Declínio do império americano

foto: Marjorie Matias
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Por PEDRO DE ALCANTARA FIGUEIRA*

Os profissionais da contrarrevolução têm como tarefa primordial contribuir com os rentistas e governantes para impedir o desenvolvimento em marcha acelerada das forças produtivas

Estão se tornando frequentes as menções ao “declínio do império americano”, porém o que se entende como tal raramente diz respeito ao processo de transformação que enfrenta o modo capitalista de produção. Referem-se de preferência àquelas manifestações mais aparentes dos acontecimentos diários. Ainda é cedo para avaliar o papel negativo ou relativamente positivo que tais referências possam vir a ter.

É de se esperar que essas expressões provisórias, digamos assim, possam vir a despertar, junto a uma parte da população, um interesse por saber o significado mais profundo da questão. O fato é que a história embarcou num supersônico e está a nos demonstrar que não há mais tempo a perder.

Para início de conversa, seria bom ter presente que esta seara é muito pouco frequentada pelos economistas. A redução das questões fundamentais a assim chamada política econômica faz da realidade uma pobre aparência do que vai na base da sociedade. O que resulta não são senão afirmações totalmente desarticuladas e desvinculadas do mundo real.

Dizer a um economista que dentro de uma fábrica se fabricam duas classes, a dos capitalistas e a classe trabalhadora, é algo que seu bestunto não alcança. E no entanto, caro economista, é aí que a realidade se encontra. De dentro dela saem não só utilidades; saem também as ideias que configuram as relações de produção e que, portanto, não encontram guarida nos famosos manuais de economia.

Ensaio sobre o fabrico do açúcar, de Miguel Calmon du Pin e Almeida, Marquês de Abrantes, obra que jamais poderia ter sido escrita por um economista, estuda precisamente as relações sociais que plantam cana e fabricam açúcar. É no engenho, sr. economista, que se processam essas relações, e onde não se moem só cana, mas também escravos, como vem descrito, em páginas magistrais, em Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas de André João Antonil. Pois bem, é nos centros industriais que são geradas as ideias sociais e econômicas que povoam esse nosso mundo.

Os profissionais da contrarrevolução – assim podemos situar historicamente os economistas – têm como tarefa primordial contribuir com os rentistas, com os governantes, enfim, com as instituições em processo de ruína para impedir o desenvolvimento em marcha acelerada das forças produtivas. O gigantismo da tecnologia e da ciência da produção é seu alvo mais visado.

Não recuam nem mesmo quando se trata de destruição física e humana de riquezas. Seu apoio às guerras do império é parte de sua profissão. A China é, no momento, o inimigo a ser eliminado. São eles os guerreiros armados ideologicamente contra o progresso, pois sabem que o gigantismo produtivo das atuais forças produtivas não cabe mais nas relações econômicas a que atribuem uma natureza muito próxima de divina, pois lhes atribuir a qualidade de eternas muito se aproxima do direito divino de propriedade.

Estabelecidos esses pressupostos, retornamos ao nosso objetivo central que é pôr em discussão relações sociais que se encontram em estado precário de resistência aos ventos que sopram forte do lado da transformação.

O capitalismo se encontra em estado agônico, não há que esperar nada de positivo das nações que ainda se abeberam em relações decrépitas. Suas instituições, todas elas, tentam sobreviver apelando para recursos que não fazem senão agravar uma situação já de si insustentável. Recorrer à ilegalidade é tudo o que fazem, dando cobertura criminosa para atos como a esta pletora de genocídio a que Israel aderiu incondicionalmente com apoio declarado e sem reservas do império americano.

A produção de armamentos por parte sobretudo do império não obedece mais às leis da acumulação capitalista, pois seu destino exclusivo é impedir qualquer manifestação soberana de desenvolvimento econômico. Frente às forças do progresso social, a barbárie se tornou seu único e possível objetivo.

Caro leitor, não pense que pelo simples fato de você encontrar, metidas em alguma parte de um artigo, essas quatro palavras “declínio do império americano”, que você estará diante de uma revelação do que vai realmente por esse nosso mundo afora. Terá, apenas, um indício de que há algo de velho no nosso mundo, somente agora referido aqui e ali a propósito das conturbações gigantescas que abalam esta parte do mundo que ainda se teima em considerar capitalista.

Pois bem, é neste ponto exatamente que nos encontramos, ou seja, diante de uma crise monumental que atinge a raiz de um sistema econômico que não mais resolve suas dificuldades com as leis econômicas que até o século passado ainda prevaleciam, é bem verdade que seguindo por tortuosos caminhos sobretudo aqueles que deram em duas guerras mundiais e dezenas de conflitos arquitetados justamente pelo império.

Estamos, no presente, colhendo os efeitos dolorosos do fim de um sistema civilizatório que deu seus primeiros passos lá pelo século XV, quando, então, “um valor mais alto se alevanta”.

Precisamente esse “valor” não se mantém mais alto; pelo contrário, se arrasta sem conseguir se erguer senão medianamente. Toda a riqueza acumulada se deteriora sob formas que não lhe garantem mais uma sobrevivência ativa. A morte está presente em todos os movimentos que tenta realizar. Tenta sobreviver promovendo destruição de toda ordem. De modo de produção que foi durante quatro séculos passou a encarnar um verdadeiro modo de destruição, que é a única e exclusiva atividade para a qual se organiza.

Entre não poucas razões, o capitalismo ficou caro, assim como o feudalismo não resistiu à divisão do trabalho, aquela mesma que é exaltada por Adam Smith. Se trata, agora, da superioridade tecnológica e científica que a sociedade coletivista, sobretudo na forma chinesa, passou a impor ao mundo.

Com toda razão, a palavra tecnologia está na boca de todo mundo, o que é muito importante, pois de fato um novo mundo vai se impondo com toda a força como um modo de produção cujos recursos produtivos se distinguem em grande medida dos que até agora prevaleceram sob a dominação capitalista. A produtividade que esses novos meios de produção introduziram deve-se a esta tecnologia.

Necessário esclarecer que a pujança aí presente corre por conta de uma Revolução, que, ao longo dos seus setenta anos deu à luz a novas forças produtivas incompatíveis com a manutenção das velhas relações sociais. Portanto, embora etimologicamente o termo tecnologia esteja comprometido com a sua origem, não se tratam de soluções técnicas, capazes de servir indiscriminadamente a qualquer organização social em qualquer tempo. Não se deve, também, a melhorias nos instrumentos de trabalho. Não podemos, evidentemente, dada a multiplicidade de atividades produtivas, negar que possa ocorrer este fenômeno.

Não é de se surpreender que grandes avanços tecnológicos possam ocorrer mesmo naqueles países que ainda se debatem em meio a todo tipo de empecilhos ao seu uso. Não é de se surpreender, também, que, por razões óbvias, eles acabam prestando imenso serviço aos países em luta com as velhas relações sociais de produção.

Insisto no fato de que em primeiro lugar vem o processo revolucionário que domina nossa época e se expande a olhos vistos por toda parte sob as mais diferentes formas. Esta tecnologia de que tanto se fala é filha desse processo, o qual nasce precisamente da impossibilidade de o capital resolver suas contradições sem trilhar novos caminhos. É precisamente o coletivismo que permite superar os impedimentos contidos nessas contradições. Vale dizer que a pujante transformação que aí se encontra pode ser reduzida a um único processo, pois o que se apresenta como novo nada mais é senão a superação dos impedimentos contidos na velha forma social.

Fica entendido que a insistência de certos setores em usar as novas tecnologias é um erro histórico grosseiro, pois por sua natureza elas colidem com a reprodução das leis capitalistas. Fica na prática demonstrado que não estamos, como insisti acima, no mundo de soluções técnicas, mas revolucionárias.

No emaranhado de questões que povoam nossa época, se destaca uma que, na verdade, é capaz de dar conta de todas elas. Qual é ela? É a sensação de que todos os movimentos internos à sociedade estão a exigir uma única solução que está a se impor historicamente.

Não por acaso chegamos a esse ponto, pois de modo de produção que era, o capitalismo degenerou em modo de pilhagem e destruição. Enquanto modo de produção, suas leis foram analisadas por Karl Marx em O capital. Enquanto modo de pilhagem e destruição temos um campo aberto ao estudo. Não por acaso, o entendimento profundo do que encerra tanto a pilhagem, quanto a destruição fica na dependência da análise do capital realizada por Marx.

No que se refere particularmente à pilhagem, temos aqui um fato surpreendente, ou seja, a mais-valia, ou mais-valor, confirmando “a lei da queda tendencial da taxa de lucro”, não permitia mais a reprodução do capital enquanto modo de produção. Enquanto meio de produção, uma parcela significativa do dinheiro se tornou inútil, ou seja, abandonou sua natureza de capital.

Temos aí um dos fatos mais comentados pelos meios de comunicação e, ao mesmo tempo, menos entendido. Sabemos que um número insignificante de ricaços tem mais riqueza, dinheiro, do que três bilhões e meio de seres humanos.

Mais do que um fato criticável moralmente, deveríamos tentar mostrar que esta anomalia se deve precisamente ao fato de que o dinheiro inútil que abandona a produção, por essa simples razão está impedido de a ela voltar. Seu crescimento não se deve à relação produtiva, mas justamente à pilhagem.

Pela mesma razão, ele participa de corpo e alma do processo incessante de destruição, mesmo porque ele decorre do que chamo de “modo de destruição”. Sua atividade nesse particular em especial tem muito a ver com a possibilidade real deste processo de decadência do capital ensejar o nascimento de uma forma superior de relações sociais.

Enquanto expressão modelar do modo de destruição, temos a figura tétrica encarnada no atual presidente da Argentina. Javier Milei trava verdadeira guerra de destruição tipo terra arrasada contra seu país. Anticomunista amamentado nas tetas ideológicas do império americano, seu propósito declarado é destruir tudo o que possa lhe parecer ameaça à sociedade de classes. É tratado pela imprensa, aí incluído o jornalismo de esquerda, como figura excêntrica. Pelo correr da carruagem parece que nunca se darão conta do verdadeiro papel desse fulano.

Tivemos, nas nossas barbas, tentativa muito semelhante a essa que agora se instalou aqui perto de nós. É um modelo de política latente em boa parte do mundo, precisamente onde as instituições ainda estão sob o domínio do capital.

O que vimos nos últimos tempos foi que os instrumentos da orquestra capitalista argentina desafinaram todos. Estão, do mesmo modo, desafinados os instrumentos que compõem a grande sinfônica capitalista mundial.

Quem considerar que os desdobramentos desse estágio atual podem resultar em algo diferente do que aqui foi apontado, que se manifeste.

*Pedro de Alcantara Figueira é doutor em história pela Unesp. Autor, entre outros livros, de Ensaios de história (UFMS).

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