Por MANUEL DOMINGOS NETO*
A manipulação de dados estatísticos sobre a pandemia pelo general Eduardo Pazuello, ainda no serviço ativo do Exército, alimenta os argumentos dos que avaliam que já estamos sob um regime ditatorial.
Os brasileiros assistem incrédulos à manipulação de dados estatísticos sobre a pandemia. Trata-se de crime inominável: impede o planejamento eficaz das medidas de defesa da sociedade, afetando diretamente a saúde planetária. Conturba a programação de retorno das atividades econômicas. Resulta em mais sofrimentos para o povo e amplia a desmoralização mundial do governo brasileiro.
O executor desta operação criminosa é um general do Exército. Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde, é do serviço de Intendência, responsável pela logística da Corporação. Todos os oficiais entendem de estatísticas, sobretudo os intendentes. Generais também conhecem a gravidade das pandemias e a complexidade das iniciativas necessárias para o seu enfrentamento.
Pazuello alimenta a desinformação sabendo que impõe agruras aos que garantiram seus estudos, pagam seu salário e assegurarão sua aposentadoria. O General engana quem lhe trata bem, que coisa feia!
Mas não inaugura procedimento governamental escuso. O jornal O Estado de São Paulo republicou uma matéria de Clovis Rossi, “A Epidemia do Silêncio”, escrita em 1974, em plena epidemia de meningite. A Ditadura estabelecia descaradamente a censura sobre as condições sanitárias e alimentava potente rede de mentiras através de propagandas fantasiosas. Rossi resume inacreditável lista de temas censurados: perigo de arrombamento de barragens, número de mortos em decorrência de incêndio num edifício, o saldo de vítimas na construção da ponte Rio-Niterói e na Transamazônica, os custos das obras públicas…
Nesta época, inquéritos sobre desvios de recursos praticados por militares, nem pensar! O Serviço de Imprensa da Ditadura tinha apenas uma missão: enganar o povo. Enquanto escondia notícias que poderiam desfavorecer o regime, super-dimensionava as realizações governamentais.
Neste momento em que tanto se discute a possibilidade de uma ruptura no já esbagaçado arcabouço institucional, a postura do general Pazuello, ainda no serviço ativo do Exército, alimenta os argumentos dos que acham que já estamos sob um regime ditatorial.
Militares são preparados para cumprir missão. No cumprimento de missões, escrúpulos que atrapalham são postos de banda. Feio é não cumprir a missão e perder a “batalha”. Quanto mais os militares demorarem ocupando o lugar dos políticos, funcionários, técnicos especializados e cientistas, mais o povo sofrerá. Iludem-se os brasileiros que aguardam do quartel padrões de racionalidade política para os quais não foram preparados.
Bolsonaro não quer ser presidente, quer ser ditador. Ditadores mentem antes, durante e depois de arrebatar o mando.
Um mínimo de bom senso bastaria para os comandantes compreenderem que, em plena pandemia, o último lugar para militar “cumprir missão” é o Ministério da Saúde. Pazuello conquistou seu lugar no folclore político brasileiro ao incluir o Norte e o Nordeste no espaço afetado pelos países frios do hemisfério norte. Multiplicam-se os memes de cearenses limpando a neve nas calçadas de Fortaleza. A conta da desgraceira resultante da condução amalucada da luta contra a pandemia não recairá apenas sobre Bolsonaro, mas sobre corporações que, levadas ao descrédito, deixarão o Brasil ainda mais indefeso.
*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC. Foi presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e vice-presidente do CNPq.