Carpideiras de estátuas: que violência política?

Imagem: C. Cagnin
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Por JULIAN RODRIGUES*

Considerações sobre o debate Vladimir Safatle x Leonardo Avritzer

Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert; es kömmt drauf an, sie zu verändern” (Karl Marx).

Difícil fugir da polêmica. É correto que movimentos sociais toquem fogos em estátuas e monumentos que homenageiam gente escrota? Paulo Galo e seu grupo ajudaram a avançar no debate sobre esse tema ou erraram feio?

Antes de inocular meu palpite no meio da rica controvérsia Vladimir Safatle versus Leonardo Avritzer, travada em postagens no site A Terra é Redonda,[1] introduzo, modestamente, alguns parâmetros interpretativos.

Paulo Lima, o Galo, que assumiu a responsabilidade pela ação segue preso. O desembargador paulista ao julgar o caso manteve a prisão sustentando que ele é líder do movimento dos entregadores de aplicativos. Foi uma ação taticamente perfeita? Oportuna? Foi executada corretamente? Do ponto de vista teórico-programático ou político imediato foi um gol do campo progressista?

Em outro cenário, seria cabível esse debate. Galo não seria mais relevante  para luta de classes organizando os entregadores? Por que queimar a estátua  logo no dia do ato nacional “fora Bolsonaro”?  Por que não divulgar um manifesto explicando a ação? E por aí vai.

Entretanto, sorry. Um pouco menos. Não é aceitável entrar na pilha de que a iniciativa do grupo de  Galo foi “violenta”. Que não cabe em uma “teoria política democrática”. É reacionarismo demais, Leonardo Avritzer.

A começar pela estigmatização da violência como método de luta político-social legítima. Ora, “os equívocos da ação política violenta” começam pelos regimes “democráticos” Como assim?

O Brasil não é um país organizado a partir da violência dos de cima contra os de baixo, desde sempre? Não vivemos sob um golpe continuado? O bolsonarismo não é a exacerbação não só da violência do Estado mas das milícias, do crime, do ódio do “cidadão de bem”?

Ao ler os argumentos do professor da UFMG, contra o que ele chama de “política violenta”, qualquer pessoa pode  começar a crer também em Papai Noel ou no Coelhinho da Páscoa. Parece que o Brasil é uma terra onde reina a racionalidade e os bons princípios democráticos. Nosso país – e  todo o mundo inteiro –  é pacífico.  Tudo  gente fina, elegante e sincera.

Lendo Avritzer, achei que eu vivia na Suécia, Noruega, Canadá – ou em Cuba (sim, em Cuba). Muita harmonia social, quase nenhuma violência. Eu, que sempre lia com interesse os artigos do intelectual da UFMG, fiquei com centenas de pulgas atrás das orelhinhas.

Então a gente vai resolver os problemas do Brasil só sei lá como, votando?  Rezando pelo nosso belo sistema de pesos e contra-pesos, nossa sólida institucionalidade? Torcendo ou fazendo mandinga , para que nunca mais a burguesia dê um golpe como o de dezesseis?

Caramba: temos um dos países mais desiguais e violentos da periferia do capitalismo. A herança escravocrata marca e define cada detalhe do tecido social brasileiro. Somos a nação que mais assassina  e   encarcera  pretos, pobres, mulheres, jovens, LGBT.

Ao desancar Vladimir Safatle, ostentado como ideia chave “os equívocos da ação política violenta”, Leonardo abre, de cara, uma avenida de questionamentos. Já que ele foi pelo clichê do pacifismo e do bom funcionamento das “democracias”, vou também por outra linha canônica, que tal Brecht “do rio que tudo arrasta se diz que é violento; mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”.

De que violência o senhor está tratando, afinal, professor Leonardo?  Por que invocar dona Arendt (tão amiguinha do establishment estadunidense, ao ponto de ser apontada como amiga remunerada da CIA)? Ou trazer Butler – filósofa eclética e vanguardista, para respaldar suas posições recuadas-ingênuas-liberais?

Não há teoria política que justifique esse repúdio apriorístico a ações diretas organizadas pelos de baixo. Veja, não mataram nenhum burguês. São quase 560 mil mortos por Covid. Antes disso, eram 60 mil homicídios anuais. Considere, professor Avritzer: os rebeldes da “Revolução Periférica” não atentaram contra nenhuma propriedade particular, nem contra vida nenhuma!

Quem o lê nunca  esperaria que o senhor ratificasse  ideias como as daquele um  outro Vladimir (“a única garantia de democracia é o fuzil ao ombro do trabalhador.”). A gente sabe, ciência política não é algo para xiitas, marxistoides, ou gente tosca. Mas, não precisa exagerar, não é mesmo?

Claro que meu parti pris é antiquado: não há ciência neutra, nem ingênua, nem sem lado. Ver Leonardo Avritzer se doer tanto e gritar “contra violência”, tudo por conta daquela feia estátua de bandeirante paulista incinerada, foi meio decepcionante demais. E haja hegemonia liberal. E segue o barco.

*Julian Rodrigues é professor e jornalista, ativista LGBTI e de Direitos Humanos

Nota


[1] Eis a lista dos artigos, em ordem cronológica:

Vladimir Safatle, “A liberação do passado”: https://aterraeredonda.com.br/a-liberacao-do-passado/]

Leonardo Avritzer, “Bastilha e Borba Gato”: https://aterraeredonda.com.br/bastilha-e-borba-gato/

Vladimir Safatle, “Por favor, da próxima vez façam uma nota de repúdio”: https://aterraeredonda.com.br/por-favor-da-proxima-vez-facam-uma-nota-de-repudio/

Leonardo Avritzer, “Entre o fogo na estátua e soltar uma nota: a ressignificação do espaço público”: https://aterraeredonda.com.br/entre-o-fogo-na-estatua-e-soltar-uma-nota-a-ressignificacao-do-espaco-publico/

 

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