Por TARSO GENRO*
A luta para salvar a democracia do fascismo e reconstrui-la na base de um Estado social e democrático de direito
1.
A manhã do dia 12 de junho de 2023 estava reservada para dois acontecimentos estranhos, na minha já não curta vida: a surpresa com a leitura que fiz do caderno do jornal Zero Hora, na reportagem “Junho de 2013, 10 anos depois”; e com o impressionante acaso que a leitura me proporcionou. Cheguei à conclusão de que os “acasos” são mais ricos que os planos de vida e do que a nossa competência em mudar o “estar no mundo”, desta mesma vida. O acaso muda mais a vida sem aviso e com mais emoção, mas nestes momentos estranhos em que tudo se “naturaliza” na política, os animais fofinhos se virtualizam e uma nova (não sei se real) humanidade desponta no horizonte cerrado, é bom prestar atenção nos “acasos”.
Explico: a bem montada matéria, feita por um jornalista que me pareceu sério, profissionalmente, trouxe várias informações e opiniões sobre os acontecimentos históricos de junho sem que, em nenhum momento, o texto tratasse dos assuntos mais relevantes que lhe dão significado, o que realmente me surpreendeu. Linha editorial da RBS? Pode ser, mas o jornalista sempre tem uma elasticidade para dizer coisas relevantes, no caso, algo como “Quem financiou aqueles movimentos?” E muito mais: como eles se conectaram com um inconsciente (ou consciente?) fascista que latejava nos poros da sociedade gaúcha.
É evidente que aqui no Rio Grande as “jornadas” tiveram uma (escassa) participação de movimentos populares de esquerda, mas, em geral, foram movimentos antissistêmicos – sem linha ou projeto político definido – que descambaram para a violência sem projeto, para uma falsa “revolução” sem utopia e sem método. Afinal, os partidos eram malditos, odiados e expulsos, mas os que defendiam esta expulsão estavam ali para fazer os seus partidos postiços do autoritarismo global, em avanço acelerado.
Os ataques ou tentativas de ataques aos comerciantes, aos prédios do Poder Judiciário, ao Museu Júlio de Castilhos, aos locais de trabalho de jornalistas, foram uma expressão clara do que viria anos depois, com a ocupação do STF e do Palácio do Planalto: fascismo em estado puro, misturado com golpismo da marginalidade organizada.
Como o movimento se inscreveu na deposição ilegal da presidenta Dilma Rousseff? Qual a sua relação com a Lava Jato? E com a quadrilha de Curitiba? Qual o “bem”, que ele fez, para a política brasileira, que “não é mais a mesma”, como o próprio jornal diz de passagem, pois “a política brasileira mudou a partir dali”. Estes assuntos importantes não mereceram uma palavra sequer na matéria, embora – à medida que o movimento fortaleceu um néscio para chegar ao governo depois dele propagar a tortura como um método legítimo de investigação – este seria um ângulo de junho que não poderia faltar numa reportagem consistente. Se isso não importa é impossível saber o que realmente importa!
Escrevo o presente artigo dialogando com a matéria de Zero Hora, também porque ela publicou algumas beatas informações, oferecidas por mim como entrevistado, totalmente secundárias na fala que fiz ao repórter, relatando o comportamento da Brigada Militar naqueles eventos. Não apareceu na entrevista, todavia, qualquer alusão ao conjunto das minhas respostas, que buscavam desafiar o senso comum sobre mês de 2013, sintetizado pela rede Globo com a enigmática frase “ o gigante acordou”. Acordou? Ou quase morreu, eis a questão.
Na verdade, como flagra em Guerra híbrida contra o Brasil (Hilton Freitas, Likjidbook, p. 59) o país “ foi alvo de uma Revolução Colorida, a qual se expressou primeiramente nas ditas jornadas de junho de 2013 e amadureceu nas manifestações de março de 2016, em prol do ‘impeachment’ da presidenta Dilma”. E segue: “sem que a “grande mídia” estabelecesse o “controle das percepções” de todo este movimento, “o golpe parlamentar não teria se consumado” e o bolsonarismo não teria nos jogado no inferno, na desmoralização e na tentativa quase bem-sucedida de liquidação do nosso Sistema de Justiça a partir da quadrilha de Curitiba.
Os estudos sobre a “guerra social” se ampliaram muito a partir daquele junho. É vasta a bibliografia nacional e internacional, mas destaco aqui um excerto bem primário sobre “guerras híbridas”, do livro do mesmo nome (Andrew Koribko, Expressão Popular, p. 70) que faz uma síntese interessante sobre o tema: “o objetivo é criar uma mente de colmeia de incontáveis indivíduos que se dedicam na cruzada contra o governo e tornam-se uma só mente. A colmeia pode ser então manipulada para investidas táticas em enxame, que são as manifestações da teoria do caos armado e contra as quais é extremamente difícil, para as autoridades, se prepararem para repeli-las.
2.
Aí vem o “acaso”. Como fiquei confuso, inclusive com o papel eu me prestei como ex-governador do estado, ao colaborar com aquela matéria, fui procurar nos meus arquivos algo que me iluminasse. Era o dia 12 de junho. Encontrei nos meus alfarrábios uma carta de Alain Touraine, datada do mesmo dia, do ano 1997! 26 anos atrás, portanto! Achei então que o acaso das datas me ajudaria a pensar um pouco sobre a democracia, as perspectivas de futuro e mesmo sobre as contribuições da imprensa, para esclarecer um pouco mais os episódios magnos de uma história recente.
As cartas são importantes porque registram vontades políticas de construção, covardia ou coragem, mas as omissões são também importantes, porque registram os silêncios tímidos de medo ou as vacilações propulsoras da vacuidade da mentira. A carta que me honrou, enviada por Alain Touraine, tem duas passagens que orgulham cada minuto da minha vida de militância política e intelectual, pois ele diz, entre outras coisas: “Li com muito interesse o documento que me enviou em espanhol e inglês. Me parece muito acertado seu ponto de vista sobre a necessidade de repensar, de maneira nova e global, o terreno da política frente o triunfo atual do capital financeiro internacionalista, (com a luta de classes) substituída, hoje, por um conflito entre redes econômicas, financeiras, midiáticas, e o esforço de comunidades, nações ou grupos sociais para reconstruir um espaço de autodeterminação”.
“No Brasil” – prossegue o mestre – “um obstáculo importante à renovação política é precisamente a debilidade relativa do poder executivo frente a grupos de pressão e a grupos de interesse que impedem qualquer política ampla de transformação social”. E segue: “Sua carta me chegou muito recentemente e eu a respondi de imediato, porque sua data é de 7 de maio (1997), o que indica que ela demorou a chegar, e eu não quero que você pense que não me interessa seu pensamento. Pelo contrário eu lhe agradeço muito a oportunidade de ter contato com um trabalho tão bem-elaborado.”
3.
Vou para outra carta muitíssimo superior à minha para Alain Touraine, que me é muito preciosa: a carta que Marx remeteu a Abraham Lincoln, em maio de 1865, que recordava certamente que a Europa inteira apoiara os Confederados (escravocratas) na Guerra da Secessão, carta em que fazia uma homenagem ao décimo sexto presidente dos EUA. O filósofo lembrava que “ali tinha (nos EUA) brotado a ideia de uma grande República democrática, de onde saiu a primeira Declaração dos Direitos do Homem e de onde foi dado o primeiro impulso para revolução europeia do Século XVIII”, depois de ter dito que “se a palavra de ordem reservada a sua primeira eleição foi a resistência ao poder dos escravagistas, o grito de guerra triunfante da sua reeleição é a morte à escravatura”.
A carta deixava claro que a escravidão não somente era uma desumanidade brutal, mas também atrasaria as lutas dos operários assalariados no capitalismo emergente e bloqueava a formação de classes intermediárias, favorecendo a situação de fortuna dos proprietários de escravos e prejudicando os novos capitalistas compradores da força de trabalho nas fábricas, que começavam a se instalar nas grandes metrópoles da época. Hoje, o desemprego, a informalidade, a precariedade e a miséria humana têm os mesmos efeitos sobre o Brasil: quantas cabeças se perdem? quantos braços definham? quantas crianças desparecem nas multidões da miséria em países como o nosso?
Parece clara, de lá até hoje, a importância da questão democrática, superior aos demais temas da agenda política nos Estados liberais do Ocidente – inclusive sobre as urgências da agenda ambiental – por vários motivos. Dentre eles, dois fundamentais: primeiro, porque a direita, em regra, quer reformas “disciplinadoras” das liberdades, para que a economia global possa “utilizar” uma democracia liberal restrita, tanto para sujeitar as questões ambientais aos interesses da acumulação privada, como para adequar a democracia liberal aos limites impostos pelo sistema financeiro global. Segundo, porque, se democracia não se demonstrar efetiva para tirar a maioria da pobreza e da miséria, o que emerge é a ditadura do fascismo, não uma revolução libertária.
4.
Pode parecer reducionismo, mas esquerda e direita têm pontos de vista opostos sobre como tratar – por exemplo – o aquecimento do planeta e o sistema político, bem como a oposição e o ajuste possível, a ser feito, entre as liberdades políticas x liberdades econômicas. São opostos porque os objetivos destas “partes” são diversos, tanto quanto ao que se poderá realizar, hoje, com chances de sucesso, como sobre lançar as bases de uma nova ordem mundial, e ainda como sobre o futuro da Humanidade: a esquerda, em regra, sustenta a necessidade de “mais democracia” e não de restrições ao liberalismo político republicano. Equilíbrio ambiental, direitos humanos, exclusão social, imigrantes, tráfico de drogas e pessoas, terrorismo de Estado, são temas que dividem, tanto conceitualmente como no cotidiano, os governos tidos – hoje – como de direita ou de esquerda, em todo o mundo.
Em relação aos direitos humanos, em particular, as dificuldades são muito grandes, pois se colocam questões práticas, quando este tema entra na conjuntura política, na qual predominam, de um lado o cinismo americano brandindo a “liberdade de imprensa” em favor da Venezuela, enquanto “extradita” um jornalista cujo crime foi demonstrar esta mesma capacidade cínica do império de lidar com seus parceiros espionando-os 24 hs por dia, como mostrou o trabalho de investigação jornalística de Julian Assange: “Dito de um modo drástico: encontramo-nos hoje numa fase em que, com relação à tutela internacional dos direitos do homem, onde essa é possível talvez não seja necessária, e onde é necessária é bem menos possível” (Bobbio, A era dos direitos, Campus, p. 60).
Reler a carta de Alain Touraine – no mesmo dia do mês que ele me escreveu anos atrás – e lembrar a Carta do velho Marx a Lincoln, tratando dos mesmos temas que tratamos hoje, na luta para salvar a democracia do fascismo e reconstrui-la na base de um Estado social e democrático de direito, estimula fundir as ideias da igualdade e da liberdade, que estão contidas nas grandes revoluções a partir de 1789. Com seus fracassos e revezes elas estão sempre presentes, o que fez Cesare Pavese dizer que “escrever é sempre o desejo de reduzir à claridade, o indistinto e o irracional, que se oculta no fundo da consciência”, que – no meu caso concreto estavam lá bem claros e luminosos, numa carta de Alain Touraine, falecido dia 9 de junho de 2023 aos 98 anos de idade.
*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA