Da arte de não enxergar o fogo

Ranjani Shettar (1977), Sete lagoas e algumas gotas de chuva, 2017.
image_pdf

Por VLADIMIR SAFATLE*

Considerações finais sobre a discussão com Leonardo Avritzer

Termino minha participação na discussão com Leonardo Avritzer – travada em uma série de artigos postados no site A Terra é Redonda – com duas considerações.[1] A primeira diz respeito à sua incapacidade de simplesmente entender a natureza de um dissenso, o que é triste para um professor de ciência política. Segundo ele, eu teria me furtado a respondê-lo, já que: “A pergunta que fiz, e que Safatle não conseguiu responder, é se a lógica da violência que vem de um estado excludente e violento deve determinar a lógica de ação dos movimentos sociais”.

Avritzer não foi capaz de compreender que o problema era mais fundamental, a saber, seu conceito de “violência” é obscuro, vazio e impreciso e, se quiserem “não-político” ou simplesmente “ideológico”. Sob nenhum aspecto, designaria uma ação contra uma estátua, feita sem visar em absoluto ferir alguém, em um local se circulação de pedestre, como “violência”. Imaginava que o uso de aspas fosse algo imediatamente compreensível.

Descrever ações dessa natureza como “violência” apenas mostra certa incapacidade de compreender dinâmicas reais de luta social que não será compensada pelo clássico e batido cacoete acadêmico de citar aquilo que se entende pela “bibliografia mais recente” e citar textos clássicos dando interpretações simplesmente distorcidas (como ocorreu com o Crítica da violência, de Benjamin, em versão portenha e socialdemocrata light).

Logo, a pergunta feita por Avritzer perde completamente o sentido porque não estamos de acordo sequer a respeito do que “violência” efetivamente significa. Seria melhor ter discutido esse ponto ao invés de ter uma concepção completamente fetichista e mágica de certas palavras.

A segunda consideração é sobre certa capacidade de ver simplesmente o que se quer ver, mesmo que tudo mostre o contrário. Avritzer termina sua tréplica tecendo considerações sobre o recente processo de lutas do Chile e, para tanto, ele se demora diante do que ocorreu com a estátua do general Baquedano. Ela acabou por ser retirada do local. Segundo Avritzer, esse seria um exemplo de ação “não-violenta” já que a única ação que ele descreve seria a luta simbólica pelo significado da estátua. Luta feita através da colocação da bandeira Mapuche na estátua por manifestantes.

E Avrtizer traz então uma foto. Diga-se de passagem, uma foto onde vemos os manifestantes com a referida bandeira em meio ao fogo e à fumaça resultante das lutas nas ruas. Ou seja, tudo o que estava acontecendo ao redor não interessa a Avritzer porque o evento que ele selecionou de seu contexto ganhou uma explicação mágica que deve mostrar como: “A instituição do novo não se dá a partir da colocação do fogo, uma forma destrutiva de ação e sim da utilização da linguagem da política”.

Mas o mais aterrador, e isso espero que tenha sido resultado apenas de um desconhecimento da história concreta dos fatos, é que a estátua foi queimada por manifestantes. Ou seja, nesse caso preciso a “instituição do novo” apoiou-se sim na colocação do fogo, que não tem nada de simplesmente “destrutivo” (mais um fantasma conservador clássico ligado ao processo de desqualificação das manifestações de força soberana popular). Permita-me repetir: a estátua do general Baquedano foi queimada por manifestantes no dia 05 de março de 2021 (quem quiser pode encontrar o video em https://www.biobiochile.cl/noticias/nacional/region-metropolitana/2021/03/05/nuevo-viernes-de-manifestaciones-en-plaza-baquedano-desvios-provocan-gran-congestion.shtml).

Depois disso, ficou insustentável ao governo Piñera continuar a tentar preservá-la. Um mês depois, ela foi retirada. Ou seja, o exemplo escolhido por Avritzer foi construído mais ou menos da mesma maneira que se constrói essas falsas notícias criadas a partir de relações indevidas entre causa e efeito.

Termino apenas lembrando que as transformações no Chile foram feitas graças a um conceito alargado de política no qual se encontra: força popular, resistência heroica contra forças policiais que perpetraram mais de 40 assassinatos, ruas queimando e partidos capazes de não criminalizar tais processos, mas de escutar e estar ao lado dos manifestantes. No mundo mágico de Avritzer, nada disso existe.

*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos – Lacan, política e emancipação (Autêntica).

Nota


[1] Eis a lista dos artigos, em ordem cronológica:

Vladimir Safatle, “A liberação do passado”: https://aterraeredonda.com.br/a-liberacao-do-passado/]

Leonardo Avritzer, “Bastilha e Borba Gato”: https://aterraeredonda.com.br/bastilha-e-borba-gato/

Vladimir Safatle, “Por favor, da próxima vez façam uma nota de repúdio”: https://aterraeredonda.com.br/por-favor-da-proxima-vez-facam-uma-nota-de-repudio/

Leonardo Avritzer, “Entre o fogo na estátua e soltar uma nota: a ressignificação do espaço público”: https://aterraeredonda.com.br/entre-o-fogo-na-estatua-e-soltar-uma-nota-a-ressignificacao-do-espaco-publico/

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES