Eficácia não comprovada

Shikanosuke Yagaki, Sem título (interior), 1930–9
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por HENRIQUE SANTOS BRAGA & MARCELO MÓDOLO*

Mudar a estratégia de comunicação para vencer a ignorância ou a má-fé em tempos de negacionistas

Um amigo brasileiro, viajando pela pátria lusitana, colheu uma daquelas experiências linguísticas de que vez ou outra ouvimos falar. “O senhor tem horas?”, pergunta ele ao guarda de uma rodoviária. “Tenho”, o outro respondeu. Nosso compatriota não se conteve: “O senhor sabe o que eu vou perguntar agora, não sabe?”. “Sim, eu sei”, respondeu o vigia, sorrindo. “E por que o senhor já não responde?”, insistiu o zuca. “E por que não me perguntas”, replicou razoavelmente o português.

Situações como essa reforçam tese continuamente defendida pelo linguista da Unicamp, Kanavillil Rajagopalan. Para o estudioso, o caminho para assumir que falamos no Brasil um idioma diferente do lusitano passará por olharmos não apenas as estruturas gramaticais, mas principalmente questões de pragmática – campo dos estudos linguísticos que trata, grosso modo, de como o significado é construído nas situações comunicativas concretas.

Ao perguntar “Você tem horas?”, o enunciador brasileiro espera que seu interlocutor adote uma postura cooperativa e realize uma implicatura conversacional, ou seja, que ative elementos do contexto para interpretar um significado implícito (algo como traduzir assim a pergunta que lhe foi feita: “Se o senhor estiver de relógio, por favor, diga-me que horas são agora”).

Como mostram esse exemplo e outros, essas implicaturas não são inequívocas. Fatores como o conhecimento contextual, o universo cultural compartilhado e mesmo as visões de mundo dos interlocutores podem fazer com que o enunciatário não coopere na construção do sentido exatamente como o enunciador pretendia. Justamente por isso, é mais que urgente substituir a expressão “eficácia não comprovada” por “ineficácia comprovada”, quando falamos dos medicamentos que compõem o enganoso “kit-covid”.

 

A busca frustrada pela eficácia

Em meio à pandemia de covid-19, experimentos com remédios que pudessem tratar os efeitos da infecção eram esperados e desejáveis. Também era esperado – embora não desejável – que fosse um processo de tentativa e erro, hipóteses e testes, como sói ocorrer na Ciência.

Uma vez frustrada a hipótese inicial – como ocorreu com os famigerados fármacos ivermectina, cloroquina e hidroxicloroquina –, faz sentido dizer que tais medicamentos “não têm eficácia comprovada”. A eficácia existiu apenas como hipótese, porém os dados não deram sustentação a ela. Já que, no universo científico, provas valem mais que convicções, fim de papo. Só que não.

Em um momento histórico marcado por pós-verdade, fake news e efeito bolha, o valor das provas e comprovações vem sendo desafiado em diversos campos. Dessa forma, a expressão “eficácia não comprovada” abre margem para implicaturas equivocadas, seja por ignorância, seja por má-fé.

Jornalistas bem-intencionados usam a expressão “eficácia não comprovada” esperando que seus leitores realizem a seguinte implicatura: “os remédios foram testados, mas não se comprovou a eficácia prevista; sendo assim, tais drogas não podem curar pacientes de covid”. Já líderes políticos, religiosos, econômicos (sem falar em grandes grupos de saúde privada…) criam contextos para que a mesma expressão leve à implicatura oposta: “a eficácia não foi comprovada, mas vivemos um momento extremo, devemos ter fé e nos apegar a todas as esperanças, não podemos ficar presos ao rigor e à arrogância dos cientistas, devemos usar esses medicamentos mesmo sem a aprovação deles”.

Dada essa ambiguidade, urge substituir “eficácia não comprovada” por “ineficácia comprovada”. A segunda expressão pode soar algo estranha, já que a intenção dos estudos nunca foi comprovar a ineficácia do fármaco, mas buscar a cura durante a pandemia. Essa outra expressão, porém, é mais precisa, graças à mudança de escopo da negação: em “eficácia não comprovada”, a negação recai sobre “comprovada”, sem negar explicitamente a possível eficácia; em “ineficácia comprovada”, o prefixo negativo “in-” nega a própria eficácia, interditando a implicatura equivocada.

 

Empatia linguística

A defesa do conhecimento científico, não raras vezes, vem se pautando fortemente em uma suposta superioridade moral. De um lado, estaríamos nós (bacharéis, mestres, doutores e simpatizantes), incorruptíveis amigos da verdade. De outro, estariam eles (falsos profetas, desprezíveis messias e ignaros asseclas), negacionistas fervorosos e incorrigíveis.

Adotando essa visão, o suposto “lado do bem” corre o risco de não assumir que o combate ao negacionismo requer maior cuidado com as estratégias linguísticas adotadas, especialmente na comunicação de massa, voltada ao grande público. Uma comunicação clara, que pondere as diferentes possibilidades de recepção da mensagem e busque favorecer as implicaturas adequadas é indispensável nesse contexto de “infodemia” (termo usado pela OMS para nomear o excesso de informação, nem sempre de qualidade, que acompanha a pandemia atual). Por ora, nossas estratégias de comunicação com o grande público ainda carecem de eficácia comprovada.

*Henrique Santos Braga é doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela USP.

*Marcelo Módolo é professor de filologia na Universidade de São Paulo (USP).

 

Publicado originalmente no Jornal da USP.

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Apelo à comunidade acadêmica da USP
Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Carta para a Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional – AUCANI
Carinhosamente sua
Por MARIAROSARIA FABRIS: Uma história que Pablo Larraín não contou no filme “Maria”
Ideologias mobilizadoras
Por PERRY ANDERSON: Hoje ainda estamos em uma situação onde uma única ideologia dominante governa a maior parte do mundo. Resistência e dissidência estão longe de mortas, mas continuam a carecer de articulação sistemática e intransigente
Arquétipos e símbolos
Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência
A biblioteca de Ignacio de Loyola Brandão
Por CARLOS EDUARDO ARAÚJO: Um território de encantamento, um santuário do verbo, onde o tempo se dobra sobre si mesmo, permitindo que vozes de séculos distintos conversem como velhos amigos
Fundamentos da análise social
Por FABIO DE OLIVEIRA MALDONADO: Apresentação à edição brasileira do livro recém-lançado de Jaime Osorio
O martírio da universidade brasileira
Por EUGÊNIO BUCCI: A nossa universidade precisa se preparar e reforçar suas alianças com suas irmãs do norte. O espírito universitário, no mundo todo, só sobrevive e se expande quando sabe que é um só
O fenômeno Donald Trump
Por DANIEL AARÃO REIS: Donald Trump 2 e seus propósitos “iliberais” devem ser denunciados com a maior ênfase. Se a política de potência se afirmar como princípio nas relações internacionais será funesto para o mundo e para o Brasil em particular
A nova indústria cultural
PorBRUNO BONCOMPAGNO: O monopólio é a tendência unívoca do capitalismo. A outra tendência do capital é desenvolver maneiras de maquiar sua dominação do cotidiano
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES