Por SALEM NASSER*
É difícil não acreditar nas mentiras dos EUA; tanta gente, incluindo políticos, jornalistas, analistas, parece levar tão a sério o que dizem e, se sentimos algo diferente, começamos a duvidar da nossa própria inteligência
Mais de uma vez, eu quis escrever um texto que se abrisse com essa frase: “Dizem, e mentem…”. Há muito que se pode dizer começando com essa afirmação. Muitos, de fato, dizem muito e mentem muito.
A frase me acompanha talvez desde a infância, desde a primeira vez em que ouvi a estória, contada como se fosse verdadeira, que se encerra com ela.
Dizia a estória que, em um dos pequenos vilarejos do Líbano – e eu vejo bem que poderia ser aquele de onde provém minha família – havia uma mulher cujos anos haviam passado e que ainda não tinha se casado.
Quando as pessoas se reuniam, nos começos de noite, sendo as aldeias lugares em que a proximidade entre os habitantes se combina com provocações constantes e instâncias de pequena, ou grande, crueldade, alguém inevitavelmente tentava fazer rir os demais provocando a solteirona do vilarejo e dizendo: ‘Você sabe, fulana, as pessoas andam dizendo que vem aí alguém que vai pedir sua mão em casamento.”
Sendo ela mais sábia do que os outros estavam prontos a admitir e tendo, talvez, se rendido diante da passagem do tempo, ela sempre respondia: “Dizem, e mentem…”
Desta vez, a frase me ocorreu de novo quando escutei, de Joe Biden e de seu Secretário de Estado, Antony Blinken, sobre as grandes esperanças que tinham de chegar a um acordo que encerraria a guerra de Gaza.
É muito difícil não acreditar nas mentiras dos Estados Unidos; tanta gente, incluindo políticos, jornalistas, analistas, parece levar tão a sério o que dizem e, se sentimos algo diferente, começamos a duvidar da nossa própria inteligência.
Algo nos diz, porque já aprendemos algo com o tempo passado e com as experiências prévias, que ninguém virá nos propor casamento… mas, ouvindo tanta gente conhecedora repetir a mentira, talvez uma pequena chama de esperança se eleve novamente…
Nossa sábia heroína, no entanto, não se deixaria enganar.
Primeiro, ela notaria que uma das partes do conflito não está negociando. Na quinta-feira, dia 15, em Doha, estavam os americanos, os israelenses, os egípcios e os catarianos. A resistência palestina, representada pelo Hamas, não compareceu porque já tinha aceitado duas propostas apresentadas pelos Estados Unidos, uma delas inscrita em resolução do Conselho de Segurança da ONU e a outra que seria, segundo Joe Biden, a proposta que Israel lhe apresentara. Quem recuou foi Israel e, com eles, os Estados Unidos.
Nossa heroína também veria com interesse o fato de que Estados Unidos, Egito e Catar se apresentam como mediadores entre Israel e Hamas. Isso apesar de terem os americanos, enquanto expressavam sua confiança no processo “negociador”, aprovado 20 bilhões de dólares em ajuda militar a Israel, na proteção de quem estão definitivamente comprometidos, dizem. Em condições normais, onde imperasse a razão, não se poderia ser parte e terceiro neutro ao mesmo tempo.
Já os países árabes, Egito e Catar, estavam ali, como disse alguém, enquanto testemunhas e carimbo, um carimbo árabe para o que Estados Unidos e Israel querem impor aos palestinos.
E, porque se trata apenas de genocídio, não viam os americanos e os israelenses, enquanto parceiros e aliados que discutiam entre si o que imporiam aos outros, urgência em apresentar uma proposta detalhada; resolveram marcar uma nova rodada de “negociações” para dali a uma semana, tempo suficiente para mais alguns massacres.
A não ser que algo milagroso ocorra nos próximos dois dias, não haverá acordo e a guerra seguirá.
Por que a encenação então? perguntaria nossa solteira sábia. Uma razão clara está na intenção de retardar a resposta militar forte que se espera, por parte de Irã e Hezbollah, contra Israel. E logo, quando viesse a resposta, Israel e Estados Unidos poderiam culpar as resistências pela não concretização da paz, que teria estado tão perto.
Porque as pessoas continuarão a dizer, e a mentir, voltaremos várias vezes ao exercício de duvidar…
*Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito da FGV-SP. Autor de, entre outros livros, de Direito global: normas e suas relações (Alamedina)[https://amzn.to/3s3s64E]
Publicado originalmente nas redes sociais do autor.
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