Por JEAN PIERRE CHAUVIN*
O hiper-sujeito se constitui num misto de inflamações do éthos, para as quais não há medicamentos na drugstore
Em termos históricos, a transformação do súdito em hiper-indivíduo é recente: a metamorfose do súdito do rei em sujeito do capital começa na segunda metade do século XVIII[i] e se consolida como valor subordinado ao valor dinheiro,[ii] durante o Oitocentos. Um século e meio depois, mais ou menos na década de 1990, passou-se a supor que o sujeito inflacionara o próprio ego, contagiando também a sua concepção de mundo, de tal modo que passara a submeter as outras pessoas e coisas a seus caprichos egocêntricos, excludentes e exclusivos.[iii]
Se me permitem a analogia sanitária, o hiper-sujeito se constitui num misto de inflamações do éthos, para as quais não há medicamentos na drugstore. Sua personalidade invasiva, aliada à compulsão crescente de autoexposição, funciona quase ao mesmo ritmo das campanhas publicitárias mais agressivas. O hiper-indivíduo converteu-se em uma espécie de agência ambulante de autopropaganda e marketing pessoal, embebido de livre-concorrência. Empreendedor caseiro, ele se orgulha por acumular as funções de pesquisador, roteirista, diretor e apresentador de entretenimento, a mendigar patrocínio de empresas cujos serviços nem sempre têm relação com os materiais que ele veicula.
Não parece restar dúvida de que o advento da Internet, há cerca de trinta anos, favoreceu a pandemia dos mega-sujeitos. Inicialmente, eles transformaram diários e experiências pessoais em blogs; depois, remontaram pedaços de sua mirrada biografia em vlogs e fotologs; em seguida, passaram a postar (e cobrar) testemunhos, curtidas, compartilhamentos e afiliação de novos membros nas redes sociais, para, no estágio mais elevado da estupidificação, apresentarem-se como “administradores de canais”, ciosos da função ultramoderna de “preparar conteúdo”.
A julgar pelas filas quilométricas em livrarias e eventos literários, a exposição e o self-marketing têm sido eficazes: o best-seller passou de livro com êxito comercial (muitas vezes, com efetiva qualidade literária) a objeto de puro fetiche, cuja maior utilidade é assegurar selfies com ídolos de ocasião e registrar o autógrafo de opinadores metidos a graves, ou francamente superficiais, chancelados segundo a depauperada opinião de um exército de não-leitores. O conteúdo do livro que leva o nome da celebridade digital pouco importa;[iv] o que interessa é a certificação (por imagem e por escrito) de que o follower esteve em companhia do ídolo-de-ocasião durante alguns segundos.
Mas, convenhamos. Havia muito tempo que o protagonista coexistia com a sua legião de admiradores e fãs (provavelmente, desde meados do século XIX). Que o diga a proliferação de salões literários, sessões de vernissage, concertos de câmara, exposições com curadores, lançamento de livros etc.,[v] durante o Oitocentos. Nesse sentido, parece inegável que o comportamento dos entertainers da internet apenas potencializou, via world wide web, o que numerosas pessoas já faziam fora dos canais de vídeo, das redes sociais e dos grupos de mensagem eletrônica.
Portanto, a questão que mais nos deveria interessar é a crescente necessidade de protagonismo dos sujeitos e mega-indivíduos;[vi] e menos o meio (presencial ou remoto) em que mecanismos dessa natureza acontecem. Evidentemente, haveria muito o que considerar: a idealização do projeto, a produção do cenário, a encenação do palestrante, a maneira como ele caminha, o modo como se veste, a manutenção do sorriso geral e irrestrito, a mesmice anti-criativa dos autógrafos que concede, as selfies que coleciona etc.[vii]
Concentremo-nos, porém, no léxico e na fala (do) protagonista. Caricatura de si mesmo, o representante dessa curiosa espécie armazena um punhado de frases de efeito – algumas delas centradas em torno de palavras guarda-chuva, tais como: “este projeto não seria possível sem a colaboração/assistência de minha equipe”; “meu objetivo era devolver à sociedade o que ela investiu em mim”; “este material é uma ferramenta que auxiliará no trabalho de futuros pesquisadores, já que há muito por se fazer”.
Obviamente, as fórmulas discursivas variam. Mas, em linhas gerais, o protagonista enaltece o seu projeto; fala sobre si mesmo e reafirma a relevância do trabalho artístico/técnico resultante. Sua postura, seus gestos e comportamento estão atrelados a clichês com que ocupa o tempo de duração do evento. Por extensão, a sua fala resulta autorreferente, longa e unilateral.
E como confunde extensão de tempo com primazia, frequentemente ele interrompe, complementa ou se apossa do discurso alheio – feito um soberano que monologasse em gabo de si e em detrimento dos outros,[viii] por ter mais e melhor a dizer. Quando isso acontece, mediadores e convidados desempenham o papel de mero vassalos, mantidos à sombra da genialidade do protagonista, materializada em (não importa qual) produto: forma mercadoria do seu empenho pessoal, talento particular e relevância quase universal.[ix]
*Jean Pierre Chauvin é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Mil, uma distopia (Luva Editora).
Referências
CASARA, Rubens. Contra a miséria neoliberal. São Paulo: Autonomia Literária, 2021.
ECO, Umberto. Pape Satàn aleppe: crônicas de uma sociedade líquida. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2017.
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Trad. Gabriel S. Philipson. Rio de Janeiro: Vozes, 2022.
HANSEN, João Adolfo. Aula magna. s/l: Zazie Edições, 2019, p. 10.
LIPOVETISKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. Trad. Mário Vilela. São Paulo: Barcarolla, 2007.
LUCAS, Fábio. Literatura e comunicação na era da eletrônica. São Paulo: Cortez, 2001.
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. Trad. Rodnei Nascimento. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 2006.
Notas
[i] “Também o profissional burguês, como o comerciante, por exemplo, tem sua tática e sua maneira específica de lidar com as pessoas. Contudo, é raro que ela chegue a integrar o outro em sua totalidade, como no caso do cortesão, pois este geralmente mantém um relacionamento que dura a vida toda com cada um dos outros indivíduos de sua sociedade” (Elias, 2001, p. 125).
[ii] “Quando a mercadoria toma a palavra o que ela diz? Dinheiro e banalidade, vulgaridade e dinheiro” (Hansen, 2019, p. 10).
[iii] “[…] a corrida da competição faz priorizar o urgente à custa do importante, a ação imediata à custa da reflexão, o acessório à custa do essencial” (Lipovetsky, 2007, p. 77).
[iv] “As mídias eletrônicas de massa destroem o discurso racional marcado pela cultura livresca. Produzem uma midiocracia” (Han, 2022, p. 27).
[v] “A sociedade está sendo dirigida para impor uma educação cada vez mais técnica, o que equivale a dizer: cada vez menos literária. Enquanto isso, aumenta o número de escritores sem público” (Lucas, 2001, p. 22).
[vi] “[…] tecnociência, consumo personalizado, arte e filosofia em torno de um homem emergente ou decadente são os campos onde o fantasma pós-moderno pode ser surpreendido” (Santos, 2006, p. 11).
[vii] “[…] é impossível entender os mecanismos de poder atuais sem atentar para o fenômeno do neoliberalismo, essa racionalidade governamental, essa normatividade e esse imaginário que se originam da premissa de que o mercado é o modelo para todas as relações sociais, o que demonstra uma sociabilidade marcada pela concorrência e a crença de que tudo (e todos) pode(m) ser negociado(s). (Casara, 2021, p. 44).
[viii] “Com a crise do conceito de comunidade, emerge um individualismo desenfreado, onde ninguém mais é companheiro de viagem de ninguém, e sim seu antagonista, alguém contra quem é melhor se proteger” (Eco, 2017, p. 10).
[ix] “A universalidade da forma mercantil condiciona, portanto, tanto sob o aspecto objeto quanto sob o subjetivo, uma abstração do trabalho humano que se objetiva nas mercadorias” (Lukács, 2012, p. 200).
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