A democracia como forma e conteúdo

Imagem: Elyeser Szturm
image_pdf

Por TARSO GENRO*

A capacidade de matar a fome, dar segurança e educação ao povo é que pode derrotar o fascismo

 

“Quando uma maioria significativa da população – disse Istvàn Mèszáros –, algo próximo de 70% em muitos países, se afasta com desdém do ‘processo democrático’ do ritual eleitoral, tendo lutado durante décadas no passado, pelo direito ao voto, isto mostra uma mudança real de atitude em face da ordem dominante”, mas nem sempre – é possível agregar – se afasta buscando territórios mais virtuosos para o exercício da política, como comprova a volta recorrente do fascismo. Assim mostra a França, cuja esquerda agora ameaça renascer sob a liderança nacional-popular de Mèlanchon.

A “questão democrática”, num momento de decadência da ordem liberal-representativa, reduz a sua importância para definir as eleições, na mesma proporção e medida em que avança a fome, o desespero da exclusão e a desigualdade perante a lei. Os princípios que norteiam a ordem democrática e a formação das maiorias para governar se tornam, neste período, menos convincentes como meios para melhorar a vida concreta das pessoas e para promoverem uma coesão social mínima, para a busca comum de uma vida melhor.

A “fé” na democracia começa pelo reconhecimento no povo da efetividade dos direitos e da “igualdade de trato” pelo Estado para suas questões de vida. Tanto na proteção social que o Estado deve oferecer às pessoas, como no reconhecimento da materialidade dos direitos – pelo exercício soberano do Poder Judiciário – assim como pela prestação dos serviços por uma Polícia, não racista e não classista, que use a força legítima moderada pela lei. A democracia para a esquerda é, portanto, uma forma e um conteúdo: uma forma jurídica que constitui o Estado com Direito e um conteúdo concreto que se expressa na vida cotidiana do homem comum. Quando não se expressa, avança o fascismo ou avança a revolução e na atualidade tem avançado o fascismo.

Em 14 de janeiro de 2022, em Macapá, o Presidente da República Jair Bolsonaro avisou publicamente ao país o que seria o ano de 2022.

A manchete do jornal Folha de São Paulo, depois do Presidente repetir que “houve fraude” nas eleições de 2018 e que ele “ganharia no primeiro turno” se isso não ocorresse, escancarou: “Bolsonaro volta a falar em fraude nas eleições de 2018 sem apresentar provas”. Ficava clara a desmontagem golpista e fascista dos pressupostos eleitorais do processo democrático, naturalizada pela grande mídia, que – se não amava essas ameaças – adorava a possibilidade das reformas “liberalizantes” na economia.

É importante lembrar este episódio recordando matéria anterior da Folha de 6 de novembro de 2019 (caderno Mercado A22, 06.11), que celebrava a proposta de Bolsonaro em defesa de uma “revolução constitucional para arrochar o gasto no país todo”, referindo a “Emendas constitucionais” que iriam limitar “despesas de alto a baixo na República e nos Poderes”. Esta seria – segundo o Ministro Paulo Guedes – “uma espécie de “mini Constituinte Fiscal”.

Através de um movimento político amplo apoiado pelas forças “liberais”, o voluntarista “teto de gastos” seria feito aqui com o mesmo vigor neoliberal que Pinochet o fez no Chile, através de uma das mais cruéis ditaduras latino-americanas instauradas nos anos 1970. Só que não. A arriscada escolha da maioria das classes dominantes brasileiras, para continuar “suportando” Bolsonaro, conseguiu “reformas” importantes para os seus interesses imediatos, mas a corrupção e a gastança culminaram com a decadência maior da democracia liberal. E mais, com o prestígio do país no próprio mundo capitalista e com as perspectivas de estabilidade política e baixo crescimento com inflação.

A distopia chilena e a sua barbárie, disseminada em todos os poros da vida social e econômica do país, tinham a seu favor a derrubada completa das instituições democráticas, asseguradas pela força do Império, a lenta, mas inexorável quebra de prestígio da experiência revolucionária soviética e a fraqueza organizativa do apoio popular a governos democráticos, de esquerda, que pretendiam erguer suas economias através de reformas sociais “dentro da ordem”.

O impulso chileno tinha o mesmo sentido da revolução distópica do thatcherismo, que desembarcou na América Latina através de uma conjugação, até então estranha às experienciais fascista tradicionais, que unia a ditadura militar com o liberalismo econômico radical. Esta conjugação tinha viabilidade política, à época: a teoria econômica não precisaria obter consenso nas classes populares, pois elas seriam submetidas a uma disciplina social – necessária para o neoliberalismo – pelas baionetas, assim como a política se deslocaria do espaço público liberal para os rituais disciplinares dos quartéis.

Estes dois momentos do governo do “mito”, entre novembro de 2019 e janeiro de 2022 – entre o controle de gastos e a suposta fraude eleitoral – foram integrados e cindidos pela evolução política das crises que assediaram seu governo. Ora foram dominantes os momentos da “mini Constituinte fiscal”, com a euforia das classes empresariais, ora foram dominantes os momentos de depressão dessas mesmas classes, pelo abandono do teto de gastos e a consequente emergência dos “custos” da corrupção e da inflação. Os orçamentos secretos e os gastos manipulado pelas religiões do dinheiro, com seus caros dízimos orçamentários, mantiveram o apoio do governo no Congresso Nacional.

Toda a movimentação política do país que desemboca no ano eleitoral, está marcada, portanto, por esta sucessão de episódios que, de uma parte, consolidam alianças e as dissolvem no seio das classes privilegiadas; e, de outra, confundem e martirizam a vida das classes populares no ambíguo e planejado jogo bolsonarista, que vai da comportada (e falsa) gestão dos gastos – a gosto do neoliberalismo – aos sucessivos jogos anti sistema, de um (falso) rebelde, mas verdadeiro títere fascista.

“Em muitos sentidos – diz Roger Martelli, em “Nueva Sociedad” (n. 297, p. 62) “a sociedade não é nem de direita nem de esquerda, (mas) distribui representações e comportamentos com base numa pluralidade de eixos possíveis”, que aliás – agrego – não se limitam à condição de classe dos sujeitos políticos, mas sobretudo vem de como as pessoas compreendem, num dado momento, o melhor significado para dar sentido a (sua) igualdade e a (sua) liberdade. Lembra o analista, sobre a França de hoje, que a esquerda – que vinha perdendo as bases eleitorais que até 1981 nela votavam, em abril de 2017 perdeu 70 a 75% dos seus eleitores, que foram para extrema direita, mantendo assim menos de um terço do seu eleitorado tradicional.

Além da opção pela Democracia e pela República, que nos acompanha como ideologia para enfrentar o fascismo em todos os terrenos, o mais convincente para drenar o fascismo do meio do povo que hoje Lula representa – como convicção e vida pregressa – é menos a defesa da democracia em abstrato e mais a demonstração da nossa capacidade de governar com maioria, operando a democracia em concreto.

Esta capacidade de um novo governo é que pode interromper a falsidade dos dogmas do fascismo: matar a fome, dar segurança e educação ao povo, para reavivar as dimensões civilizatórias da saúde como bem público – não amanhã nem depois de amanhã, mas hoje – será o seguro histórico da política antifascista bem-sucedida e da revalorização da democracia verdadeira pelo povo exasperado.

Há uma frase atribuída a Carducci e mencionada por Gramsci, que diz que “Immanuel Kant decapitou Deus; Maximilien Robespierre o Rei”. Para nós, hoje tão distantes da Revolução Francesa e de Deus, mas muito próximos da barbárie fascista, nos basta asfixiar este governo com um aluvião de votos nas próximas eleições, pra então mostrar que a autoridade de Deus jamais estará na boca das religiões do dinheiro. É pouco e é muito. Mas fora disso o próximo episódio será o mal como ideologia de poder e o fascismo como religião da política, durante uma noite infinita de novas tragédias e infelicidades multiplicadas.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
7
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES