Cinema Brasileiro – três estudos críticos

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Por AFRÂNIO CATANI*

Comentários sobre os livros de Jean-Claude Bernardet, B. J. Duarte e Fernão Ramos

1.

O que salta aos olhos em Cinema Brasileiro: propostas para uma história, de Jean-Claude Bernardet é a maneira como o autor faz uso do espaço temporal para fundamentar suas teses, propostas e sugestões para um estudo mais aprofundado do cinema brasileiro. Situações e fatos ocorridos no início do século repetem-se ainda hoje com intensidade assustadora no tão colonizado cinema nacional; problemas cruciais relativos à industrialização e à ocupação de mercado – abocanhado quase 70% pelo produto estrangeiro – ainda não foram equacionados; a atuação do Estado – de início através de medidas protecionistas e, posteriormente, pela intervenção mais direta na produção de obras – no âmbito da produção e comercialização cinematográfica: estes e outros temas polêmicos são discutidos criteriosamente em seu estimulante trabalho.

Estruturado em seis capítulos e escrito numa linguagem despida de jargões acadêmicos, Propostas… procura discutir questões que até então haviam sido pouco trabalhadas pela bibliografia disponível sobre o cinema brasileiro. Na impossibilidade de destacar o conjunto de questões abordadas por Bernardet, destaco os capítulos “A cavação” e “Novo ator: o Estado”. No primeiro, Jean-Claude chama a atenção para a seguinte variável: nas décadas iniciais do século XX, com o mercado dominado pelo produto importado, o filme brasileiro não era necessário para o funcionamento do comércio cinematográfico.

Às vezes surge um filme de ficção, embora ele “não seja suficientemente regular e lucrativo para sustentar um quadro de produtores com o mínimo de equipamento, laboratórios, know-how. No entanto, os cineastas estão aí e produzem sem interrupção. Parece que se dá um fenômeno que só poderia ocorrer numa cinematografia dominada”. As produções abordavam o cotidiano das cidades, interesses locais, criando-se “uma área livre, fora de concorrência dos produtores estrangeiros (…). Desenvolveu-se a produção de documentários – ou “naturais” como chamados na época – e de cine jornais”.

São tais filmes, e não os de ficção, que sustentam a produção brasileira, produzidos a partir do dinheiro obtido junto a pessoas ricas “que querem promover seu nome, empreendimentos, produtos, atos políticos e mundanos. (…) A produção assenta-se num documentário ligado a uma elite mundana, financeira, política, militar, eclesiástica, de que os cineastas são dependentes”. Se operários, camponeses, soldados aparecem, é apenas como complemento de ator das elites. Para Bernardet, “a câmara do documentário da época era a câmara do poder”.

Em “Novo ator: o Estado”, Bernardet mostra a maneira pela qual a presença do filme estrangeiro, aliada à ação do Estado, contribui para determinar as formas de produção cinematográfica no Brasil. Impotentes para enfrentar a agressividade das empresas estrangeiras, os produtores nacionais encontraram no Estado a única forma capaz de lhes assegurar uma fatia mínima de mercado que possibilitasse um crescimento – ainda que em níveis não industriais – da produção.

É possível perceber que, historicamente, a luta dos cineastas patrícios desenvolve-se não tanto contra o filme estrangeiro – através da limitação da importação – mas sim a favor do filme brasileiro. Assim, pedem exibição compulsória, isenção de imposto de consumo, isenção ou rebaixamento de taxas alfandegárias para importação de maquinaria e matéria-prima, ao passo que os industriais de outras áreas encaminharam solicitações no sentido de se obter do governo forte taxação dos produtos importados – quando existia similar nacional – para inibir a importação.

Dessa maneira, diante das reivindicações de caráter conjuntural formuladas pelos cineastas brasileiros, o capital estatal acaba penetrando diretamente na esfera da produção em 1969, através da criação da Embrafilme, com o intuito de garantir a sobrevivência do cinema nacional. E a partir de 1975 ingressa, também, na esfera da distribuição – com as naturais consequências ideológicas que essa situação apresenta –, procurando combater o filme estrangeiro em nível do próprio mercado.

Longe de ser um trabalho acabado, Cinema Brasileiro: propostas para uma história tem o inquestionável mérito de sugerir pistas e abrir várias picadas para a compreensão dos problemas deste colonizado cinema nativo.

2.

Benedito Junqueira Duarte (1910-1995) talvez não seja um nome familiar às gerações que nos últimos 40 ou 50 anos não acompanharam mais de perto o cinema nacional e, em especial, o cinema paulista. Entretanto, Benedito fez de tudo um pouco enquanto esteve ativo: foi produtor, realizador, cenarista, iluminador, operador de câmera, montador, editor, além de exercer a crítica em dois grandes jornais, O Estado de S. Paulo (1946-1950) e Folha de S. Paulo (1956-1965), bem como na extinta revista de cultura Anhembi (1950-1962).

Morando na França dos 11 aos 18 anos, aprendeu o ofício de fotógrafo com José Ferreira Guimarães, retratista consagrado e seu tio, ao mesmo tempo em que se aprimorou no atelier parisiense de Reutlinger. De volta ao Brasil atuou, de 1929 a 1933, como fotógrafo-repórter do Diário Nacional.

A efetiva militância de B. J. Duarte no cinema paulista evidencia-se já na segunda metade dos anos 1940 quando – juntamente com Caio Scheiby, Francisco Luiz de Almeida Salles, Lourival Gomes Machado, Múcio Porfírio Ferreira e outros – criou, em 1946, o 2o Clube de Cinema de São Paulo – o primeiro foi liderado por Paulo Emílio Salles Gomes no início dos anos 1940, fechado logo em seguida pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) getulista, em pleno Estado Novo (1937-1945). Pouco depois que Ciccilo Matarazzo fundou o Museu de Arte Moderna (1949), inaugurou-se a Filmoteca do MAM, que nada mais era do que o antigo Clube de Cinema e a futura Cinemateca Brasileira.

O clímax dessa agitação cultural ocorreu no final de 1949, quando se constituiu a Cinematográfica Vera Cruz, financiada pela burguesia paulistana com o fim de dotar o cinema nacional de uma produção industrial em bases “racionais” e em condições técnicas de competir em pé de igualdade com os filmes estrangeiros. Na esteira da Vera Cruz surgem outros estúdios e produtores independentes, observando-se a constituição de um (instável) mercado de trabalho nesse campo. A crise financeira da Vera Cruz estoura em 1954, ocasionando grande desânimo nos jovens que pensavam numa promissora carreira no cinema de ficção. Mas já na segunda metade dos anos 50 surgem as agências de publicidade e a maioria dos técnicos volta-se para o filme publicitário.

Benedito ingressa de corpo e alma nessa verdadeira agitação cultural: redige programas, manifestos e participa dos inúmeros debates travados sobre cinema, e é membro assíduo das comissões (estadual e municipal) de cinema que se formam. Todas essas questões e uma série de outros temas (por exemplo, o combate sistemático ao cinema novo, os prêmios Saci instituídos pelo jornal O Estado de S. Paulo, o documentário científico feito no país) são exaustivamente debatidos nos três órgãos de imprensa em que atuou – e os volumes destas Crônicas da Memória são excelente testemunho disso. E é preciso não esquecer que o autor já realizou mais de 600 documentários científicos, dos quais cerca de 60 foram premiados aqui e no exterior. Além disso, foi Benedito quem filmou a cirurgia do primeiro transplante de coração no Brasil, realizado pelo médico cardiologista e cirurgião Eurycledes de Jesus Zerbini em maio de 1968 – foi o quinto transplante no mundo e o primeiro no país.

Os livros de B. J. Duarte são indispensáveis para a compreensão de vários aspectos do cinema paulista dos anos 1950 e 1960. Porém, entendo que não podem ser ignorados ou menosprezados – como Benedito o faz – o papel das associações de classe e dos congressos de cinema que tiveram lugar nos anos 50, bem como a efetiva contribuição do cinema novo.

3.

Com Cinema Marginal (1968-1973), de Fernão Ramos, os interessados na história do cinema brasileiro têm a possibilidade de tomar contato com uma reflexão sistemática sobre este movimento, cujo ápice ocorreu entre o final dos anos 1960 e o início da década seguinte. Até então, sobre o mesmo tema, havia apenas o livro de Jairo Ferreira, Cinema de Invenção, que se caracterizava principalmente por ser um depoimento de quem se engajou desde o início em várias produções paulistas realizadas na época.

A primeira versão do livro de Fernão foi escrita em 1984 e editada três anos depois através de um convênio envolvendo a Editora Brasiliense, a extinta Embrafilme e a Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo (CCSP). Junto à área de Cinema deste Centro, Fernão desenvolveu o projeto acerca do cinema marginal, realizando um levantamento dos artigos disponíveis na imprensa (grande e nanica), em outras publicações de vida efêmera e, em especial, valendo-se do Arquivo Multimeios do CCSP – além de elaborar a mais completa filmografia do período, com 56 filmes.

O cinema marginal eclodiu no Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Belo Horizonte) no final dos anos 1960, tendo como realizadores, entre outros, Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, Andrea Tonacci, Ozualdo Candeias, João Silvério Trevisan, José Mojica Marins, Neville d’Almeida, Sylvio Lanna, Geraldo Veloso, Elyseu Visconti, além de alguns “independentes próximos”, como Luiz Rosemberg, Carlos Frederico, Sérgio Bernardes, Haroldo Marinho Barbosa, Ivan Cardoso, José Setti e Paulo Bastos Martins. Filmes como O bandido da Luz Vermelha (1968), A mulher de Todos (1969) e Sem essa Aranha (1970), de Sganzerla; A margem (1967), de Candeias; Matou a família e foi ao Cinema (1969), O Anjo Nasceu (1969), Cuidado Madame (1970) e o Rei do Baralho (1974), de Bressane; Bla Bla Blá (1967-1968) e Bang Bang (1970), de Tonacci; Jardim de Guerra (1968) e Piranhas do Asfalto (1970), de Neville, são representativos do cinema marginal.

Através de conceitos como os de horror, curtição, abjeção, é possível compreender os gritos e urros, o sexo, os vômitos, a baba, o dilaceramento do corpo e da mente, os excrementos e o sangue que escorre da boca dos personagens. Analisando a estética marginal, Fernão dedica-se em especial a três elementos estruturais que percorrem o conjunto das obras, quais sejam, a agressão, a estilização (avacalho – curtição) e a fragmentação narrativa (o oposto à tradição clássica, presente na indústria cinematográfica americana na primeira metade do século). Além disso, estabelece as relações do cinema marginal com o cinema novo e situa o cinema marginal frente ao complexo produção – distribuição – exibição cinematográfica.

Fernão Ramos conclui afirmando que o cinema marginal acabou por deixar profundas raízes no cinema brasileiro, que continuam dando frutos. E valendo-se das palavras de Walter Benjamin, entende que a especificidade desse cinema esteve em buscar “um estilo violento que estivesse à altura da violência dos acontecimentos históricos” (não é necessário muito esforço para se rememorar o ambiente irrespirável – principalmente em termos políticos e culturais – existentes no Brasil o início dos anos 70).

*Afrânio Catani, professor aposentado na USP e professor visitante na UFF, é autor, dentre outros, de A Sombra da Outra: a Cinematográfica Maristela e o Cinema Industrial Paulista nos Anos 50 (Panorama, 2002).

As versões originais dos três ensaios foram publicadas, respectivamente, em Leia Livros, n. 22, março 1980; Leia Livros, n. 52, novembro 1982; Jornal da Tarde, 19 de novembro de 1987.

Referências


Jean-Claude Bernardet. Cinema Brasileiro: propostas para uma história. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.

  1. J. Duarte. Crônicas da Memória. São Paulo: Massao Ohno / Roswitha Kempf, 3 vols, 1982.

Fernão Ramos. Cinema Marginal (1968-1973): a representação em seu limite. São Paulo: Brasiliense, 1987.

 

 

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