Por Alysson Leandro Mascaro*
Comentário sobre o livro de Cristiano Zanin Martins, Valeska Teixeira Zanin Martins e Rafael Valim.
O elemento ideológico mais decisivo das sociedades contemporâneas é o do direito, porque perpassa a infraestrutura e a superestrutura do capitalismo. Como a apropriação dos meios de produção se faz mediante o instituto jurídico da propriedade privada e como a exploração das massas trabalhadoras se faz por intermédio de vínculos jurídicos contratuais, então a ideologia do direito é a sustentação das ideias constitutivas e das relações basilares do próprio modo de produção capitalista.
Por ser o núcleo da própria sociabilidade presente, daí deriva que o direito é visto como elemento natural, normal, neutro, apartado da esfera da produção e da circulação. No que tange ao seu afazer, é tomado como técnico, e seus agentes no seio do Estado – juízes, legisladores etc. – são tidos como imparciais. Tal leitura beira a ahistoricidade e a naturalização do direito – onde há sociedade há direito; a ordem é preferível à desordem; o juiz é a boca da lei etc.
Quando o quadro da ideologia jurídica é criticado e desmontado pela ciência, é esta então que passa a ser causa de escândalo perante o senso comum. Via de regra, consideram-se as razões dos legisladores as melhores. Tomam-se os julgamentos por corretos, neutros. Imagina-se que a subsunção é o método da decisão jurídica.
Ocorre que, conforme apontam tanto as filosofias do direito não-juspositivistas como as críticas, o direito se faz e se decide pelo poder, não pela norma jurídica. Indo mais a fundo, a própria forma jurídica e a forma política estatal são formas sociais, relacionais, derivadas da mercadoria. Não são maiores nem mais fortes que a dinâmica da apropriação e da acumulação. A natureza estrutural do direito e do Estado é capitalista; suas formas só para o capital se aproveitam.
Quando se está em tempos de reprodução social quotidiana, a ideologia jurídica é reinante. Imparcialidade e neutralidade jurídicas presidem o senso comum. Mas, em momentos de crise estrutural e de injunções econômicas, políticas e sociais extremas, desnuda-se então a crítica do direito. À testa da crise presente surge, inclusive, uma figura específica, aquilo que se tem chamado de lawfare.
O livro de Cristiano Zanin Martins, Valeska Teixeira Zanin Martins e Rafael Valim, Lawfare: uma introdução, recém publicado pela Editora Contracorrente, é certamente o estudo mais relevante e importante já escrito a respeito do tema, tanto em nosso país quanto no mundo. Tendo sido o Brasil o palco mais decisivo das atuais guerras jurídicas globais, é também daqui, pelo trabalho prático de defesa advocatícia e pela reflexão teórica decorrente, que se produz agora a conceituação mais sistemática sobre o tema.
A proposta do livro é a de forjar uma teoria a respeito do lawfare, distinguindo-o de outras mazelas daquela que é a reprodução ordinária do próprio direito, ela também atravessada por impessoalidades, interesses e disputas. Para tanto, busca-se na própria articulação política da sociedade contemporânea a causa e o impulso da guerra jurídica – interconectada necessariamente a uma disputa do capital e da política. No dizer dos autores, não se trata apenas de concorrência, contraposição ou disputa de interesses recorrentes. O lawfare é uma articulação em grau mais alto, da hostilidade; não é da ordem do antagonismo concorrencial, mas da relação entre amigo e inimigo.
A definição proposta pelo livro é a de que “lawfare é o uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo”.Ao se operar na definição idealista do direito – promotor de valores democráticos e inclusivos –, o lawfare com isto se contrasta. Um uso estratégico do direito rompe com a imparcialidade e a igualdade proclamadas. Nesse mesmo diapasão, o escopo do lawfare é o de sobrepor opressões, perseguições e dominações ao inimigo. A fronteira entre legalidade e ilegalidade se torna indistinta.
O propósito de definição categorial do lawfare exige também destacá-lo de fenômenos que lhe são contíguos e mesmo parcialmente sobrepostos. O livro confronta o tema com três outros assuntos: estado de exceção, ativismo judicial e guerras híbridas. Ao primeiro de tais temas, Rafael Valim dedicou uma obra de grande destaque, Estado de exceção: a forma jurídica do neoliberalismo (Contracorrente). Os autores distinguem os dois fenômenos na medida em que reservam ao estado de exceção uma tipologia bastante estrita: a condição de afastamento da normatividade no julgamento.
O lawfare, lastreando-se em mecanismos jurídicos e normativos, seria outro que não a exceção na medida em que opera no campo da legalidade, manipulando-a por dentro ou nos seus limites e interstícios. No que tange ao ativismo judicial, que nas últimas décadas expandiu o quadro da atuação dos poderes judiciários por todo o mundo, o lawfare não é tomado como seu sinônimo, mas, sim, como uma espécie de sua exorbitância. Por fim, no que tange às atuais guerras híbridas, que se valem de induções comunicacionais, políticas e religiosas e culturais para câmbios governamentais forçados, o lawfare é um de seus instrumentos de excelência.
A proposta de Lawfare: uma introdução é a de desvelar o lawfare a partir das estratégias e táticas de hostilidade para as quais este é ferramenta. Baseando-se em reflexões de autores estrangeiros, o livro aponta três dimensões estratégicas: geografia, armamento e externalidades. No que tange à geografia, o lawfare tanto é um instrumento da geopolítica quanto, naquilo que lhe é específico, é também uma distorção de jurisdições, competências, foros, magistrados ou operadores afins. Manipulam-se, assim, a garantia do juiz competente e o princípio do juiz natural.
Em relação ao armamento, o lawfare vai se escorando em normativas, institutos e arranjos jurídicos especificamente erigidos para os fins da perseguição. A partir dos EUA, instrumentos como o FCPA – Foreign Corruption Practices Act – dão a dimensão de como tal arsenal jurídico vai se erigindo nacional e internacionalmente.
Por fim, as externalidades são estratégias fundamentais do lawfare: elas envolvem a preparação do ambiente social, cultural e político que permitirá a hostilidade. A utilização estreita dos meios de comunicação de massa é seu mais bem acabado exemplo. A guerra de informações e as operações psicológicas lhe complementam o quadro.
Em relação às táticas, o lawfare se finca em variados mecanismos que atendem às estratégias geográficas, de armamentos e de externalidade. No campo geográfico, são táticas típicas o deslocamento jurisdicional e a manipulação das regras de competência. As táticas de armamento são aquelas que permitem uma artilharia jurídica contra o inimigo: denúncias sem materialidade ou justa causa; excesso de prisões preventivas; falsas incriminações mediante delações premiadas; excesso de acusação; método carrotsandsticks nas negociações criminais; uso do próprio lawfare contra quem contra ele se levanta ou o denuncia.
No campo das externalidades, o lawfare se vale de táticas como a da manipulação de pautas mobilizadoras contra o inimigo – a bandeira da corrupção sendo a mais frequente delas –; a criação de desilusões populares; a perseguição a escritórios de advocacia. As ferramentas internas e externas do lawfare permitem a identificação dos procedimentos e dos movimentos de seu quadro tipológico.
O livro se debruça, em sua parte final, em alguns casos paradigmáticos de lawfare. O primeiro deles, de lawfare empresarial, deu-se contra a empresa alemã Siemens, envolvida por acusações de corrupção no contexto geopolítico das perseguições dos EUA ao Irã na primeira década dos anos 2000. O segundo caso estudado pelo livro é de lawfare político, tendo por alvo o senador estadunidense Ted Stevens. O terceiro e mais paradigmático caso trabalhado pelo livro, também de lawfare político, é o que envolve o presidente brasileiro Lula da Silva.
Sob jurisdição de uma vara federal de Curitiba, casos envolvendo a chamada operação Lava Jato foram julgados pelo magistrado Sérgio Moro, depois ministro do governo Bolsonaro. Lawfare: uma introdução chega mesmo a incorporar revelações jornalísticas do site The Intercept, a chamada Vaza Jato, que demonstram bastidores de tal operação e íntimas conexões entre acusação e julgamento. O impacto político e econômico de tal caso é notório e está em curso.
A análise categorial do lawfare se presta claramente a desvendar chaves centrais da reprodução capitalista contemporânea e de sua crise. Em Crise e Golpe (Boitempo), insisto com a ideia de que, num modo de produção de exploração concorrencial e atravessado por contradições, lutas e antagonismos, sustentado por uma miríade de opressões, erigem-se a forma política estatal e a forma de subjetividade jurídica como correlatos necessários da própria forma mercantil.
A acumulação é o motor do capitalismo e de suas instituições e aparatos. Assim, direito e Estado não são – nem poderão ser jamais – motores imparciais da técnica normativa e institucional que operam. Regra e exceção se imiscuem reiteradamente. O lawfare é uma concentração específica do geral da juridicidade e da politicidade. Mas, enquanto concentrado, permite exatamente vislumbrar aquilo que a ideologia jurídica quotidiana oculta.
Em face do lawfare, duas posições críticas possíveis: a primeira delas, idealista, é a de reclamar a regra contra sua deturpação. Tal seria a reposição da ideologia jurídica no mesmo lugar de sempre. Há republicanismo, há legalidade, há imparcialidade, há Estado como ordem normativa, há judiciário técnico; o lawfare é apenas a negação do ideal que se poderia e se deveria alcançar.
A segunda das críticas é material: o lawfare não é apenas produto de maus governantes, empresários, juristas e jornalistas, é sim a margem extrema, sempre possível, do rio de uma sociedade de exploração, opressão, concorrência e disputa. Assim, não é pela crítica moral que se alcança a natureza do fenômeno. Sua análise categorial revela, concretamente, os mecanismos regulares e extremos de uma sociabilidade que usa e destrói variados sujeitos em favor de um só Sujeito causal e final: o capital.
*Alysson Leandro Mascaro é professor da Faculdade de Direito da USP.