É legal mandar Bolsonaro “tomar no cu”?

Imagem Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Julian Rodrigues*

O Rock in Rio (que rolou entre 27 de setembro e 6 de outubro) foi marcado por muitas manifestações políticas, com um tom crítico ao governo Bolsonaro e seu programa ultraliberal e neofascista.

Em diversos shows, a plateia marcou seu repúdio ao cenário atual gritando: “Ei, Bolsonaro: vai tomar no cu”. Tal desabafo esteve presente em todo o país, pelo menos desde as manifestações estudantis que explodiram em maio.

Na quinta, 3 de outubro, a banda Francisco, el Hombre fez apresentação considerada a mais politizada do Rock in Rio. O vocalista do grupo puxou: “pulando, pulando, quem não pula é miliciano”, deixando a galera enlouquecida. As críticas ao governo Bolsonaro foram a tônica do show, bem como a defesa de Lula Livre.

Mas, quando o público gritou – como vinha fazendo há dias – “Ei, Bolsonaro, vai tomar no cu”, o cantor respondeu. Não titubeou e fez questão de demarcar: “tomar no cu é uma delícia”.

Verdade.

O sexo anal é uma prática que dá prazer para milhões e milhões de pessoas no Brasil – de todos os gêneros, identidades de gênero, orientações sexuais, idades, etnias, etc, etc.

Por que, então, desejar uma coisa tão boa para um governante ao qual queremos repudiar em grau máximo?

Reaprender a xingar

Desconstruir os estigmas, as humilhações e as violências simbólicas cotidianas perpetradas contra as mulheres, negros, LGBTI é parte constitutiva não só da luta anticapitalista – mas também da jornada civilizatória pelas liberdades democráticas.

Os palavrões que aprendemos desde criança são expressão aguda das características da sociedade capitalista, racista, sexista, patriarcal, cisheteronormativa, alicerçada na repressão da sexualidade.

Reparem: sempre sobra para as mulheres, para os gays, para os negros. E estigmatizando o prazer sexual como algo ruim.

“Filho da puta” (o que a mãe do sujeito, ainda que profissional do sexo tem a ver com o que ele faz?); “vai se foder” (foder é sinônimo de fazer sexo, então por que isso seria algo ruim?); “seu viado” (os homossexuais seriam o que há de pior na sociedade!).

“Vadia”, “cadela”, “puta”, “piranha”, “biscate”, “vagabunda” – para as mulheres, todos palavrões são relacionados a uma suposta atividade sexual “excessiva” – no fundo, um ódio misógino pela autonomia das mulheres e seu direito ao próprio corpo.

“Teu corno”, “chifrudo” (ofensa máxima para um “macho”: sua companheira teria ficado com outro homem!).

E, claro: todas as imensas variações relacionadas ao sexo anal. Desde o clássico e onipresente: ”vai tomar no cu” até “arrombado”, “vai chupar uma rola”, “pau no seu cu”, “cuzão”, “bicha louca”, “viado  arrombado”, e por aí vai.

Mandar alguém “tomar no cu” é reforçar um estigma machista e antiLGBTI. Não é apenas reiterar um interdito opressor ao sexo anal (algo absolutamente conservador, careta, repressivo). É uma ofensa particular, específica e propriamente  homofóbica.

Homofóbica? Sim. Muito. Totalmente. O sexo anal (passivo) é historicamente associado aos homens gays. É sinônimo de submissão, de degradação moral. Algo desagradável, nojento, pecaminoso.

Reparem que quem “come o cu” está fora do escopo do xingamento (comer viado pode). O feio é “dar o cu”. Porque é algo “feminino”, é quando um homem abre mão do seu status para se igualar a uma “mulherzinha”. Ser penetrado é coisa de mulher. Coisa menor. Homens não devem ser penetrados. Perdem sua dignidade e seu status social.

Por isso, mandar alguém “tomar no cu”, é desejar que essa pessoa seja humilhada, colocada num lugar inferior. É também torcer para que sofra (porque a penetração anal é associada automática e equivocadamente a dor, sangramento, ferimentos).

Prescindimos de uma análise linguística, histórica, sociológica mais aprofundada para entender o papel opressor e discriminatório dos xingamentos que ouvimos e reproduzimos desde criança.

Cu: o último refúgio

Promover a igualdade entre mulheres e homens, a liberdade de identidade de gênero, uma sexualidade livre, os direitos sexuais e reprodutivos é uma agenda a ser ainda, de conjunto, incorporada pela esquerda.

Os homens, principalmente os progressistas, estão chamados a entrar imediatamente e de cabeça nesse debate.

Precisamos discutir os modelos de masculinidade hegemônicos. Enfrentar o machismo e a homofobia, bem como a repressão sexual. Os homens são agentes de opressão e também vítimas do modelo patriarcal heterossexista.

Ao discutir essas questões, em aulas e palestras, sempre provoco: “o cu é o último refúgio da masculinidade”. Depois, antes que os caras respirem direito, revelo: “cu não tem orientação sexual, é só uma região do corpo que pode proporcionar prazer”.

Há muita literatura sobre esse tema. Mas é intrigante como o tabu permanece tão forte. “Fio terra”? Nunca confessar, nem brincando.

Vamos liberar a foda e o cu? Tirar da lista de coisas ruins?

Será que não passou da hora de toda juventude progressista, dos movimentos sociais, da intelectualidade, dos partidos de esquerda discutirem gênero e sexualidade – mais feminismo, antirracismo, liberdade sexual e de gênero?

Bolsonaro talvez fosse um homem melhor – e seus filhos idem – se tivessem tido uma relação diferente com sua sexualidade. É fato.

Mas, bora lá. Vamos inventar um jeito melhor de xingar o neofascista?

“Ei, Bolsonaro, vai tomar polícia/ que no cu é uma delícia”.

*Julian Rodrigues, professor e jornalista, é ativista dos movimentos LGBTI e de direitos humanos

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Jorge Luiz Souto Maior Andrés del Río Dênis de Moraes Anderson Alves Esteves Daniel Afonso da Silva Osvaldo Coggiola Flávio Aguiar Alexandre Aragão de Albuquerque Samuel Kilsztajn João Paulo Ayub Fonseca Boaventura de Sousa Santos Yuri Martins-Fontes Paulo Sérgio Pinheiro Celso Frederico Caio Bugiato Walnice Nogueira Galvão Paulo Nogueira Batista Jr Rafael R. Ioris Alexandre de Freitas Barbosa Ladislau Dowbor Andrew Korybko João Lanari Bo Julian Rodrigues José Dirceu Remy José Fontana Maria Rita Kehl Marcelo Guimarães Lima Bruno Fabricio Alcebino da Silva Antonio Martins Annateresa Fabris Milton Pinheiro Luiz Marques Marjorie C. Marona André Márcio Neves Soares Francisco Fernandes Ladeira Marcelo Módolo Érico Andrade João Adolfo Hansen Celso Favaretto Jean Marc Von Der Weid Tadeu Valadares Paulo Fernandes Silveira Rubens Pinto Lyra Everaldo de Oliveira Andrade Michael Roberts Ricardo Musse Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Ronaldo Tadeu de Souza Vladimir Safatle Armando Boito Marcos Aurélio da Silva Luiz Renato Martins Plínio de Arruda Sampaio Jr. Tarso Genro Fábio Konder Comparato Jorge Branco Luiz Carlos Bresser-Pereira Fernando Nogueira da Costa João Carlos Loebens Benicio Viero Schmidt Flávio R. Kothe Marilena Chauí Sergio Amadeu da Silveira Bruno Machado Airton Paschoa Valerio Arcary Fernão Pessoa Ramos Paulo Martins Lucas Fiaschetti Estevez Luiz Roberto Alves Henri Acselrad Michael Löwy Carlos Tautz Vanderlei Tenório Luis Felipe Miguel Igor Felippe Santos Manchetômetro Henry Burnett Mariarosaria Fabris Elias Jabbour Antônio Sales Rios Neto Francisco de Oliveira Barros Júnior Liszt Vieira Tales Ab'Sáber Ari Marcelo Solon Lorenzo Vitral Gilberto Lopes Ricardo Abramovay Eugênio Bucci Alysson Leandro Mascaro Luiz Eduardo Soares Lincoln Secco Otaviano Helene Luciano Nascimento Luiz Werneck Vianna Ricardo Fabbrini Alexandre de Lima Castro Tranjan Michel Goulart da Silva Gilberto Maringoni Anselm Jappe Paulo Capel Narvai Daniel Costa Claudio Katz José Geraldo Couto Carla Teixeira Afrânio Catani Marcos Silva Vinício Carrilho Martinez Dennis Oliveira Eliziário Andrade Leonardo Avritzer Marilia Pacheco Fiorillo José Machado Moita Neto Thomas Piketty João Sette Whitaker Ferreira Renato Dagnino Gabriel Cohn Daniel Brazil Eleonora Albano Priscila Figueiredo João Carlos Salles Gerson Almeida José Raimundo Trindade Slavoj Žižek Berenice Bento Heraldo Campos Eleutério F. S. Prado José Costa Júnior Leonardo Boff Ronald Rocha Juarez Guimarães José Micaelson Lacerda Morais Sandra Bitencourt André Singer Luiz Bernardo Pericás Marcus Ianoni Ronald León Núñez João Feres Júnior Jean Pierre Chauvin Luís Fernando Vitagliano Eugênio Trivinho Kátia Gerab Baggio Antonino Infranca Salem Nasser Mário Maestri José Luís Fiori Ricardo Antunes Atilio A. Boron Francisco Pereira de Farias Chico Whitaker Chico Alencar Rodrigo de Faria Denilson Cordeiro Manuel Domingos Neto Eduardo Borges Leda Maria Paulani Bento Prado Jr. Matheus Silveira de Souza Bernardo Ricupero Leonardo Sacramento

NOVAS PUBLICAÇÕES