A invasão da Ucrânia

Imagem: Asin Alnamat
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Por MANUEL DOMINGOS NETO*

Treze questões sobre a guerra na Europa

O que está por trás da invasão da Ucrânia?

Há muitas motivações, mas em essência, trata-se de um lance-chave no processo de redefinição da ordem mundial. Está se decidindo quem vai mandar no mundo e como o mando será exercido.

Depois da queda do muro, Washington imaginou-se comandando tudo. A postura vassala da União Europeia ajudou-lhe a pensar que isso seria possível; a desorientação da maioria da esquerda, também, na medida em que, fazendo concessões ao neoliberalismo, contribuiu para a sensação fugaz de que o Estado e a política eram malditos.

A mudança no exercício da hegemonia no mundo entrou em pauta e Washington quis eliminar o número dois em capacidade militar. Moscou age para não desaparecer. A invasão da Ucrânia é um gesto vigoroso de autodefesa.

 

A mudança poderia ser pacífica?

Ninguém cede poder por boa vontade. Olhando para a história, mudança na ordem mundial é um processo multifacetário, alongado, com lances imprevisíveis e necessariamente sangrento. A mudança não será pacífica. Hegemonia internacional rima com hecatombe. O sangue correrá em proporções inimagináveis.

Assim foi nas duas grandes guerras do século passado. A humanidade não perdeu sua essência: persiste praticando malvadeza e bondade; sonha com a paz enquanto prepara porretes.

 

Quem desafia a ordem mundial?

A Rússia e a China são os desafiantes mais destacados. Mas a América Latina animou a contestação da ordem quando buscou a cooperação regional e as reformas sociais. Alimentou a audaciosa vontade de deixar de ser quintal do grande irmão do Norte.

As demandas de reforma na estrutura de decisão na ONU são desafios à ordem. Potências intermediárias, como a Índia, o Irã e o Paquistão, buscaram reduzir a dependência externa em defesa. Incomodaram as estruturas existentes.

A dramaticidade da violência na África e no Oriente Médio revelam que o mundo tem que mudar. O mundo cobra as ofensivas guerreiras de Washington e da Europa.

 

 

A Rússia desrespeitou a lei internacional?

Desrespeitou. Foi forçada, agiu por instinto de sobrevivência. Conversou, conversou e foi ludibriada. Advertiu, advertiu e não foi ouvida. Viu-se cercada. Mísseis na fronteira próxima a Moscou pearia sua capacidade de reação. Sua potência militar, em termos práticos, seria desmontada.

Lei internacional é abstração: constrange os fracos e não alcança quem detém a força. Os crimes em Hiroshima e Nagasaki jamais foram punidos. Estados Unidos e Europa têm muitos crimes nas costas e nunca perderam a pose de civilizados, belos e justos.

A guerra é o direito da força; suspende veleidades morais que embasam a lei.

 

Como explicar a divisão da esquerda diante da crise?

A guerra desperta paixões; desnorteia. Não há espetáculo mais macabro e atraente. Os seriados sobre os vikings, mongóis e romanos deslumbram pelo tanto de sangue exibido.

A esquerda, amarrada pelo jogo institucional, faz opções oportunistas. Muitos se dobram à guerra de narrativas vitoriosamente conduzida por Washington.

A fragilidade da esquerda se revela quando militantes dizem ser contra a guerra. Ora, só psicopatas diriam o contrário. Outros alegam preferir não tomar partido.

Essas são formas de não ver o processo histórico real. É um jeito de vestir a batina do abade Saint Pierre. Há militantes de esquerda que se reclamam humanitaristas, como se os que fazem a guerra também não reclamassem a mesma condição! Os que se enfrentam em campos de batalha são feras portando sentimentos sublimes, tanto que se acreditam abençoados por deuses.

 

O Brasil deve se posicionar?

É cinismo ou parvoíce dizer que o Brasil não deve se posicionar por que não tem nada a ver com isso. Não há isenção possível quando humanos são destroçadas em qualquer ponto do planeta. No mais, dos efeitos do conflito, ninguém escapa.

Dizer que não se deve entrar no jogo de potências imperialistas é insustentável. Seguindo esse princípio, teríamos lavado as mãos na Segunda Guerra Mundial.

Dizer que não se pode tomar partido por ser a Rússia uma autocracia conservadora, é tergiversação enganadora cujo resultado seria endossar “democracias” que açambarcam a riqueza e o poder em detrimento da humanidade.

 

O Exército russo está sendo bem-sucedido?

Sim, revela preparo, eficiência, competência, disciplina e planejamento sofisticado em terra, mar e ar, além de eficácia no espaço cibernético. Oficiais de estado-maior de todos os países analisam embasbacados a fabulosa máquina de guerra, talvez a mais poderosa do mundo.

É orientado por objetivos políticos claros: não destruir o país invadido, mas garantir que não sirva de base de ataque.

Ao pedir ingresso numa aliança militar impiedosa; ao desejar a instalação de artefatos de destruição em massa em seu território, o comediante-presidente da Ucrânia agiu como marionete de Washington.

Chamar jovens para resistir com coquetel molotov e espingardas é manda-los à morte. É crueldade pura. Os russos querem preservar a Ucrânia. Não fazem como Washington e a Europa costumam fazer. Do contrário, Kiev estaria destroçada e o comediante, morto.

Os “ocidentais” que incentivam a resistência ucraniana ou agem com instinto assassino ou não entendem nada. A primeira opção é a correta.

 

Como se explica a posição da Europa, diretamente afetada?

A Europa não é unida nem tem voz altiva. Obedece às ordens de Washington.

Além disso, não superou velhas rivalidades e preconceitos em relação aos russos. A Europa nunca admitiu a vizinhança com um país forte. A Rússia sempre humilhou o europeu que invadiu seu território. O ressentimento faz parte da cultura europeia e resume a barbárie moderna. Nada mais impiedoso do que o seu xenofobismo.

Não é à toa que a direita está em ascensão na Europa há pelo menos três décadas. O primeiro ministro do Reino Unido, o presidente da França e o chanceler da Alemanha retratam a degradação política e moral da Europa.

 

As sanções surtirão efeito?

Surtirão, mas são imprevisíveis e podem gerar efeitos catastróficos para a Europa e os EUA. O mundo todo sofrerá porque está muito interligado. Alguns ficarão mais ricos, a maioria amargará penúria sem conta. Talvez haja mais sofrimento fora do que dentro do campo de batalha.

A Rússia se preparou. Sabe pensar estrategicamente, assim como a China. Washington arrota poder e mostra primitivismo. Como falar em diplomacia e dar as costas ao chanceler russo no plenário da ONU? Isso serviu para passar na Globo. Não revelou força, mas fraqueza e estupidez.

 

A China estará firme no apoio à Rússia?

Sim. Sem a Rússia, a China estaria militarmente enfraquecida e teria seus planos de expansão conturbados. Moscou sabe disso. Não agiria contrariando a China, que mostra ponderação e evita exibição gratuita da força de que dispõe. Aliás, as potências vivem exibindo e escondendo a força de que dispõem.

É bobagem dizer que a Rússia está isolada quando tem a China ao seu lado, assim como outras potências médias.

 

Há chances reais de negociação?

Teoricamente, sim. Na prática, não. Teoricamente, basta delimitar a área da Otan e parar de sacrificar a população ucraniana. Na prática, isso seria capitulação. Implicaria em admitir a justeza da reivindicação russa e aceitar a multipolaridade, o que não está no escopo de Washington.

A capitulação seria imaginável com um incontível movimento popular mundial, com incidência particular nos Estados Unidos. De outra forma Washington seguirá acompanhando os ditames do capital especulativo que domina as grandes empresas, em particular o complexo industrial-militar, doido para vender armas.

 

O que mudará nas relações internacionais?

Tudo. Algumas mudanças serão súbitas. Outras, podem se definirão em tempo indeterminado. O rol de traições será um capítulo especial. Amigos de infância se esfaquearão pelas costas.

A guerra tem o condão de alterar padrões de comportamento, valores, esteios morais e até predileções estéticas. Stravinsky anunciou a hecatombe de 1914-1918 revelando estruturas sinfônicas inovadoras, usando timbres, dissonâncias e assimetrias nunca antes experimentadas.

A governança global mudará forçosamente. Imaginar o mundo quando está em curso o reordenamento da hegemonia é um exercício inglório, mas inevitável. Hoje, todos se perguntam: o que será, que será…

 

Há risco de guerra nuclear?

Sim. A Rússia não pode perder. Tem bala para resistir até o fim. Aceitar perder é aceitar a autodestruição. Isso é impensável.

A doutrina militar russa prevê o uso de armas atômicas táticas e estratégicas. É difícil predizer que o fogo se limitará às fronteiras da Rússia.

Moscou está advertindo, advertindo, advertindo… Não é razoável ignorar a voz de quem tem botões fatais ao seu alcance. Enfim, a Rússia não pode perder a guerra.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC/UFF, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.

 

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