Alain Badiou – os diferentes regimes de discurso – II

Josef Albers, Diptic, 1934
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Por ROGÉRIO SKYLAB*

Considerações sobre o livro São Paulo: a fundação do universalismo”.

O desencadeamento do estudo de Alain Badiou sobre Paulo, desemboca surpreendentemente no campo de concentração. Recorrendo a Primo Levi, o campo será visto como produção de diferenças a todo instante, onde o si próprio é uma substância fechada a gerar nomes fechados. Já na predicação paulina, a verdade é resultante de um trabalho e o novo sujeito se identifica à figura do militante.

1.

Alain Badiou aborda as diferenças entre Paulo e Nietzsche, ambos ligados ao acontecimento. Mas, segundo Badiou, há uma antecedência de Paulo em relação a Nietzsche, o que leva o filósofo alemão a não perdoá-lo, falsificando-o.

Não seriam rivais no sentido de pensarem diferentemente, mas adversários. Contra a afirmação de Nietzsche na seção 43 de O Anti-Cristo, segundo o qual, Paulo teria deslocado o centro de gravidade da vida para o nada, Badiou retoma um fragmento de Paulo: “É aqui e agora que a vida faz sua revanche sobre a morte, aqui e agora que podemos viver afirmativamente”.

Ao proceder a essa falsificação deliberada de Paulo, esquecendo inclusive que suas epístolas são anteriores às narrativas evangélicas, Nietzsche acabaria por proceder exatamente como todo teórico da verdade, o qual não acredita que a verdade esteja relacionada à história, ao testemunho ou à memória.

O erro de Nietzsche, no entanto, seria interpretar que o deslocamento do centro de gravidade da existência, em Paulo, tivesse sido em conformidade à morte e ao ódio. Para Badiou, esse deslocamento foi segundo o princípio de sobre-existência, próprio do acontecimento, a partir do qual a vida afirmativa foi restituída e refundada (Nietzsche também teria transferido o centro de gravidade da vida dos homens presos a uma decadência niilista).

2.

Sob esse prisma, e sublinhando a anterioridade e invenção de Paulo, a grande política é a história quebrada em duas, Zaratustra é a declaração subjetiva que se apoia em si mesma, e o super-homem, o novo homem como fim da escravidão e afirmação da vida.

3.

Vale ressaltar, como característica fundamental do terceiro discurso, o cristão, a sua forma dividida, que porta o universal: “pois vós não estais sob a lei, mas sob a graça”. A famosa passagem de Paulo indica uma estrutura na frase que contém uma suspensão e uma afirmação: “não… mas”. A partir de uma nova época, o sujeito, em função do acontecimento que abre a via do espírito, passa a ter uma nova constituição: a forma dividida da carne e do espírito, vias subjetivas que têm como objetos, respectivamente, a morte e a vida. Essa estrutura dividida é fundamental porque nem é legalidade convencionada e estado particular do mundo por um lado (caso grego e judeu), nem é espírito puro por outro lado (discurso miraculoso).

Com referência a esse último discurso, a graça estabelece um vínculo com a verdade, constituindo uma espécie de habitação última. O que vai constituir singularidade ao discurso cristão seria então sua fuga do estado e a afirmação do devir. Daí o não e o sim. Há uma preocupação, ao dizer “não” à legalidade, de não cair no seu lado oposto, que seria, no final das contas, uma forma de se reduzir àquilo que antes era negado. Fugir do estado é não cair no perigoso jogo das oposições. Daí o não e o sim de uma estrutura dupla.

4.

Há que se estabelecer a diferença entre Heidegger, Paulo e Hegel: no primeiro, estaria sublinhado o estado de coisa ou situação (nesse sentido, nos referimos ao processo de encarnação e à finitude, o ser-para-morte); o contrário disso é o acontecimento, por natureza, irredutível à morte e, portanto, ligado não à encarnação, mas à ressurreição (aqui é extraído o local, a situação); e, por fim, o pensamento dialético que nega a morte, conservando-a.

Nesse último aspecto, a ressurreição estaria ligada ao Todo Poderoso: momento de autodesenvolvimento do Absoluto. O tempo torna-se fundamental, decisivo, porque os estágios anteriores seriam exigíveis para a espiritualidade se exteriorizar na finitude, conforme o pensamento dialético hegeliano.

O que Alain Badiou sublinha em Paulo, indo na contramão desse pensamento dialético, é uma espécie de concepção laicizada da graça, ligada ao processo da universalidade da verdade: ” toda existência pode um dia ser transida pelo que lhe ocorre e, a partir daí se dedicar ao que vale para todos”. Nesse sentido, o acontecimento ou a graça, pelo qual somos afetados, não é proveniente da negação anterior. É como se nos viesse, não de um desenvolvimento, mas através de um encontro fortuito, nas cesuras da lei.

Com isso, o acontecimento se desliga da situação. E, consequentemente, o sofrimento não é revestido de uma função redentora. As atribulações não têm significação salvadora. O acontecimento em Paulo não é consequência, mas apenas o consolo, a aposta para quem sofre. Diferentemente do pensamento dialético, Paulo não faz propaganda masoquista.

5.

Mas se Paulo foge da perspectiva dialética ao divisar a morte como configuração do real pela via subjetiva da carne, e, portanto, não tendo nenhuma função sagrada, por outro lado, a morte e a vida seriam pensamentos, dimensões emaranhadas no sujeito, e, consequentemente, seriam questões de escolha a ser efetuada por esse próprio sujeito. Com isso, para Paulo, a separação platônica corpo e alma, a primeira sendo mortal e biológica, e a segunda, expressão da vida e sobrevivendo ao corpo, perdem ressonância. Corpo e alma lhe são indiscerníveis. Essa separação substancial, para Paulo, perde o sentido. O que existe é o sujeito: a ressurreição do corpo é a ressurreição do sujeito. E se há duas vias subjetivas, morte e vida, carne e espírito, são maneiras de ser no mundo.

6.

Imanentizar as condições do acontecimento não significa torná-lo necessário. Porque o acontecimento é graça incalculável. Daí a igualdade com Deus que a morte de Cristo propicia, entra na composição do acontecimento, mas não é o acontecimento. Este, para sê-lo, extrai o local mortal.

A morte, vista sob essa perspectiva, da igualdade e da filiação, rompe então com a transcendência radical do pai, criando o local pertinente ao acontecimento. É a isso que Paulo chamará de reconciliação. Mas a ressurreição de Cristo é a invenção de uma nova vida pelo Homem. Existe então uma diferença e uma não contém a outra; podemos dizer, no máximo, que uma se infere da outra. A morte de Cristo faz com que a ressurreição de Cristo, isto é, o acontecimento propriamente dito, seja destinado a situação subjetiva do homem. Mas destinar não significa ser. A ressurreição de Cristo não contém a sua morte.

7.

A lei e o acontecimento exprimem a exceção e o excesso. No primeiro caso, Deus, que Alain Badiou denomina “Um” falacioso, somente é designado àqueles que reconhecem e praticam as injunções que a lei enuncia. Com isso, o um divino é objetivado, designando uma particularidade e, consequentemente, sua unidade é decomposta e se ausenta. A lei é sempre predicativa, particular e parcial; a salvação, nesse caso, está à mercê das obras precitadas por ela e só é conseguida se houver merecimento. Com isso instaura-se uma abordagem jurídica ou contratual do sujeito: o que fundamentam um homem são os seus direitos ou o que lhe é devido. Os direitos humanos têm aqui sua inscrição.

A salvação, no entanto, pode advir da graça, da gratuidade do acontecimento. Neste caso, não é prescrita: é incalculável. Aqui, o um divino deixa de designar uma particularidade, destinando-se a todos, sem exceção, porque não tem nenhuma lei que o restrinja. A universalidade, portanto, tem relação com a unicidade que não foi decomposta nem foi objetivada. Só pode se destinar a todos, só pode ser universal, o que é uno (ao invés dessa unicidade nos levar à especulação sobre a substância na filosofia grega, ou sobre o ser supremo no discurso judaico, em Paulo nos remete à destinação).

Essa gratuidade do acontecimento é subjetivado como fé. O que importa aqui não são as obras prescritas pela lei e realizadas pelo homem, fundamentando seus direitos, mas a declaração do acontecimento através da fé, de maneira gratuita tal como foi o acontecimento. A salvação aqui não vem como um direito humano, mas como dom.

A diferença, então, entre a boa obra e o acontecimento, ambos demasiadamente humanos, é que a primeira é nomeada, controlada e enumerada pela lei; já o acontecimento não tem predicado, é singular e sem número (nada o controla e, por isso mesmo, excede a si próprio – vive sob o regime do excesso).

8.

Por isso, um lance de dados jamais abolirá o acaso. O pensamento emite o lance de dados, ele é o próprio lance de dados. E, no entanto, não consegue pensar até o fim o acaso que dele resulta. Isso porque o acaso é excessivo sobre o próprio pensamento que o condiciona. Entretanto, o acaso foi retirado do pensamento. Talvez, possamos então pensar o acaso como o acontecimento extraído, vindo a tornar ativo esse próprio pensamento.

9.

Há que se considerar duas doutrinas do múltiplo: uma multiplicidade marcada pelo predicado do seu limite, que é representado pelo mandamento da lei (nesse caso, a lei comanda uma multiplicidade mundana predicativa, dando a cada parte do todo o que lhe é devido); e uma outra espécie de multiplicidade que excede o seu próprio limite, impedindo assim que seja representada como totalidade (não só excede a si mesma como às distribuições fixas da lei).

O pecado só é possível dentro do regime da multiplicidade mundana: a lei proíbe o objeto, o desejo transgride, tornando-o objeto de desejo. Essa autonomia do desejo em relação ao sujeito, que é consequência da lei, criando uma espécie de automatismo da repetição, próprio do inconsciente, veio a produzir a impotência: a incapacidade do pensamento vivo prescrever a ação. A lei, portanto, regendo essa espécie de multiplicidade, a que damos o nome de mundana, viria a produzir o descentramento do sujeito, antes, pleno: o saber e a vontade de um lado, e o fazer e agir do outro; a vontade e o eu do lado da morte; o pecado e o desejo do lado da vida. A interpretação lacaniana do cogito ressoa essa mesma situação de uma existência sob a lei: onde penso, não estou lá; e onde estou, não penso.

O discurso cristão, através da ressurreição de Cristo, reorganizaria essa divisão, sob o signo do acontecimento: nesse caso, o sujeito é reativado à serviço da verdade (o pensamento é sustentado na potência do fazer), impedindo-lhe o repouso; e a morte passaria a estar do lado do desejo inconsciente. Nessa reorganização sob o regime de uma outra espécie de multiplicidade, a excessiva, a via trans-literal, que não confere prescrição à salvação e que é propriamente a via do pensamento, torna-se ativa.

Daí porque é o acaso, enquanto acontecimento, que torna ativo o pensamento.

10.

Alain Badiou vai sublinhar o paralelo entre acontecimento e verdade, assim como a diferença entre fé e amor. Sob o signo da lei, o sujeito havia se exilado na forma fechada do Eu, o que proporcionava uma separação entre o pensar e o fazer (fazia-se o que não se pensava em função da autonomia do desejo).

Restaria pensarmos uma outra espécie de lei, não mais atrelada a mandamentos legais (nem à carne, nem à situação) mas ao espírito. Uma lei, portanto, universal. Para tanto, essa lei, não literal, porque não prescreve a situação através de ritos ou pessoas, isto é, sem a forma negativa dos mandamentos, tem uma máxima única: “ame teu próximo como a ti mesmo”. Pura afirmação, essa lei de ruptura com a lei convencional, é antecedida pela força do amor, que vem lhe atestar.

Haveria, então, uma antecedência a essa nova lei: a força do amor, que é uma força subjetiva, fazendo do pensamento uma potência. A fé prescreve a possibilidade, mas o amor a realiza. A diferença entre ambos talvez seja a mesma entre situação e salvação. O homem é justificado pela fé (a fé é o espaço de uma libertação; mas ela é, por si só, incapaz de efetuar a libertação). A fé é a declaração de uma possível potência do pensamento, aliás, é da essência da fé declarar-se publicamente: convicção declarada. Nesse sentido, o sujeito que encontra a unidade viva do pensamento e do fazer, difere-se completamente do sujeito místico, porque, para este, sua convicção íntima não precisa ser declarada.

O que a máxima da nova lei vai expressar é justamente essa subordinação à fé. Entretanto, essa subjetivação pela fé, há que sofrer o desdobramento para todos. São esses dois momentos que fazem parte dessa nova organização subjetiva: (1) a fé e o amor (o amor próprio como consequência da ressurreição; (2) o desdobramento desse amor, pela convicção, para todos – essa última sendo a dimensão militante de toda verdade).

A fidelidade da verdade ao acontecimento advém, portanto, da sua universalidade, que é o que a faz existir no mundo, e cuja forma subjetiva é o amor. Dimensão militante e processo subjetivo da verdade.

Talvez pudéssemos concluir, aqui, dizendo que a destinação para todos é o que faz a verdade ser militante: a materialidade do universalismo é a dimensão militante de toda verdade. Enquanto que o seu processo subjetivo é o amor.

11.

Cabe sublinharmos mais um elemento, além da fé e do amor, que vai constituir com ambos a nova organização subjetiva: a esperança.

A esperança, enquanto energia militante, não vai se revestir, nessa nova organização, de uma esperança de recompensa. Se o fosse, estaria realinhada ao objeto. Porque a esperança de uma justiça distributiva, expressa no juízo final, própria da doutrina objetivante clássica, vislumbraria sempre recompensados e fulminados. A essa vitória objetiva, Paulo se contrapõe, acenando a figura do desinteresse: a esperança não espera nada; é apenas paciência, resistência e fidelidade. Ou seja, a esperança no sujeito, permaneceria atrelada ao subjetivo puro, à vitória subjetiva.

Dentro dessa nova perspectiva, o inimigo não é um objeto a ser fulminado, assim como a igreja ou o sindicato não seriam os objetos vencedores. O inimigo é uma via do pensamento, figura subjetiva da morte, co-presente no destino universal do amor, não instruindo nenhuma divisão judiciária entre salvos e condenados.

12.

A função mais importante da esperança nessa nova configuração subjetiva, seria de articular o singular e o universal. E dessa forma, estabelecer uma unidade subjetiva (a esperança é a subjetividade dessa unidade). A singularidade, aquilo que faz me identificar como sujeito, meu amor próprio, meu pensamento, tudo isso que daremos o nome de fé, é algo que age. Não é uma fé que espera e acredita no futuro, na justiça. Mas essa abertura à verdade seria insuficiente se não fosse destinada a todos, e isso só se realiza através da força do amor. Pensamento e força vão se articular através da esperança, na medida em que vão se exercitar no aqui e agora. A prova não tem o sentido da aflição que será recompensada no futuro, mas a tenacidade do amor. A esperança é, portanto, esse exercício diário do aqui e agora, a universalidade prática do amor na prova do real. Por isso, para Paulo, a esperança não engana.

Interessante observarmos que, para Jacques Lacan, a angústia não engana porque resultado de um excesso de realidade. Já em Paulo, o que não engana, a esperança, não é o resultado do real, mas o que o indica. A esperança é esse aqui e agora, articulando pensamento e força, o singular e o universal, concedendo a unidade da nova configuração subjetiva.

13.

Sem a instância do universal, o singular se torna apenas particular, ou seja, uma questão de número. Constituído pela lei, esse particular vai estar inserido na via subjetiva da morte.

14.

Diante do acontecimento, assim como diante do momento pós-acontecimento, qual seja, o do procedimento da verdade, nos vemos bifurcados entre o diferente e o mesmo. E nesse sentido, é através dessa dupla convicção, que o discurso cristão, via predicação paulina, vai se estabelecer. Ele se diferencia, ao mesmo tempo, do sectarismo moralizante, baseado em costumes e opiniões, assim como se diferencia da perspectiva filosófica. O procedimento da verdade vai herdar esse universalismo instaurado por Paulo: a opinião é externa e compatível ao trajeto da verdade (para a filosofia, a opinião é externa e incompatível, enquanto que, para o moralista, é interna ao projeto da verdade).

Quando Paulo se insurge contra as duas grandes referências históricas da época, o discurso filosófico e o discurso judaico, na verdade, ele se põe a instaurar as bases do universalismo. Isso não significa abolir a particularidade judaica, nem desconsiderar o velho testamento, muito presente em seus textos. Na Epístola aos romanos, capítulo 2, versículo 10, está transcrito “Glória, honra e paz para qualquer um que faz o bem, para o judeu em primeiro lugar, em seguida para o grego”. Ou seja, o lugar dominante da diferença judaica é mantida, mas não há submissão da universalidade pós-acontecimento a essa particularidade. É importante sublinhar esse aspecto para diferenciarmos a predicação paulina, base do discurso cristão e universalista, dos dois tipos de discursos que prevaleciam na época.

A desconsideração da situação por parte da filosofia e a desconsideração do “para todos” por parte do discurso judaico, são abandonadas por Paulo. Seu trabalho pós-acontecimento, entretanto, não abole as referências citadas, apenas efetua um deslocamento, enquanto que no evangelho de João, bem posterior às epístolas de Paulo, se reinstaura o regime diferenciador das exceções e das exclusões. Em Paulo, nem a causa secundária (distribuição de responsabilidades), nem a causa essencial (a teologia trinitária) são contempladas.

15.

A força do universal sobre a diferença como diferença, vale ser conferida no trabalho realizado por Paulo porque não há como desconsiderar a igualdade na perspectiva do universalismo. É a técnica do contrapeso de Paulo: ele nunca vai entrar numa controvérsia sem saída, discordando de um rito cultural; mas, em contrapartida, ele neutraliza a desigualdade do rito, através do que Badiou chama de “simetrização segunda”: a uma diferença cultural, ele complementa com outra diferença, neutralizando a desigualdade. Conforme a primeira epístola aos coríntios, capítulo 7, versículo 4, ” a mulher não tem autoridade sobre seu corpo e sim o marido”; mas o texto continua “e, paralelamente, o marido não tem autoridade sobre seu corpo e sim sua mulher”.

Ao invés de obrigações unilaterais, Paulo instaura as obrigações simétricas, estabelecendo um igualitarismo universalizante, forma essa de reconhecer o universal pelo diferente. Em outras palavras, é uma das formas como o universal se apresenta. Na música, a mesma melodia não poderia ser reconhecida se não fossem os diferentes timbres. É assim que a verdade atravessa todas as diferenças, neutralizando a desigualdade. Mas na universalidade da declaração do acontecimento está a forma do universal sobre a diferença como mesmo.

A força do universal se apresentaria então sob essas duas perspectivas: como diferente e como mesmo; como mundo e como acontecimento.

16.

O corte que Paulo estabelece não diz respeito ao conteúdo explícito da doutrina cristã, mas à asserção mitológica da ressurreição, esse enunciado narrativo que mais tem a ver com a fábula do que com um acontecimento real. Isso dá aos seus discursos uma característica própria que os diferenciam tanto da Filosofia quanto das práticas com as quais se identificam a arte, a ciência, a política e o amor. Para estas, o que se evidencia é a produção de um universal que vai estar atrelado aos procedimentos de verdade efetivos ou reais. Já para a Filosofia, a questão está em forjar a categoria da verdade, ou seja, as categorias gerais do universalismo.

O corte que Paulo estabelece será de natureza teórica – não lhe interessa nem as categorias gerais do universal, nem a produção desse universal atrelado ao real, mas as leis da universalidade em geral: o pensamento universal, ligado que está ao acontecimento singular e fictício, se efetua como força (não há diferença entre dizer e fazer, ou, entre pensamento e força) e se destina a todos. Nesse sentido, o universalismo, e sua origem fictícia o prova, é uma produção subjetiva absoluta. Parte-se das alteridades para se produzir o Mesmo e o Igual.

Sua origem é o acontecimento enquanto graça supranumerária para toda particularidade (singular), e o resultado do procedimento de verdade se sustenta por si só, independentemente do Tribunal ou da Crítica (nesse caso, nem é judicativo, nem predicativo) – o que vem estabelecer o sujeito militante da verdade, como contraponto ao sujeito transcendental ou substancial. A verdade é resultado de um trabalho.

17.

Por isso, o pensamento jamais espera o acontecimento. Já que o pensamento se efetua como força, ele é sempre atual, operante. Enquanto tal, foge da conformação. Aqui cabe fazer uma distinção: o universalismo, que Paulo estabelece as fundações, nada tem a ver com a dialética; não se trata de negar o particularismo; o universal é o encaminhamento de uma distância concernente a uma particularidade sempre subsistente. Viver com o século mas sem deixar se conformar. E a renovação está sempre no pensamento.

18.

Alain Badiou, ao se insurgir contra o argumento de que o universalismo como produção do Mesmo, teria produzido o campo de concentração, em que cada um não sendo mais do que um corpo à beira da morte é absolutamente igual a qualquer outro, demonstra a impostura de tal argumento recorrendo a Primo Levi. Segundo este, o campo produz diferenças a todo instante e a diferenciação incessante do ínfimo é a tortura. Pois essa produção incessante de diferenças a que o campo dá vazão obedeceria à lei do diferente, à lei da exclusão que delimita a raça superior como diferença absoluta. Neste caso, o “como a ti mesmo” não se deixa projetar em lugar algum, é uma substância fechada a gerar nomes fechados, atribuindo predicados e valores hierárquicos a subconjuntos particulares.

No discurso cristão, cujas bases são estabelecidas por Paulo, a produção do Mesmo é interna à lei do Mesmo, segundo a qual, o militante da verdade identifica-se, como qualquer outro, a partir do universal: “ame o outro como a ti mesmo” – substância que se abre, em detrimento a sua própria particularidade. Os nomes se declinam e se declaram em todas as línguas, através de todas as diferenças – nome anterior à torre de babel, mas que circula por ela; nomes como “esperança”.

*Rogério Skylab é ensaísta, cantor e compositor.

Para ler a primeira parte do artigo clique em https://aterraeredonda.com.br/alain-badiou-os-diferentes-regimes-de-discurso/?doing_wp_cron=1645905687.5408229827880859375000

Referência

Alain Badiou. São Paulo: a fundação do universalismo. Tradução: Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo, Boitempo, 2009, 142 págs.

 

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