Por RONALDO TADEU DE SOUZA*
Sobre o fogo no Borba Gato
Para Paulo Galo e Géssica…
“Somos obrigados a alimentar dentre em nós algumas pequenas loucuras…” (Marcel Proust).
No dia 24 de julho o Brasil testemunhou uma ação política que pode significar uma mudança substantiva nas lutas sociais dos grupos subalternos, sobretudo os subalternos de pele preta e os originários, que vivem as implicações mais cruéis da sociedade capitalista brasileira – historicamente constituída. Ao atear fogo na estátua do Borba Gato na avenida Santo Amaro em São Paulo, um conjunto de sujeitos políticos que se denominam revolução periférica demonstrou dois aspectos da atual situação do país; esses ao articularem-se ganham, supostamente, um significado com traços de novidade relativa para o futuro próximo das disputas políticas. Antes de abordar àqueles uma consideração geral acerca de como setores da opinião pública lidaram com o fato.
É bem verdade que houve uma minoria de setores sociais se indignando com o ateamento de fogo na figura representativa da escravização e extermínio de negros e indígenas no Brasil. Entre esses, alguns se dividem naquele grupo de conservadores e pertencentes à direita intransigente (a elite branca dominante); os círculos secundários de pessoas que tem a percepção (e acreditam) não pertencerem ao estrato que de fato sociologicamente pertencem (lojistas, donos de pequenos negócios de serviços, profissionais subordinados de fundos de investimento da região das avenidas Paulista e Brigadeiro Faria Lima, liberais mais bem posicionados na estrutura econômica atual, empregados com bom nível de renda exercendo sua atividade em escritórios de médio e grande porte) e os mais adeptos de uma vida moldada pelos costumes (o cotidiano ordeiro). Para eles não é cabível, por diferentes motivos, qualquer possibilidade de indignação que não se expresse, se é que tem de se expressar, via os padrões estabelecidos pelas convenções impostas por aqueles, indiretamente, beneficiados pelas atitudes do próprio Borba Gato. Entretanto, “surpreende” os modos ao quais setores que se dizem progressistas, de “esquerda”, democráticos, contrários à política do atual governo se posicionaram ao verem a estátua do nosso primeiro sicário em chamas na maior cidade do país. As justificações para a postura, de certa maneira, contrária à ação do Revolução Periférica vão desde o temor de que tal ato possa criar condições para Bolsonaro e a direita restringirem as liberdades, um “golpe” na nossa, sempre em funcionamento, democracia (que como diz o filósofo Vladimir Safatle chega próximo do lado direito da av. Paulista – no sentido da Consolação para o Paraíso), até considerações sobre a pouca efetividade política em se atear fogo num ícone da opressão violenta contra negros e índios. Ainda há os que ponderam afirmando que a discussão tinha de ser mais bem elaborada com análises finas e pedagógico-racionais concernentes à história verdadeira de Borba Gato, os que asseveram a necessidade de conduzir as exigências de refundação de nossa sociedade para as instituições representativas de sorte a ali aprovarem leis que ou retirem os símbolos do nosso passado escravagista, renomeie os locais possíveis onde se presta homenagem aos opressores ou mesmo instaure monumentos eloquentes das lutas pela libertação dos subalternos da nação. (É estarrecedor: enquanto Roberto Jefferson, deputado aliado do grupo bolsonarista e seu projeto de devastação do país, porta duas pistolas ponto 40 querendo caçar esquerdistas e difunde isso para todo o país presenciamos tais debates dos setores bem pensantes.)
Há algo mais a ser observado no evento de sábado. Certo é que poucos dias se passaram desde a ação do Revolução Periférica para que intervenções públicas (textos, vídeos em redes sociais, postagens mais substantivas se é possível no âmbito das redes) de instâncias do ativismo negro (incluído aí sem muita precisão, personalidades das redes sociais, colunistas de veículos prestigiados de comunicação, pesquisadores de universidades públicas etc.) façam ecoar sua voz na elaboração crítico-emancipatória do que ocorreu. Se estiver equivocado esse trecho pode ser esquecido. E se nos dias que se seguirem surgirem intervenções e posicionamentos da opinião pública negra também. (É preciso moldar o ferro quando está quente…) Mesmo assim proponho uma hipótese para esse eventual “silêncio”: malgrado os avanços na luta histórica dos negros com o reconhecimento de muito de suas demandas e pautas, nos acostumamos a ter uma visão “controlada” dos sentidos do racismo. Por um lado, nos indignamos muito mais com formas culturais do racismo (um xingamento na rede social, uma música criticada, uma personalidade desconsiderada, um mau atendimento em locais público-privados como hotéis, restaurantes, lojas de grife-marca etc.) do que com a miséria material de milhares de indivíduos de pele preta – quando muito dizemos que a desigualdade racial-social é que leva à formação de filas para a doação de restos de ossos para a sobrevivência do corpo negro para a reprodução do capital. Por outro, existe um deslocamento em setores dos grupos negros em direção à classe média; isto implica em padrões distintos de percepção dos fatos mesmo do racismo de classe que afeta a maioria esmagadora de negros e negras que vivem nas periferias das cidades brasileiras. Tal fenômeno social já havia sido alertado por Florestan Fernandes no artigo 25 Anos Depois: o negro na era atual, de 1976 (Ver Circuito Fechado: quatro ensaios sobre “poder institucional”, ed. Globo). Daí que as modalidades de “resistência” ao racismo e suas consequências, sejam mais bem “aceitas” e elaboradas no âmbito das instituições normalizadas. Exigência de direitos; políticas públicas antirracistas; direitos humanos; inclusão simbólica; representatividade; justiça são algumas das formas de “ação” dos últimos anos que o ativismo negro mobiliza na sua contenda histórica. É evidente que tudo isso é extremamente necessário. No entanto, é premente derrubar o katechon – Borbas Gatos devem desabar pelas mãos daqueles pretas que ele esmagou indiretamente.
Com efeito, a atual situação do país combina dois aspectos e que conduz ao evento do 24J. O primeiro deles é histórico e diz respeito à derrubada de símbolos da opressão dos de baixo. A era moderna, tanto nos países imperialistas-colonialistas, como nos periféricos é marcada pela irrupção do novo (Habermas). O desejo de transformação da realidade atravessa os vários grupos sociais – o que faz de nosso tempo uma potência contingente de subjetividades. Ora, não é incomum nos grandes acontecimentos políticos, tanto o testemunhar da destruição de signos do passado que se quer abandonar definitivamente, como a inauguração de experiências outras daquelas que o cotidiano das ideias e práticas, ambas reproduzidas por diversos artifícios, fizeram as sociedades renderem reverência. Na Revolução Francesa a queda da bastilha, uma prisão que espelhava o caráter estamental da sociedade na França, foi “posta” a baixo muito mais por ser interpretada como o emblema de uma sociedade e de um modo de vida que não mais seria aceito dali por diante. Conta-se que na prisão, no 14 de julho, havia apenas 7 detentos – a ser verdadeiro tal fato, ele exacerba a noção de que símbolos de opressão dos subalternos tem de desmoronar como explicitação da recusa de um tipo de sociedade que não mais se suporta. Mais do que uma conquista de direitos, um ensinamento exemplar, uma derrota significativa imposta às classes dominantes: o fazer tombar uma figura que representou o sofrimento de milhares de pessoas, no nosso caso pessoas pretas e originárias, pelas mãos e braços daqueles que herdaram tal sofrimento, é a expressão mesma de que efetivamente as circunstâncias de existência dos afetados por aquele podem mudar. Esses eventos tem um sentido temporal decisivo. São auroras concretas que podem marcar um ponto de ruptura na história das sociedades humanas. E neste caso, sempre alguns não entenderão, ou não aceitarão conscientemente essa suposta ruptura. No mesmo ano do 24J e das chamas ateadas a Borba Gato, completam-se 150 anos da Comuna de Paris. O que o episódio pode nos iluminar sobre o ocorrido no último sábado? Dentre inúmeras coisas, os comunardos e as comunardas assumiram seu próprio destino. Enquanto as classes dominantes entregavam sua sociedade para os exércitos de Bismarck – e como não bastasse tramavam junto a ele o esmagamento dos trabalhadores e trabalhadoras que ousaram sonhar outra vida –, milhares de mulheres e homens erguiam uma das mais belas experiências políticas da história humana. Isto não foi feito sem um ato de profundo simbolismo real; no dia 12 de abril de 1871 a Comuna derrubou a Coluna de Vendôme. Signo do império de Luís Bonaparte e de uma França contrarrevolucionária em que a “liberdade” era apenas a de uns poucos Vendôme venho a baixo, como irrupção de algo que deseja existir livremente e não mais suportava sobre os seus ombros esfolados o peso histórico da Coluna. Quando o Revolução Periférica ateou fogo em Borba Gato, não se tratava de um aprendizado pedagógico, ou mesmo de uma insana medida para além dos debates do campo político autorizado (Pierre Bourdieu) – era a ação prática daqueles que não mais aceitarão ser o arrimo cruel de uma sociedade altamente racista nas suas estruturas de classe constitutivas. Assim, atear fogo em Borba Gato (esse katechon de concreto) é a expressão mesma de um conjunto amplo de pessoas que querem e podem vislumbrar uma forma de vida outra (livre, de igualdade efetiva, de reconhecimento universal, de indeterminação criadora) da que lhes impõem com violência as elites brancas dominantes a quem a figura do Bandeirante representou: e ainda representa. Bastilhas, Vendômes e Borbas Gatos, esses katechons de pedra, devem ruir pela força disruptiva de mãos pretas e originárias (os oprimidos). E se o for com a violência aberta (Walter Benjamin); que o seja. Aqueles que incendiaram Borba Gato não suportam mais nossa história escravagista persistente.
O segundo aspecto do contexto de país que estamos presenciando é o social propriamente dito. Ainda que os seríssimos estudos de pesquisadores de alta capacidade investigativa afirmem sistematicamente acerca das faces da desigualdade no país, essa linguagem não é suficiente para exteriorizar o significado de se ser negro no país que cultuou – e permanece cultuando Borba Gato. (É lamentável que setores que se dizem democráticos e contrários ao nosso atual estado de coisa… tergiverse sobre a derrubada ou não do emblema da opressão, da fome, do extermínio e da humilhação de gerações e gerações de indivíduos de pele preta e indígenas.) O estatuto da luta de classes-raça no Brasil é de um profundo barbarismo: rude, violento, escorchante, cruel, impiedoso, reacionário. Aquelas e aqueles que lançaram fogo no Bandeirante no 24J estão a nos dizer – tudo o que foi construído como sociedade desde os tempos em que as oligarquias brancas utilizavam os seus Borbas Gatos não pode, e não deve, mais existir. A Revolução Periférica faz ecoar pelo país as chamas da esperança; que para irromperem na imediatidade da ação tem de fazer desabar os símbolos concretos das atrocidades por que passam. Se, no período que antecedeu ao governo Bolsonaro-Guedes a situação de negros e negras melhorou substantivamente, mas ainda não era de uma vida livre da crueldade de classe-raça – lembremos Amarildo, Cláudia Silva Ferreira, Ítalo – nos últimos quatro anos a situação se tornou angustiante. Sufocante por assim dizer; e sábado foi a mensagem eloquente de que queremos respirar, custe o que custar. Ora, o ciclo da contrarrevolução que se inicia em 2015 e se intensifica em 2018 tem um inimigo declarado. No arco daquilo que foi e é chamado nas nossas ciências humanas de formação (Paulo Arantes) da sociedade brasileira, essa tinha um inimigo público velado, os ex-escravos, mas um inimigo a ser tido preventivamente como perigoso; nos dias atuais os negros e negras são os inimigos peculiares a serem combatidos com toda a força, intransigência, rudeza e violência do katechon da vez. Se quisermos estabelecer um ponto social de referência desta desabrida e sangrenta luta de classes-raça do último quinquênio, ninguém poderá esquecer o assassinato político-simbólico de Marielle Franco. A combativa e radical política negra de esquerda foi exterminada a mando por dois borbas gatos contemporâneos; o plano sórdido e covarde de sua morte não pode deixar dúvidas que na atual circunstância do Brasil bolsonarista-guedista e da elite branca dominante que o sustenta com vigor (banqueiros, empresários, executivos de fundos de investimento, militares dos estados, partido fardado), não há espaço para negros e negras. As sistemáticas e bem organizadas incursões nas comunidades cariocas que assistimos recentemente ceifou a vida de jovens, crianças e adultos de pele preta – na contrarrevolução que presenciamos é preciso a decisão de deixar nítido quem são os que devem perecer. O vice-presidente Hamilton Mourão sabe quem esta combatendo: “são todos bandidos”, não podemos ser complacentes com esses grupos, é o que podemos implicar de seu pronunciamento após a chacina do Jacarezinho. Esse bandeirante de farda verde renascido nos nossos tempos sabe qual é seu papel na história. Ademais, a violência policial contra jovens negros aumentou enormemente após a eleição de Jair Bolsonaro e o grupo que representa. Segundo círculo de aço da política armada do bolsonarismo-guedismo compreendeu contra quem eles devem lutar; não se trata, insisto, no inimigo público de outrora, é, isto sim, o grupo da sociedade que tem de ser extirpado sem nenhuma complacência.
Mas há algo mais a ser dito. A reação é em toda linha (para usar um linguajar do marxismo de Lenin a Gramsci). Com efeito; milhares de negros e negras tiveram suas vidas perdidas para o Covid-19, num claro “programa” de governo que insistiu e organizou o morticínio daqueles quando exigiu o fim dos isolamentos sociais, quando atendeu os empresários ao não permitir que se fechassem os estabelecimentos comerciais expondo os de pele preta à agressividade do SARS-COV 2, quando “permite” uma inflação atroz do gás de cozinha fazendo milhares de negros e mães pretas produzirem o alimento dos seus no degradante fogo a lenha, bem como um aumento pelos empresários do comércio de alimentos levando milhares a consumirem restos de carne – ossos mesmo, como se animal fossem. Entretanto – há o que Hegel, Marx e teoria crítica teorizaram desde os tempos das primeiras insurreições modernas: a força contingente do negativo. Ao atearem fogo na estátua do Borba Gato no 24J, a Revolução Periférica está a nos dizer, e está a dizer a si mesma, que o atual estado de coisas eventualmente não será mais aceito – como nós estamos acostumados a ver. É evidente que não estamos aguardando uma transformação social para o próximo domingo, como alguns podem argumentar (nos dizendo, “isso foi momentâneo”, “é um ato que dificilmente ocorrerá novamente”, “estarão todos e todas conformados nos dias que se seguem”, “esse radicalismo não tem resultado prático”…) A direita intransigente arrogante, e em outra perspectiva (bem entendida as coisas, em outra perspectiva, pois não compartilho, respeito apenas, com as vozes que dizem tanto faz direita e esquerda em questões raciais) os bem-pensantes progressistas e os que estão acomodados eufemisticamente “à ordem existente e que […] compõe a maior parte [ainda da] cultura atualizada de esquerda” (Perry Anderson), não entendem o que significa a ação política de incendiar o Borba Gato pelos que estão vivendo o cotidiano de nosso atual luta de classes-raça. Eles compreendem, a Revolução Periférica, na irrupção mesma da sua violência inevitável que somente poderão almejar a liberdade efetiva e uma vida feliz, se derrubarem os katechons de concreto que os restringem com a força impiedosa e desumana de sua luva de ferro (Conceição Evaristo). E quando isso ocorrer: sempre haverá os que cinicamente se surpreenderão…
*Ronaldo Tadeu de Souza é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da USP.