Brasil de Bolsonaro como expressão do neoliberalismo autoritário neofascista

Embora sendo um fenômeno eminentemente brasileiro, a surpreendente chegada de Jair Bolsonaro `a presidência do Brasil, em janeiro de 2019, precisa ser entendida como expressão de uma crise mais ampla da democracia liberal, regime e lógica política que parece enfrentar hoje seu maior desafio desde sua expansão ao redor do mundo na segunda metade do século XX. É certo que o Liberalismo clássico não nasceu acabado, muito menos democrático. Mas sua evolução, ao longo dos últimos 250 anos, se desdobrou ao longo de um curso que não buscava somente garantir a noção do governo da maioria, como também da importância da proteção e garantia da existência e da participação política de grupos minoritários.

E é exatamente nesse aspecto que hoje a democracia liberal enfrenta seu principal questionamento, por parte de líderes formalmente democráticos (eleitos), que agem ativamente para suprimir direitos de populações não hegemônicas e erodir os regimes legais e organismos institucionais de garantimento das proteções desses mesmos grupos. Exemplos de tais líderes incluem Viktor Orbán na Hungria, Narendra Modi na India, Donald Trump nos Estados Unidos, Recep Erdogan na Turkey, Vladimir Putin na Russia, e é claro, Jair Bolsonaro no Brasil.

Todos se encaixam no desonroso grupo de líderes que agem ativamente para perseguir grupos que não se encaixam na sua visão autoritário e excludente de sociedade. Fazem isso por meio da destruição gradual de órgãos de investigação e cortes judiciais independentes, deslegitimação das vozes contrárias e promoção da narrativa de que tais grupos representam uma ameaça existencial ‘a nação, definida de maneira restritiva, seja por elementos religiosos, linguísticos, étnicos ou ideológicos.

Dada ‘a relativa novidade dessa nova expressão de líderes autoritários, ainda não temos um consenso conceitual sobre como tratá-los. Dado sua natureza formal democrática e apelo popular, em muitas partes, hegemônico, estaríamos presenciando uma nova manifestação de um certo populismo de direita? Ou, dado seu caráter agressivo, persecutório e especialmente de alianças estratégicas com o grande capital, local ou global, seria essa uma nova manifestação da lógica fascista histórica? Difícil saber se um conceito consegue dar conta da diversidade que tal fenômeno assume ao redor do mundo. Por um lado, há uma coordenação de forças na promoção de uma agenda pro-grande capital oligopolista, embora não necessariamente nacional. E parece não haver tanta necessidade de mobilização por meio de um grande partidos de massas já que esta é em grande parte substituída por mobilizações organizadas pelas mídias sociais.

De todo, um dos elementos centrais do que entendo ser um certo tipo de neofascismo, especialmente em países periféricos, como o Brasil, é seu papel na promoção da agenda neoliberal por meios crescentemente autoritários. Assim, além de erodir direitos e ganhos econômicos mínimos de grupos sociais menos favorecidos – por meio de reformas que reduzem direitos trabalhistas, privatizam serviços públicos, revertem legislações ambientais, etc. – os líderes neofascistas revertem os próprios marcos civilizatórios que foram conquistados a duras penas ao relativizarem, quando não frontalmente atacarem, os fundamentos e mecanismos operacionais da lógica democrática, como os direitos das minorias, e a livre expressão da crítica e do contraditório.

A emergência do neofascismo, especialmente, na América Latina, se deu dentro da crítica ‘a ampliação de reformas de natureza social democrata promovida pela chamada Onda Rosa, ela própria que havia chegado ao poder em vários países da região na oposição ‘a agenda de reformas neoliberais da década de 1990. Interessantemente, em linhas gerais, os governos da Onda Rosa buscaram reposicionar o papel do Estado na economia e sociedade, como indutor de crescimento e promoter de inclusão econômica (social, cultural, racial, etc.) ainda que não tenham, de forma clara, conseguido enfrentar as características mais estruturais do capitalismo, tanto no contexto nacional ou mesmo global; e assim, a própria dependência histórica das economias latino-americanas na exportação de produtos primários para mercados globais.

De fato, em grande parte impulsionada pela voracidade do mercado chinês em rápida expansão, a primeira década do século XXI presenciou um processo de reprimarização das economias regionais. Essa dependência no consumo chinês se demostrou um elemento de crescimento mas também, crescentemente, de desestabilização política. A partir da crise de 2008, em especial, a economia global começa a presenciar tanto uma reversão de tendências nos preços da commodities como um recrudescimento da lógica neoliberal, embora dessa vez com um viés cada vez mais protecionista.

Os limites da expansão pelo consumo nos países latino-americanos começa a se evidenciar, tanto no sentido da manutenção de programas sociais, como no grau de tolerância das elites regionais não só com o passo de ascensão, limitada mais histórica, de diversos setores sociais, mas também como a própria lógica e instituições da democracia representativa. Elementos importantes que tinham se beneficiado das coalizações políticas da Onda Rosa, como o setor agrícola brasileiro, rapidamente, com a queda de ganhos da exportação primária, se convertem em lideranças do processo de deslegitimação das ordem democrática, em muitas partes, ainda em processo de consolidação.

Interessantemente, os primeiros governos oriundos da reversão da Onda Rosa na América Latina, embora claramente neoliberais, não tinham ainda os elementos mais autoritários e mesmo xenofóbicos que viriam a se manifestar de maneira mais clara posteriormente. Sebastián Piñera no Chile (2010-2014), Mauricio Macri na Argentina (2015-2019), Pedro Pablo Kuczynski no Peru (2016-2018), Enrique Peña Nieto in México (2012-2018), e mesmo Michael Temer no Brasil (2016-2018) seriam claros exemplos disso. Hoje contudo, tanto no Brasil de Bolsonaro, como no temporário mas trágico regime golpista de Anez na Bolívia, como governo de  Duque na Colombia, e Bukele em El Salvador, traços claramente persecutórios, revanchistas, fundamentalistas, ou mesmo messiânicos, são centrais ‘a forma como tais líderes chegaram ao poder assim como ‘a própria lógica de condução e manutenção do mesmo.

Como fenômeno de massa, a experiência do neofascismo latinoamericano parece encontrar sua mais clara e influente expressão no Brasil de Bolsonaro. Fosse ele apresentar, de fato, sua agenda de reformas econômicas e administrativas antipopulares, não teria sido capaz de ter o apelo popular capaz de arregimentar mais de 60 milhões na eleição tutelada de 2018. E é aqui que a face tragicamente atraente da narrativa ideologicamente orientada do neofascismo é mais evidente. Lembremos que foi exatamente com base no discurso antiminorias do dito antipoliticamente correto, na retórica de um nacionalismo vago mas extremado, e especialmente na bravata da cruzada anticorrupção que o bolsonarismo, como movimento de massas, se construiu. Ecoando seu mentor-mor que prometia ´limpar o pântano´ de Washington, Bolsonaro prometeu ´mudar isso aí´, de maneira tão genérica que o conteúdo do que seria mudado era provido pelo apoiador em questão.

Mas ainda que com apoio em diversos setores sociais, foi nas classes médias onde a narrativa antissistêmica, inicialmente centrada no combate ‘a corrupção, seletivamente definida, se alastrou de maneira decisiva. Ecoando novamente eventos ocorrendo nos EUA, a confianças nas instituições da democracia encontrou não somente níveis historicamente baixos, como soluções autoritárias passaram a ser mais amplamente aceitas. E assim, de maneira claramente antidemocrática e mesmo aceleradamente autoritária, a mobilização antissistêmica iniciada, de maneira mais clara nas marchas pelo impeachment de 2015, culminaram na eleição do personagem político mais reprovável desde o processo da redemocratização.

As intenções autoritárias de Bolsonaro sempre foram de conhecimento público, assim como as práticas ilegais da Operação Lava Jato, embora a narrativa midiática de tais atores sempre tenha buscado ofuscar, até recentemente, tais elementos. Da mesma, a agenda de reformas neoliberais do guru econômico do atual governo, foram amplamente reembaladas sob o argumento das reformas que o país precisa, sem deixar claro que projeto de país estava efetivamente sendo promovido. E após a fatídica eleição de 2018, envolta na loucura coletiva de apoiar, com gestos de armas nas mãos, um candidato que prometia fuzilar seus adversários, o viés claramente conservador e autoritário do novo bloco histórico ficaria cada vez mais evidente.

O consórcio em questão tem nas forças armadas, conservadorismo religioso e grande capital exportador seus maiores patrocinadores. E o projeto que país que emerge é a de uma sociedade culturalmente conservadora e ideologicamente neoliberal, onde práticas violentas de controle social são amplamente aceitas e fantasma do inimigo interno e o medo da erosão dos valores tradicionais dariam a liga para a manutenção da aliança no poder.

O projeto neoliberal e autoritário e a visão de mundo fundamentalista de Bolsonaro também se expressam na dimensão internacional, inclusive na nova diplomacia que o Brasil assumiu após a chegada do bolsonarismo ao poder. De fato, sabotando dramaticamente pilares históricos da política externa brasileira (como multilateralismo e pragmatismo), o país começara a  buscar um alinhamento estreito com os EUA, em especial durante a gestão do templário Ernesto Araújo. É certo que a política externa lulista já vinha sofrendo fortes críticas desde muito, especialmente em suas aberturas aos países do Sul Global. E o ilegítimo interregno Temer já sinalizada um retorno a uma política externa mais tradicionalmente alinhada, em uma posição subordinada, ‘as tradicionais potências globais, em especial aos Estados Unidos.

Ainda assim, a guinada que Bolsonaro adota ao buscar um alinhamento automático não só com a maior força militar do planeta, mas especialmente uma aproximação digna de fã-clube para com Trump e sua família é algo que ficará nos anais da histórica diplomática nacional. A imagem do inimigo interno, a esquerda, e de seus aliados regionais (com a Venezuela), que teriam que ser fortemente contido a fim de manter a paz social e os bons costumes, algo típico do pensamento autoritário neofascista, foi muito útil nesses esforços. E segundo essa visão de mundo, Bolsonaro e Trump, nos dizeres do próprio chanceler de então (hoje felizmente defenestrado), serviriam para cumprir o papel de defensores da cristandade ocidental ameaçada pela inexistente, mas não obstante amplamente alardeada, internacional comunista.

Cabe por fim, ressaltar que, de maneira tristemente paradoxal, seria, pois, o líder politico que adotara a retórica mais nacionalista das últimas décadas no Brasil que acabaria por se tornar a trágica figura que barganhara um papel claramente subserviente em troca de um sorriso da figura mais emblemática do neofascismo global. Líderes que chegaram ao poder na crise mais recente e mais impactante da democracia liberal, Trump e Bolsonaro, como dignos representantes desse mesmo fenômeno, nunca apresentaram verdadeiras respostas ‘a erosão da legitimidade da lógica representativa contemporânea. Mas a menos que respostas efetivas ‘a tal crise sejam apresentadas, a resposta fácil do neofascismo vai continuar a manter seu apelo, seja fora no poder, como no caso de Trump, ou, mais ainda, no comando do segundo maior país do continente, no caso de Bolsonaro.

*Rafael R. Ioris é professor de história na Universidade de Denver (EUA).

 

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