Até os estertores da morte

Imagem: Nicolas Postiglioni
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JEAN PIERRE CHAUVIN*

Quero deixar minha vida em ordem, em perfeito acordo com os costumes da santa inquisição neopentecostal

Estimada leitora, ou estimado leitor, data vênia, eu estava completamente errado. Perdoe-me por levar 49 anos e oito meses para percebê-lo. Felizmente, não há mal que tanto perdure, haja vista o cultivo da ciência e da cultura favorecido pela evidente harmonia social que nos une – como se percebe no modo como cultivamos a democracia, a laicidade e o combate aos preconceitos, ainda que persistentes.

Desculpe-me por citar um livro meio antigo, mas Aristóteles ensinava, na Poética, que o ethos do herói se forja nos momentos de escolha. Eis, portanto, o relato da minha decisão, para registro e reconhecimento de firma: “A esta altura desta vida mirrada, frente a acontecimentos tão egrégios, rasgarei todas as camisetas e camisas-polo avermelhadas; farei a mochila vermelha em pedaços; depositarei o novo estojo de lápis vermelho na lixeira mais próxima (nunca se sabe a consequência de doá-lo para outra vítima)”.

Ficou bom assim? Digo mais. Felizmente, sempre achei cueca vermelha cafona e, por sorte, ou graça de deus, nunca recorri a meias vermelhas, pois não teria o que combinar com elas. Melhor ainda, tive três automóveis: um deles era cor de chumbo; o segundo, bordô; o terceiro, vermelho vivo (não por minha culpa, mas por recomendação da concessionária). Ainda bem que me desfiz de todos eles. Não haverá melhor ginástica que correr atrás do ônibus e trabalhar o peitoral, esmagado entre gentes, quando no metrô. Mas conversávamos sobre arrependimento contrito. Voltemos ao tema.

Ao me livrar do vermelho e dependurar a bandeira com as cores de Bragança no lustre, tento imitar um sujeito relativamente ilustre do século V. Quando se converteu ao cristianismo, Santo Agostinho gastou centenas de páginas para contar a sua infância e sua curiosa relação com os maniqueus. Se me permite o reparo, note como sou inovador. Levo sobre ele a vantagem de fazê-lo em cinco ou seis parágrafos, o que me aproxima de um Brás Cubas, mas também do Quincas Borba, quando escreve uma carta violenta (e que faz rir) ao futuro herdeiro Rubião.

Convenhamos: tão elevado poder de síntese só se explica de duas formas: (1) como não sei um milésimo do que o Bispo de Hipona sabia, nada mais justo que me limitar a um brevíssimo artigo de autocensura; (2) a tomada de consciência ufano-patriótica e moral teísta permitirá que eu transite pelas ruas da Pauliceia em segurança, evitando que os brutamontes, em bandos, convertam-me a votar em outro candidato a tapas.

Você não imagina como está sendo libertador subordinar-me compulsoriamente a um regime totalitário, destruidor, mitômano, sádico, piegas e negacionista. Mas, para isso, é preciso disciplina e coragem. Acima de tudo, será preciso abandonar qualquer espírito crítico; simultaneamente, evitar discutir a concepção unidimensional dos apologetas do neonazismo em São Paulo e no Brasil.

Nada será mais tranquilizante que trabalhar (se ainda houver emprego) até os estertores da morte: sensação quase eterna de produtividade. Puxa, somente agora ocorreu que preciso recusar o convite honroso a prefaciar livros; evitar a redação de artigos não lucrativos ou sem serventia; deixar de orientar alunos de iniciação científica, do mestrado e do doutorado (especialmente aqueles que levam a pesquisa tão a sério que não podem continuar a fazê-lo sem bolsa). A acusação de que sou desocupado por contar com duas “férias” por ano talvez faça sentido para um sujeito antiuspiano.

Mas, de volta à paleta de cores. Acabo de perceber que terei que destruir o mouse vermelho sangue, para que o próximo prestador de serviços que porventura vier não irradie misérias a esse respeito e despeje meu nome no cadastro dos inimigos do Führer – sujeito tão patriótico que deseja compartilhar o pouco que resta do território com os ricos irmãos do Norte. Puxa, agora lembrei que a sanduicheira tem coloração rubra. Deixe-me pegar o martelo novamente. Pronto. Nenhuma ameaça imediata. À vontade. Pode entrar. O apartamento é modesto. Vossa mercê não repare na bagunça. Aquela loucinha é de hoje cedo. Madruguei para vender aula… Ah, não lhe contei que sou profissional e não amador? Sabe o que é? Como não tenho patrocínio, por não ser tão bom esportista, preciso vender minha força de trabalho. Sim, leio e escrevo, basicamente.

Você viu como não sobrou qualquer eletrodoméstico, utensílio ou cartaz subversivo por aqui? Deve ter sido a intuição que mandou encomendar estantes e prateleiras brancas… Como é? Aquele livro lá em cima? Perdoe-me: como estou sem óculos não consigo discernir bem. Imagine se eu teria um nicho com obras de Friedrich Engels e Karl Marx na sala de visitas! Jamais… Coisas ultrapassadas e de mau-gosto. Ah, bem, não foram esses que você viu… Puxa, tem razão: ainda tenho uns treze livros de lombada vermelha, incluindo A Nova Razão do Mundo, de Dardot e Laval. De que ele trata? Como lhe respondo sem me comprometer?  O senhor releve: mal me recordo do teor. Deve ser o cansaço diário, despendido em variadas formas de resistência.

Não, não. Não frequento terreiro. Mas, sua senhoria me perdoe: também passo longe dos templos. Igreja? Raro, raro: quando entrava em uma era mais por interesse histórico. Isso, isso: coisa de professor. Ultimamente, evito entrar, mesmo. É que, vez ou outra, aparecem sujeitos que gostam de ofender os padres. Não é crítica, não. Foi o que li em alguns jornais e escutei dos depoimentos. Nesse aspecto, estou mais tranquilo. Tento ser virtuoso, a despeito do ateísmo. Acho, inclusive, que meu CPF está limpinho. O score não é tão alto porque estou pagando pelo novo financiamento habitacional. Sabe como é, né? Somos tão bem remunerados, tão bem reconhecidos pelo nosso ofício que mantenho conta em dois bancos para me distrair.

Ah, agora você está curioso por minha vida pessoal? Sem problema algum. O que quer saber? Mande lá… Sim, fui casado. Hoje só namoro, entende? Ah, estou em pecado? E rachadinha, também é errado? E sigilo secreto? Ah, não vem ao caso… compreendo: são os velhos-novos critérios do desgoverno. Puxa, então preciso correr. Longe de mim buscar encrenca com os cidadãos de bem.

Quero deixar minha vida em ordem, em perfeito acordo com os costumes da santa inquisição neopentecostal, também importada dos EUA, feito Coca-Cola, quadrinhos e pipoca de micro-ondas. Vai que vossa senhoria manda um emissário da ordem e dos bons costumes revistar o apartamento. Darei um basta exemplar nessa relação perniciosa com a guria, levando a ela não provas, mas convicções. Senão hoje, amanhã faço isso na primeira hora. Como? Convoco a sujeita para uma entrevista e digo que está tudo terminado. Você tem razão: preciso evitar que volte a pintar um clima.

*Jean Pierre Chauvin é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Mil, uma distopia (Luva Editora).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Arquétipos e símbolos
Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência
Apelo à comunidade acadêmica da USP
Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Carta para a Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional – AUCANI
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Fundamentos da análise social
Por FABIO DE OLIVEIRA MALDONADO: Apresentação à edição brasileira do livro recém-lançado de Jaime Osorio
Carinhosamente sua
Por MARIAROSARIA FABRIS: Uma história que Pablo Larraín não contou no filme “Maria”
A biblioteca de Ignacio de Loyola Brandão
Por CARLOS EDUARDO ARAÚJO: Um território de encantamento, um santuário do verbo, onde o tempo se dobra sobre si mesmo, permitindo que vozes de séculos distintos conversem como velhos amigos
O martírio da universidade brasileira
Por EUGÊNIO BUCCI: A nossa universidade precisa se preparar e reforçar suas alianças com suas irmãs do norte. O espírito universitário, no mundo todo, só sobrevive e se expande quando sabe que é um só
Ideologias mobilizadoras
Por PERRY ANDERSON: Hoje ainda estamos em uma situação onde uma única ideologia dominante governa a maior parte do mundo. Resistência e dissidência estão longe de mortas, mas continuam a carecer de articulação sistemática e intransigente
A ampliação do Museu de Arte de São Paulo
Por ADALBERTO DA SILVA RETTO JR.: O vão livre do MASP será um espaço inclusivo ou excludente de alguma forma? A comunidade ainda poderá ali se manifestar? O famoso “vazio” continuará sendo livre, no mais amplo sentido do termo?
A nova indústria cultural
PorBRUNO BONCOMPAGNO: O monopólio é a tendência unívoca do capitalismo. A outra tendência do capital é desenvolver maneiras de maquiar sua dominação do cotidiano
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES