Jaider Esbell

Jaider Esbell, “A descida da pajé Jenipapo do reino das medicinas”, Acrílica e posca sobre tela, 111 x 160 cm, 2021
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Por SAMUEL KILSZTAJN*

Homenagem ao escritor, artista, ativista dos direitos indígenas e arte-educador: um contraponto à loucura do progresso imposto pelo mundo da mercadoria

Meu amigo Walter Gomes da Silva, da Amoa Konoya, além de ter ascendência indígena, é negro. Na primeira semana de novembro de 2021, o Walter mandou para mim o texto Pro dia da minha partida, do Jaider Esbell, que achei belíssimo. Depois mandou outro texto falando de suicídios recorrentes de indígenas por enforcamento, e eu respondi que achei comovente, mas que, para boa parte da população Bolsonaro & Cia., o suicídio era a melhor solução para a questão indígena, era a melhor saída para os “índios”. Só na sexta-feira, acidentalmente, foi que me dei conta do suicídio do Jaider na terça-feira de finados. Eu que, como sempre, estava no mundo da lua, fiquei sem rumo e, ao assistir à entrevista do Krenak de 3 de novembro, entrei em parafuso, me senti completamente sem chão, desamparado. Ainda me lembrava da gafe que havia cometido ao criticar o suicídio indígena, sem saber que o suicídio do Jaider já era um fato, já estava consumado.

O Walter havia passado com o Jaider o sábado inteiro anterior ao suicídio; foi o Walter que, anos antes, havia me apresentado dois artistas indígenas, que soube ser o Jaider e o Denilson; e vovó Bernaldina, depois que ela e o Jaider foram recebidos pelo Papa Francisco. A primeira saída cultural que eu havia feito, durante a pandemia, em setembro de 2021, fora à exposição Moquém_Surarî, de curadoria do Jaider, na Bienal/MAM. Assisti muito emocionado à leitura que o Jaider gravou do Makunaimã, poucas semanas antes de partir; li a peça e, posso dizer, o Jaider continua muito presente na minha vida, estrela que nunca se apaga. Ora (direis) ouvir estrelas! Olavo Bilac disse que só quem ama pode ter ouvido capaz de ouvir e de entender as estrelas.

Por ocasião do suicídio, eu estava editando o livro 1968, sonhos e pesadelos. A princípio, fiquei desnorteado, sem conseguir me localizar no tempo e no espaço. Depois dediquei o 1968 “A Jaider Esbell, estrela que nunca se apaga, eterno líder em defesa do respeito à cultura e dos direitos dos povos nativos às terras do Brasil, que não nos abandonou em 2 de novembro de 2021, aos 41 anos de idade, em sua definitiva performance artística”.

A cultura dos povos indígenas do Brasil é um contraponto à loucura do progresso imposto pelo mundo da mercadoria. Mario de Andrade ajudou a difundir a associação dos povos indígenas à preguiça de Macunaíma, mais propriamente Makunáima, ou Makunaimã. Jaider Esbell, pouco antes de sua partida, ao gravar a leitura de Makunaimã, reclamou que estava muito cansado. Denilson Baniwa descreveu o estado emocional do Jaider e a pressão do ávido mercado, que exigia que ele estivesse online e disponível o tempo todo para as webreuniões que o ajudariam a alavancar a novidade de suas obras e construir caminhos para os povos indígenas. Jaider Esbell foi engolido pelo mundo branco da mercadoria. Estressado pela pressão exercida pelo mercado e pelo papel histórico que tinha se atribuído em defesa do respeito à cultura e dos direitos dos povos nativos dessas terras, Jaider acabou se enforcando, que é o método mais utilizado nos recorrentes suicídios de indígenas. Depois que ele partiu, a grande mídia ainda preferiu silenciar a forma e a causa de seu encantamento.

Enquanto judeu, lembro que Szmul Zygielboim, membro do Governo Polonês no Exílio, sediado em Londres, cometeu suicídio em 11 de maio de 1943, em protesto à indiferença dos governos aliados face ao extermínio em curso do povo judeu. Não estou fazendo nenhuma apologia ao suicídio, mas certamente a vítima e o povo judeu não iriam querer que o manifesto de Szmul fosse silenciado, assim como a grande mídia, por falso decoro, silenciou o suicídio de Jaider em 2 de novembro de 2021. O cacique Krenak sempre diz que o mercado é uma máquina que come tudo, montanhas, rios e honra; mas ver a mercadoria engolir o Jaider, tão dono de si, foi um baque, uma tragédia grega (na referência dos brancos)… antes o Jaider tivesse dado vazão e se entregado à preguiça associada pelo Mario aos povos indígenas.

Jaider Esbell, artivista, artista e ativista, havia publicado em 2013 o texto “Pro dia da minha partida” em Tardes de agosto, manhãs de setembro, noites de outubro (Boa Vista, edição do autor, 2013). Em 2021 foi destaque da Bienal de São Paulo, em curso em meio a seu encantamento; suas gigantescas serpentes infláveis no lago do Parque do Ibirapuera maravilharam os paulistanos; e ele estava muito feliz, porque duas de suas obras tinham acabado de ser adquiridas pelo Centre Pompidou. Jaider havia chegado a esse lugar que os brancos consideram sucesso, a melhor fase de sua carreira, esse fake-sucesso-branco, nas palavras de seu maninho Denilson Baniwa. Jaider enfim acendeu no céu a sua estrela para nunca mais se apagar.

Em 26 de outubro de 2022, o SESC São Paulo, sob a curadoria de Lisette Lagnado, inaugurou a exposição “A Parábola do Progresso”, que questiona a doutrina do progresso, este engodo que propiciou a invasão das Américas, o genocídio indígena, o tráfico e utilização de mão de obra escrava de africanos e a política do embranquecimento do país. Na abertura da exposição, um representante indígena guarani da Aldeia Kalipety fez um discurso de 20 minutos para 400 pessoas. O Walter, que chegou mais tarde, perguntou se o discurso havia sido em português ou em português e guarani, e eu respondi, “nenhuma das alternativas anteriores”, porque o discurso foi só em guarani, nem uma palavra foi pronunciada em português, nem mesmo o tradicional “boa noite”. Isso é que é comunicação, isso é um grito de resistência.

Desgraçadamente, para o sistema, Jaider Esbell vale mais morto do que vivo; suas obras, depois do suicídio, subiram vertiginosamente de valor no mercado da arte. Por outro lado, o artivista Jaider Esbell, que em vida se empenhava em incentivar inúmeros artistas indígenas, passou a alavancar a autoestima e a manifestação artística dos povos originários das Américas.

*Samuel Kilsztajn é Samuel Kilsztajn é professor titular da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Shulem, Returnees e Yiddish (https://amzn.to/3ZkegH7).


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