Por ANDRÉ SINGER*
No Brasil está ocorrendo o mesmo processo de retrocesso da democracia para situações autoritárias que se pode observar em vários lugares no mundo.
O conceito de “autoritarismo furtivo” foi proposto pelo cientista político Adam Przeworski em seu novo livro Crisis of Democracy [Crises da Democracia] (Cambridge University Press, 2019). Nesse delineamento, trata-se de um processo de retrocesso da democracia para situações autoritárias – que está ocorrendo em vários lugares no mundo –, só que de um modo completamente distinto de suas formas anteriores. Antes, o que acontecia eram golpes de Estado, em geral perpetrados pelas Forças Armadas num momento determinado, o chamado dia “D”.
Agora é diferente. Estamos diante de um processo vai se impondo pouco a pouco de maneira gradual e pouco perceptível. Esse contínuo “incrementar” se dá, em segundo lugar, por dentro das leis, e não aparece como uma ruptura constitucional. Uma terceira característica: ele é comandado por líderes políticos democraticamente eleitos.
O resultado da soma dessas três características é o deslizamento da democracia para a ditadura sem que a sociedade perceba o que está acontecendo. Porque aparentemente as instituições democráticas continuam funcionando, só que cada vez mais passam a ser uma mera “fachada”. O Poder Executivo vai ampliando a sua capacidade de domínio e apagando a presença e a força dos contrapoderes.
Esse conceito ajuda a compreender o que está acontecendo hoje no Brasil. Nós estamos vivendo um processo de ruptura da democracia conduzido por um líder democraticamente eleito. O atual presidente da República foi eleito em 2018, em uma competição onde, até segunda ordem, não houve fraude, houve liberdade de expressão e houve liberdade de organização. Temos também a manutenção de um aparente respeito às leis. Mesmo nessa questão tão importante, a intervenção sobre a Polícia Federal, o presidente alega que tem o direito constitucional de agir assim. Ele está argumentando – em consonância com o movimento que a tese Przeworski procura explicar – por dentro das leis. Esse alargamento do Poder Executivo se dá também de maneira incremental, pouco a pouco.
Podemos verificar isso neste exemplo da intervenção na Polícia Federal ou então num caso anterior interessante que foi a nomeação pelo presidente de um procurador-geral que não fazia parte da lista tríplice, de um procurador-geral afinado com a sua visão ideológica. Isto, obviamente, gera consequências práticas, além do fato de que pouco a pouco as instituições vão ficando intimidadas. A própria sociedade vai ficando intimidada.
*André Singer é professor titular de ciência política na USP. Autor, entre outros livros, de O lulismo em crise (Companhia das Letras).
Texto estabelecido a partir de entrevista concedida a Gustavo Xavier, na rádio USP.