Canto estrangeiro

Giovanni Guaccero - Canto Estrangeiro - Encore Music, 2022 arte da capa: Marcelo Guimarães Lima
image_pdf

Por MARCELO GUIMARÃES LIMA*

Giovanni Guaccero e a música popular “ítalo-brasileira”

O que seria a música “ítalo-brasileira” de Giovanni Guaccero? Resposta: as formas da música popular brasileira recriadas a partir da maestria e da sensibilidade do compositor italiano, nascido e radicado em Roma. Em vários sentidos, as canções de Giovanni Guaccero são, ao mesmo tempo, criativamente fiéis à matriz brasileira e uma expansão individualizada desta por um músico de grande talento.

Seria possível dizer que Giovanni Guaccero pratica a antropofagia oswaldiana “em sentido inverso”, e a música popular brasileira atravessa o oceano para ser “deglutida” e recriada nas terras da Itália em modo semelhante, diríamos, à apropriação e recriação de formas musicais europeias que deram origem, por exemplo, ao choro como matriz musical brasileira na passagem dos séculos XIX e XX.

Giovanni Guaccero é um compositor de formação e produção erudita que traz para a música popular o domínio da forma musical estruturada, enriquecendo o gênero popular com nuances, formulações, perspectivas e sonoridades outras, sempre preservando o espírito de intimidade, de familiaridade, de reconhecimento imediato do ouvinte e para o ouvinte que é próprio da música popular. Na música brasileira o trânsito entre o erudito e o popular, como uma espécie de via de mão dupla, é representado por nomes como Villa-Lobos, Radamés Gnatalli, Pixinguinha, Tom Jobim, Egberto Gismonti, entre vários outros.

Num concerto no Japão em meados da década de 1980, Tom Jobim, refletindo sobre a recepção da música brasileira pelo público japonês, destacou a característica da “suavidade” como qualidade comum entre a expressão da cultura japonesa e a expressão musical brasileira, especialmente a Bossa Nova. “Suavidade” que podemos entender como sutileza, riqueza de nuances, sofisticação, e, ao mesmo tempo, como acuidade, como expressão ao seu modo incisiva e envolvente, sedutora em seu contínuo fluir.

O que se destaca das canções de Giovanni Guaccero é propriamente esta suavidade incisiva e sedutora. O fluir criativo, inventivo de melodias e harmonias de notável beleza nas quais, como ouvinte, reconhecemos imaginativamente formas próprias, formas de nossa intimidade, formas aguardadas. A intimidade que caracteriza a música popular pode ser entendida como uma espécie de “conversa” musical entre o compositor, juntamente com o intérprete, e o ouvinte, uma espécie de comunicação representada entre intimidades em reconhecimento comum na forma musical e na poesia que a complementa.

No seu último CD intitulado Canto estrangeiro, as brilhantes participações do poeta-letrista Luís Elói Stein e da cantora Tatiana Valle realçam o escopo e a qualidade das composições. Os versos do poeta nos convidam à partilha, no modo imaginário, de experiências vividas, sendo a imaginação aqui a dimensão ou o processo que realça a verdade íntima das vivências representadas. A bela voz e o domínio da expressão musical de Tatiana Valle complementam e realçam as composições de Giovanni Guaccero. Participam igualmente no CD, o duo Choro de Rua com a flautista italiana Barbara Piperno e o violonista brasileiro Marco Ruviaro.

E para que o leitor não se fie apenas em palavras, mas ouça e aprecie de forma autônoma as canções do compositor, aqui deixamos um link. A constatação final, acredito, é de que o “canto estrangeiro” de Giovanni Guaccero é canto de todos nós.

*Marcelo Guimarães Lima é artista plástico, pesquisador, escritor e professor.

Referência

Giovanni Guaccero. Canto estrangeiro. Encore Music, 2022


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
7
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES