Por MARCELO GUIMARÃES LIMA*
Num tempo de crise global, o que nos ensina a reiteração de um projeto transnacional de cunho decididamente autoritário, belicoso é a necessidade de iniciativas várias no campo popular
Estamos no início do ano de 2024. Jair Bolsonaro, responsável por inúmeros crimes reportados durante seu mandato, ainda frequenta as páginas e telas dos meios de comunicação, reúne correligionários, visita seu colega extremista neoliberal na Argentina, etc. É possível então dizer que, livre e solto, o ex-presidente e político profissional tem, até aqui, gozado de uma “anistia virtual”, uma anistia não proclamada, mas nem por isso menos efetiva.
Assim como livres e soltos estão neste momento seus cúmplices mais próximos entre seus familiares diretos, auxiliares, apoiadores, bem como patrocinadores, financistas, a cúpula militar que deu retaguarda ao golpe de 2016 e apoiou a eleição e desgoverno do Capitão do Caos, jornalistas e parajornalistas, as famílias dos monopólios da comunicação, oportunistas de várias espécies e tantos outros sócios, beneficiários, abrigados e comensais do poder durante o mandato de Jair Bolsonaro. Neste sentido, a inelegibilidade que lhe foi imposta pelo STF toma ares de uma punição meramente simbólica ao líder da extrema direita brasileira e, de fato, punição contornável.
Observar que a lentidão é algo consubstancial à justiça por força de procedimentos e salvaguardas é esquecer a rapidez com a qual Lula foi indiciado e preso em 2018 com o apoio dos mesmos personagens no STF, na justiça, nos meios de comunicação, hoje publicamente proclamados e aclamados como destemidos defensores da democracia e do império da lei que, como todos sabem ou deveriam saber, é a mesma, ou deveria ser, para todos os cidadãos, ainda com os evidentes diferenciais de celeridade que aqui observamos.
Falar em “crimes do governo Jair Bolsonaro” é de fato caracterizar essencialmente um governo que só foi possível na esteira do golpe de 2016 contra Dilma Rousseff, contra o PT e, finalmente, contra o povo brasileiro. A ascensão ao cargo de presidente por Jair Bolsonaro foi fruto de ações propriamente criminosas em relação ao ordenamento legal do país, promovidas no interior das instituições do Estado em conluio com setores privados e em direto confronto à vontade da maioria que elegeu Dilma Rousseff em 2014 contra todas as pressões políticas, jurídicas e midiáticas impulsionadas por vários segmentos da classe dominante.
Estes segmentos atualizavam em pleno século XXI a centenária história de golpes contra a sempre instável ordem republicana, ela mesma iniciada com o que muitos historiadores caracterizam como um golpe militar na proclamação da república ao final do século XIX, e a fragilidade constitutiva da ordem dita democrática num país onde o poder das oligarquias tem como finalidade primeira e “cláusula pétrea” assegurar, em todo e qualquer processo imperativo de mudança, a manutenção tal e qual das divisões de classes na sociedade contra tudo e todos que possam de algum modo, expressamente ou não, e mesmo minimamente, alterar as condições do poder concentracionário no país.
Se, enquanto origem e em seus desdobramentos, o governo de Jair Bolsonaro foi propriamente criminoso, fato atestado igualmente nos inúmeros processos legais em curso contra as ações e omissões do ex-presidente em seu mandato, foi sobretudo na pandemia que ele atingiu um grau superlativo de irresponsabilidade, negligência e criminalidade com o resultado assombroso de mais de 700 mil mortes no país, muitas das quais poderiam ter sido evitadas por uma orientação e condução racional, equilibrada, desinteressada dos desafios sanitários, econômicos, administrativos, etc., no período.
Aqueles que não conseguem ou não podem recordar o passado, estão condenados a repeti-lo, afirmou o filósofo hispano norte-americano George Santayana em princípios do século XX. Incapacidade que, entre nós, pode ser pensada como uma espécie de programa de impedimento ativo, ou seja, para além das nossas reais ou imaginárias inclinações e faculdades individuais ou coletivas, como um projeto de poder dos grupos dominantes, como um programa de obstrução e imposição de significados pelo qual o passado se apresenta, por meio da retórica das tradições, da sociabilidade dita cordial e da história nacional, como reiteração das estruturas de poder do presente e tem por papel sancionar o status quo.
O tempo humano é feito de memórias e antecipações, a experiência presente coloca em perspectiva o passado para a reflexão do tempo no tempo. Padecemos do tempo na medida da nossa consciência da finitude constitutiva da condição humana. Por outro lado, o tempo humano é igualmente e de modo essencial tempo de criação, de produção imanente e emergência de novas realidades e novos significados, criação consciente quando se faz enquanto criação autônoma, aquela que se dá como afirmação dos valores da liberdade e da solidariedade humana.
O agir humano é um fazer-se no tempo que implica reflexão e escolhas, com as decisões necessárias hoje preparando e antecipando as ações e as decisões futuras, relacionando retrospecção, a memória do caminho percorrido, e prospecção do devir possível, e implica de modo fundamental a imaginação como capacidade e atividade de desvelamento das dimensões inatuais do presente.
Assim, o futuro se desenha a partir da experiência presente, mas como possibilidade, ao contrário do passado, o tempo das ações e significações concluídas. E, no entanto, o passado é igualmente possibilidade na perspectiva das heranças ativas e da construção presente dos significados coletivos.
Refletir sobre o passado é conhecer passado e presente nas suas especificidades, nas dimensões do tempo onde se cruzam continuidades e rupturas, múltiplas, dinâmicas, espelhadas e refratadas entre si. É conhecer o que nos fez como necessidade e, a partir daí, o que nos faz como escolhas e o que podemos fazer hoje para adentrar o futuro como uma dimensão propícia de renovação prática e simbólica do real.
A memória histórica é um campo de batalhas nas quais se confrontam significados diversos e conflitantes, onde se decidem, nos embates seletivos entre recordação e esquecimento, sobre os significados e valores a informar o que somos e o que podemos e queremos ser.
Uma das faces da experiência histórica do Brasil moderno tem sido a das transições interrompidas, das mudanças incompletas, as iniciativas de constante adiamento de decisões cruciais, uma espécie de compulsão de repetição cíclica de alguns avanços e muitos recuos na democratização de fato da sociedade, tendo como resultado um estado recorrente de irresolução generalizada que, sob diferentes aspectos e em contextos vários, afeta de modo negativo a autoconsciência dos brasileiros.
Contra a impunidade dos agentes, servidores, beneficiários da (des) ordem autoritária prolongada que tem caracterizado a história do país como uma espécie de obstáculo perene à soberania popular, contra a degradação da linguagem cívica, produzindo o embaralhamento de significados e valores, contra aquilo que Florestan Fernandes caracterizou como “conciliação das elites” na transição da ditadura militar para a democracia tutelada em meados dos anos 80 do século passado, ou seja, contra o pacto conservador sempre renovado, se afirma o projeto do Tribunal Popular Para Julgar os Crimes de Bolsonaro na Pandemia, organizado pelo Manifesto Coletivo Anistia Nunca Mais.
Para além do seu enunciado e objetivo “tópico”, de urgência e atualidade, o Tribunal Popular é uma importante iniciativa de alcance maior, um instrumento de reflexão sobre o que fez e faz o Brasil tal como ele “é” hoje, quer dizer, como tem sido por imposição das classes dominantes nas questões fundamentais das relações de poder entre as chamadas “elites” e as classes populares, suas iniciativas e seus representantes na história moderna da nação.
Num tempo de crise global, o que nos ensina a reiteração de um projeto transnacional de cunho decididamente autoritário, belicoso, opressivo, com roupagens fascistas, como suporte ao neoliberalismo em crise, é a necessidade de iniciativas várias no campo popular. O Tribunal Popular contribui, na sua dimensão específica, para aclarar a conjuntura, despertar e fortalecer a consciência dos desafios atuais para a sociedade brasileira. O Tribunal Popular contribui para fortalecer a imaginação histórica do presente, contra a miséria simbólica própria do tempo e o quietismo imposto às consciências. Neste sentido, ele transcende significados ou dimensões particulares e conjunturais e se soma às iniciativas necessárias para a superação dos impasses práticos e ideológicos do nosso presente.
*Marcelo Guimarães Lima é artista plástico, pesquisador, escritor e professor.
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