Brasil: fora do inferno, longe do paraíso

Imagem: Scott Webb
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Por JORGE ALMEIDA*

Os setores realmente de esquerda que entrarem no governo correm o risco de serem engolidos pelos limites institucionais do estado atual

Uma das postagens mais lúcidas que vi em redes sociais no segundo turno, dizia que a vitória de Lula da Silva não nos levaria ao paraíso, mas fecharia a porta do inferno. Podemos completar dizendo que, entretanto, Lúcifer continua mobilizando os seus demônios atrás da porta das profundezas do mal.

A vitória de Lula da Silva deve ser muito comemorada. Não foi fácil vencer contra o grande aparelhamento da máquina do estado, parte importante do grande capital, o fundamentalismo religioso, as fake news, o clima de ameaças e medo, as pressões das Forças Armadas e a capacidade de mobilização da extrema-direita em geral. Foi a vitória mais apertada de um presidente brasileiro, porém com a maior votação de nossa história.

Significou a garantia de direitos democráticos básicos e do não endurecimento político, continuidade de privatizações e quebra de direitos, caso Bolsonaro vencesse. Inclusive, tentando implementar algum nível de fascistização do regime político, coisa que não ocorreu em seus quatro anos de mandato. Significou, também, uma alteração conjuntural na correlação de forças, mas ainda não estratégica. E incide também para melhorar a correlação de forças na América Latina.

O primeiro objetivo que se colocou foi garantir a posse, pois, apesar dos apoiadores principais de Jair Bolsonaro terem reconhecido a vitória da chapa Lula/Alckmin e o próprio Bolsonaro ter autorizado a transição de governos, ele não reconheceu a derrota de modo claro e público.

A diferença apertada reflete a polarização política e uma vitória que, apesar de alguns discursos ufanistas, nunca esteve “garantida”, nem no primeiro nem no segundo turno. O resultado esteve dentro de uma já histórica divisão “esquerda” versus “direita”, onde a extrema direita se fortaleceu dentro da direita.

Em termos da composição do Congresso Nacional (Câmara e Senado) o resultado foi desfavorável ao novo governo, porém, no seu todo, não muito diferente da anterior. Contudo, dentro do campo à direita houve um fortalecimento relativo de setores da extrema-direita. Com algumas figuras de relevo deste campo, especialmente no senado e no governo de São Paulo.

Evidentemente, é preciso aprofundar o porquê, apesar de tantos desastres e tragédias promovidas pelo governo Bolsonaro, foi tão difícil vencer. Nesse curto espaço não temos condições de aprofundar isso, mas é bom lembrar que não se pode responsabilizar apenas as ações do bolsonarismo e da direita em geral. A campanha ocorrer ao final de um período de 20 anos, iniciado com o primeiro governo de Lula da Silva, e no âmbito do fortalecimento da hegemonia burguesa no Brasil, que avançou desde então. Período no qual a esquerda e os movimentos populares desacumularam política, ideológica e organizativamente. Hegemonia que não foi enfrentada nesta campanha nem tão pouco durante os quatro anos do governo Bolsonaro, que sofreu uma oposição marcada por vacilações.

Sem um balanço rigoroso desse processo, a repetição dos erros estratégicos e táticos e de suas consequências trágicas, poderá voltar a acontecer.

Além disso, durante a campanha muitas concessões foram feitas à ordem, leis e instituições burguesas, que ficaram mais legitimadas no eleitorado anti-bolsonarista. Legitimidade também reforçada devido à pandemia da Covid-19. E, agora, a tendência é o uso dessa legitimidade também contra o próprio governo Lula e os movimentos sociais do campo popular e da esquerda.

O aplaudido STF, também tentará tutelar o novo governo, mesmo modo de agir que terão o conjunto das instituições do estado (e as Forças Armadas em particular), o grande capital, a grande mídia empresarial e as organizações da sociedade civil burguesa em geral.

 

O comportamento de Lula da Silva e Jair Bolsonaro no período de transição

Após o resultado eleitoral, ambos, Lula e Jair Bolsonaro, estão agindo dentro de um perfil esperado.

Jair Bolsonaro continua sendo tutelado, até a posse do novo presidente, pelos mesmos que o tutelaram durante o governo.[i] Vai entregar o cargo e não vai dar um golpe. Não que esse desejo tenha saído de sua cabeça algum dia durante seu mandato, mas porque não tem força nem apoio para isso. Mas, mobiliza suas bases radicalizadas, para defender um golpe, chamado “intervenção federal”. Segue, como já fez durante seu mandato. Porém, seus objetivos são mais limitados, apesar de também bastante ambiciosos.

Antes de tudo, luta para não ser condenado e preso. Nem ele, nem seus parentes nem seus comparsas mais próximos. Pois, não faltam indícios claros de que ele e seus aliados cometeram inúmeros crimes passíveis de muitos anos de prisão. Ele quer mostrar que tem capacidade de criar fatos, que tem força para mobilizar suas bases de modo a provocar uma crise política e institucional bem grande no caso do início dos indispensáveis inquéritos, processos, julgamentos e condenações.

Quer manter uma base de massas própria e continuar como o grande líder da extrema-direita brasileira e a figura central de uma oposição política, social e de massas, ativa e sistemática, da direita em geral, ao governo Lula-Alckmin.

Deseja preparar sua candidatura, como alternativa para 2026. Ou, não sendo isso possível, ter uma alternativa de seu continuísmo. Portanto, precisa manter seus demônios infernizando a vida em setores do estado, da sociedade civil e da estrutura econômica. No entanto, a agitação da extrema-direita que está acontecendo no período de transição, não deixa de ser interessante também para aqueles que o tutelaram durante o governo.

Para as Forças Armadas e aparelhos policiais bolsonaristas, é interessante por que serve como um fantasma de ameaça institucional. Querem impunidade para os seus chefes que cometeram crimes e manter uma tutela institucional na transição e no próximo governo. E também garantir os privilégios corporativos acumulados, assim como parte dos cargos que obtiveram no governo do neofascista. Não apoiam efetivamente um golpe, mas se beneficiam das manifestações e do clima golpista.

Interessa a alguns setores das classes dominantes, porque isso serve de um contraponto a Lula, como uma espécie de pressão contra possíveis medidas que o novo presidente venha tomar contra alguns de seus interesses. Isso inclui, inclusive, setores do grande capital que o apoiaram no primeiro ou no segundo turno, que pretendem manter os privilégios do capital financeiro, do agronegócio, etc.

Interessa também aos parlamentares que não o apoiaram, mas que, em parte, já estão negociando uma transição atendendo demandas de Lula e, até mesmo, um trânsito para sua base de sustentação político-parlamentar. As expressões golpistas servem para melhorar o seu cacife nas negociações.

 

Os primeiros passos da transição

Da parte de Lula da Silva, a rigor, também nada vem ocorrendo fora do esperado. Ele vem construindo uma base de alianças e apoios que envolve setores do grande capital nacional e internacional e setores da elite política da direita. Inclusive, parte daqueles que o apoiaram no primeiro e no segundo turno que estiveram envolvidos e deram sustentação tanto ao golpe do impeachment de Dilma Rousseff, quanto de sua condenação ilegal.

Do mesmo modo, procura aquela parte da elite política de direita corrupta, presente no Centrão, que esteve com Jair Bolsonaro até a eleição do segundo turno, mas que já prepara uma pragmática e fisiológica mudança de alianças.

Lula aposta principalmente na governabilidade por cima, em negociação com o grande capital e a elite política de direita e numa melhora nas condições de vida do povo. Não demonstra interesse em promover uma mobilização popular. Nem agora, contra Jair Bolsonaro e suas manifestações golpistas, nem tão pouco depois.

Pois essas mobilizações poderiam assustar o grande capital e seus aliados políticos de direita, que ele pretende ter em sua base de governabilidade.

Não deseja que essas mobilizações avancem para sustentar reivindicações e eventuais protestos em defesa de conquistas populares que foram atacadas pelo menos desde o governo Temer.

Também vai procurar construir, em médio prazo, uma alternativa sucessória de confiança, preferencialmente do PT ou até mesmo dele próprio (apesar das declarações em contrário) a depender do que venha ocorrer até 2026. Para tudo isso, não pode deixar de começar tomando medidas que atendam seus compromissos de campanha mais amplos e explícitos. Ele vai precisar responder a um passivo grande de demandas populares e de suas próprias promessas.

Na campanha, Lula apresentou propostas que se assemelham mais a uma lista de promessas do que um programa de governo consistente. Uma série de medidas fragmentadas que pretendem melhorar principalmente o crescimento econômico e as condições mais básicas da vida material e educacional do povo. Que podem tirar de novo o Brasil do mapa da fome e a população que voltou para baixo da linha da pobreza.

Como acabar com a fome, especialmente via um novo auxílio emergencial ampliado (novo Bolsa Família), o aumento real do salário mínimo e alguma recuperação imediata do orçamento social e que dê condições para o estado implementar medidas e investimentos que gerem empregos e crescimento econômico. O que requer furar o infame “teto de gastos”. Enfim: pretende a volta de um estado mais ativo no incentivo ao processo econômico, “neodesenvolvimentista”.

Isso tudo numa situação de agravamento da crise mundial estrutural do capitalismo que tende a continuar com forte sinais de baixo crescimento ou recessão econômica, pelo menos em 2023. E num contexto de conflitos geopolíticos e bipolarização interimperialista, entre um bloco liderado pelos EUA e outro pela China. Em compensação, os resultados eleitorais nos últimos anos na América Latina, a recente derrota relativa de Trump nos EUA, a simpatia que gerou em parte dos líderes da União Europeia e as esperadas boas relações com a China, permitem melhorar suas margens de ação.

Uma situação desta pode ser aproveitada por um Estado-nação, desde quando haja um projeto efetivamente de busca da soberania e rompimento com a dependência. Mas um projeto com essa profundidade não existe. Uma simples “atração de capitais” pode melhorar a situação econômica temporariamente, mas não enfrenta nossa dependência estrutural, muito pelo contrário.

Lula tomará também algumas medidas de relativamente baixo custo orçamentário (e até com recebimento de financiamentos “cooperativos” estrangeiros) e alto retorno de marketing político, como aquelas vinculadas à questão ambiental e aos povos indígenas.

Pois, na medida em que hoje são temas que se tornaram pauta de amplos setores do próprio grande capital e da elite política dos países imperialistas – e conta hoje com o apoio da grande mídia empresarial nacional e estrangeira – serão medidas que, apesar da oposição e rejeição dos setores mais reacionários do grande capital nacional e dos ideologicamente mais conservadores, tende a ter apoio e grande repercussão positiva nacional e internacionalmente.

Mesmo porque suas medidas não ultrapassarão os limites do ecocapitalismo. Colocar uma ambientalista com grande reconhecimento no senso comum no Ministério do Meio Ambiente e uma liderança indígena no novo Ministério dos Povos Originários terá essa repercussão.

Colocar uma parte dos ministérios chamados “sociais” nas mãos de figuras consideradas “de esquerda” e, ao mesmo tempo, os ministérios econômicos chave nas mãos de pessoas de confiança do grande capital, é o esperado.

Ter uma política exterior mais ativa e altiva que a atual, que procure ocupar um espaço relevante no cenário internacional, também é o esperado. Ou seja, não bater continência para bandeiras de países estrangeiros, como fez Bolsonaro com os EUA. Nem mesmo tirar os sapatos para entrar nos EUA, como aconteceu com o ministro das Relações Exteriores de FHC.

Porém, tão pouco tomar medidas efetivamente anti-imperialistas, como aquelas propostas por Chávez (como a ALBA) a Lula nos governos anteriores e nunca aceitas pelo líder brasileiro (mas esse é um tema que merece outro artigo).

Enfim, são medidas que não alteram a ordem política de democracia burguesa liberal representativa. Nem a essência da política macroeconômica neoliberal, baseada na “responsabilidade fiscal”. Muito menos a ordem econômica e social capitalista, dependente e submetida ao imperialismo estrangeiro em suas várias vertentes.

Então, será preciso realizar muitas mobilizações sociais populares para garantir os direitos e a revogação das políticas anteriores, como o teto de gastos e o corte do orçamento social e de políticas públicas e, especialmente, as privatizações e a quebra de direitos previdenciários e trabalhistas, temas tratados de modo ambíguo pelo presidente eleito, assim como o de uma “reforma administrativa” que continua um mistério.

Também são desafios a retomada do aumento do salário mínimo acima da inflação, assim como a recuperação das perdas salariais dos servidores públicos durante os governos anteriores, desde o de Dilma Rousseff.

Mas, não está claro como tudo isso será feito pelo novo governo. As expectativas materiais da maioria do povo são significativas, mas as expectativas políticas e ideológicas da maioria de sua militância e eleitorado estão rebaixadas, podendo ser “atendidas” com medidas melhoristas, sem profundas reformas sociais ou um revogaço radical e forte luta política e ideológica contra a cultura burguesa e conservadora. Isso poderá trazer um apoio passivo ao governo, como já aconteceu nos governos anteriores do PT. Mas, apoio passivo não é suficiente para promover transformações profundas, duradouras e “sustentáveis”.

Entretanto, apesar das dificuldades, internas e internacionais, do seu início, o governo Lula-Alckmin tende a começar com uma boa avaliação, pelo menos de sua base eleitoral, especialmente se comparado à tragédia do governo do genocida Jair Bolsonaro. E pode manter uma boa avaliação em seu decorrer. E bons resultados econômicos podem ampliar esse apoio popular inclusive em parte dos eleitores de Jair Bolsonaro.

Mas isso não significa uma transformação qualitativa profunda de nossa realidade nacional nem da nossa inserção subordinada e dependente na ordem mundial imperialista. Isso porque o governo Lula-Alckmin, em meio a seus labirintos, não tende a ser um governo realmente de “esquerda”. Provavelmente se apresentará com uma “cara” daquilo que internacionalmente convencionou-se chamar de “centro-esquerda”, aliado com a direita e procurando um apoio da esquerda, de modo a conter a autonomia e uma postura crítica da esquerda e dos movimentos populares.

Os setores realmente de esquerda que entrarem no governo correm o risco de serem engolidos pelos limites institucionais do estado atual, especialmente num governo pragmático que não pretende romper com a hegemonia burguesa, tendo como horizonte tentar melhorias nas condições de vida do povo, em padrões rebaixados e dentro de um quadro de profunda desigualdades e soberania nacional limitada pela dependência estrutural em relação ao imperialismo.

Enfim, para os movimentos e correntes de esquerda que não perderam uma perspectiva estratégica anti-imperialista e de rumo ao socialismo, há um duplo desafio: enfrentar os demônios do neofascismo bolsonarista (no movimento de massas e na institucionalidade) e mobilizar os movimentos populares em geral para conquistar tanto vitórias imediatas como acumular forças numa perspectiva estratégica.

*Jorge Almeida é professor do Departamento de Ciência Política da UFBA.

Nota

[i] Ver “Bolsonaro e a tutela militar civil burguesa”  e “Quem governa o Brasil?” .

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