Por MARJORIE MARONA & FÁBIO KERCHE*
Porque devemos olhar para a Justiça Eleitoral
Em análises sobre eleições, comumente estamos de olho nos candidatos, seus partidos e nas pesquisas de opinião. A discussão sobre as regras eleitorais, embora de interesse mais restrito, também atrai especialistas e políticos: qual o impacto de uma determinada regra sobre as estratégias e os resultados eleitorais?
Além das tradicionais análises sobre as candidaturas mais relevantes, as alianças, o desempenho dos partidos nas eleições municipais que acontecem ainda este ano cabe acompanhar o modo como a mudança excepcional das regras de organização desta eleição impacta no seu resultado. O fim da coligação partidária para eleições proporcionais irá diminuir o número de partidos com representação nas câmaras de vereadores? As eleições ficarão restritas aos assuntos locais ou o debate será “nacionalizado”?
Um destaque especial deve ser concedido ao desempenho dos atores da Justiça Eleitoral. E de que vale enveredar esforços para compreender e acompanhar a atuação de juízes e promotores eleitorais? Encarregados de manter a lisura do pleito, em um modelo não tão comum em perspectiva comparada – de chamada governança eleitoral – atores que não disputam os votos dos eleitores, não aparecem nos programas de rádio e TV, vem ganhando protagonismo pela capacidade crescente de interferir em qualquer fase do processo eleitoral – replicando aquele que parece ser o padrão que se estabeleceu entre as instituições judiciais e políticas no Brasil.
Da convenção partidária à cassação de mandato, passando pelo registro das candidaturas e pela propaganda eleitoral gratuita, (quase) tudo pode ser objeto de intervenção ministerial e decisão judicial. O impacto sobre a disputa travada entre partidos e candidatos e, por consequência, sobre o resultado das eleições, é extenso – e, muitas vezes, indesejável do ponto de vista da democracia.
O exemplo mais recente de como uma decisão jurídica pode modificar o jogo eleitoral talvez seja o do impedimento da candidatura do ex-presidente Lula nas últimas eleições presidenciais de 2018. Baseados em decisões anteriores que permitiram que condenados (mesmo em 2º instância de julgamento) concorressem, os advogados do ex-presidente solicitaram que ele pudesse disputar o pleito, cujas pesquisas apontavam sua superioridade. No entanto, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em uma decisão de 5 votos contra 1, determinou que Lula não poderia enfrentar seus adversários. Ainda que não se possa estabelecer uma relação direta entre a decisão do TSE e o resultado das eleições presidenciais, há indícios de que a substituição do ex-presidente por seu vice, Fernando Haddad, na corrida eleitoral, teve impacto sobre a disputa, considerando, particularmente, que a eleição do atual presidente surpreendeu a maior parte dos analistas que até então indicavam ser remotíssimas suas chances de vitória.
É claro que muita coisa poderia ter acontecido se Lula pudesse ter disputado o pleito em 2018, inclusive sua derrota. Mas é também evidente que aquela decisão – tomada por juízes, não eleitos, diga-se de passagem – teve um impacto no resultado e nos rumos do país, hoje sob a batuta do ex capitão – até ali um deputado de atuação política marginal de um partido sem relevância. Se regras importam no resultado do jogo, os juízes eleitorais – que as fazem e as aplicam – também.
Agora em 2020, teremos eleições para prefeito e para vereadores em mais de cinco mil municípios espalhados pelo país. Há cidades com mais eleitores do que muitos países, como São Paulo, com mais de oito milhões de eleitores, contrastando com Araguainha (MT) onde apenas 954 cidadãos estão aptos a votar. Em comum, o fato de que independentemente da extensão do colégio eleitoral, haverá em cada um dos municípios juízes e promotores eleitorais acompanhando o processo e empoderados, por exemplo, para retirar candidatos do pleito e até cassar os eleitos pelo voto popular, em algumas circunstâncias. Para que se tenha uma ideia da extensão do impacto da atuação dos promotores e juízes eleitorais, convém lembrar que na última eleição municipal, em 2016, 145 candidatos mais votados em diversos municípios não tinham, no dia da eleição, uma resposta definitiva de seu registro de candidatura. Isso implica dizer que, mesmo tendo sido ungidos pelo voto popular, não sabiam se, de fato, assumiriam os respectivos mandatos.
Nos casos de indeferimento do registro de candidatura do titular ou vice em eleições majoritárias (como as de prefeito, agora em 2020), demanda a realização de novas eleições – e o mesmo se diz em relação à cassação de diploma ou mandato. É inegável que a cassação do mandato, registro ou diploma de um prefeito, por exemplo, importa no dilema entre legalidade e soberania. Por um lado, pretende-se restaurar a legitimidade de eleições supondo o resultado viciado por uma irregularidade; por outro, contudo, esvazia-se a soberania popular, pelo menos até que novas eleições sejam realizadas. E esta é uma tarefa que muitas vezes fica enredada nas disputas judiciais ao longo das várias instâncias da Justiça Eleitoral, operando vácuos de soberania extremamente prejudiciais não apenas para o eleitor imediato, mas para a democracia de um modo geral.
Alguns dados gerais sobre realização de eleições suplementares, aquelas feitas fora do calendário nacional, ilustram o quadro. Em 2012 foram realizadas oito, sendo a metade delas suspensas em meio a disputas judiciais. Em 2014 foram realizadas 29 eleições suplementares, das quais dez foram suspensas judicialmente. No ano seguinte, em 2015, realizaram-se mais 23 eleições suplementares, suspendendo-se judicialmente quatro; em 2017, das 61 eleições suplementares realizadas, 4 foram suspensas; e, finalmente, em 2018, foram realizadas 35 eleições suplementares, das quais duas foram suspensas e um judicialmente cancelada .
Considerando o modelo de governança eleitoral em vigor no Brasil – em que a justiça eleitoral acumula funções normativas, administrativas e jurisdicionais – a estabilidade do processo democrático e, consequentemente, a confiança do eleitor, dependem do desempenho de promotores e juízes eleitorais. As alterações normativas realizadas às vésperas das eleições deste ano ampliam, ainda mais, os fatores de instabilidade. Acompanhar, portanto, a atuação dos juízes e promotores eleitorais tornou-se tão importante quanto observar os eleitores, os candidatos e seus partidos.
*Marjorie Marona é professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFMG. Pesquisadora do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação (INCT/IDDC).
*Fábio Kerche é pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, professor permanente do Programa do Pós-Graduação da Unirio e colaborador do IESP/UERJ.
Publicado originalmente no Observatório das Eleições 2020 do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação (INCT/IDDC).