O acesso à literatura mundial

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Por FLÁVIO R. KOTHE*

Passam regimes e partidos, mas o cânone brasileiro continua sendo usado no Brasil para não ensinar os clássicos mundiais na escola

Não há na literatura brasileira da segunda metade do século XIX uma obra equivalente ao romance Os demônios, de Dostoiévski. É uma obra sobre a vida literária russa da época, mas detecta relações mais amplas entre poder social, produção artística e criatividade. Permite várias leituras. Há uns 50 anos visitei a cela em que o jovem autor russo ficou preso, condenado à morte por pertencer ao Círculo Petrashevski, que tinha simpatias socialistas utópicas.

As paredes da fortaleza Pedro e Paulo, em Petrogrado, eram largas e úmidas. Da cela escura, dava para ver o rio Neva por uma fresta e, à esquerda, o Encouraçado Potemkin atracado. Para sorte da literatura mundial, a pena foi comutada, na hora da execução, para quatro anos de degredo na Sibéria e mais castigos.

Isso relança a questão proposta por Antonio Candido, que na maturidade reconheceu que todo jovem deveria ter o direito de, na escola, ler autores como Dostoiévski. Corrigia assim a sua implantada tese de que deveríamos estudar o cânone brasileiro porque ele nos expressa. Mais de uma vez o mestre ouviu de um orientando, no caso eu, que o cânone não expressa direito diversas etnias, como negros, índios, mulatos ou imigrantes, e que grandes autores mundiais também nos “expressam”, dizendo até mais do que sabemos. Quem não pertence aos “excluídos” não consegue vivenciar o que eles sofrem.

Passam regimes e partidos, mas o cânone brasileiro continua sendo usado no Brasil para não ensinar os clássicos mundiais na escola. Ter acesso a eles deveria ser um direito de todos os jovens, para gerar abertura e arejamento mental. Mais que direito, é uma necessidade política. As grandes obras mundiais já leram seus leitores antes de serem lidas por eles. Elas irão sobreviver ao apartheid imposto pelo Estado. Governos querem súditos, servidores, mas a democracia republicana exige um povo capaz de pensar por si, capaz de decifrar a política e ver o que é melhor para todos.

Não é porque alguém “é do contra” que ele vai produzir literatura melhor que um “conformista”, mas este, ao tratar de se enquadrar no espectro de uma oligarquia, evita ver contradições do todo e fica preso a um modo retorcido de ver. Fazendo ideologia, não faz arte. Falta-lhe o instinto feroz do grande criador. Fazer o “jogo do contente” não dá vigor ao escrito. Ao se impor na escola que todo autor canônico é grande escritor se repassa algo que a leitura mais acurada e livre dos textos não sustenta. Não se ensina a ver o que é melhor. O cânone não valoriza o escritor, pois exclui a quem não pertence ao quadro estabelecido.

A literatura parece ser a mais pobre das artes, portanto a menor, a mais desprezível. Ela permite, porém, maior liberdade. Como os textos ditos sagrados também são literatura, na prática ela é a arte mais importante, orienta as demais e a vida coletiva. Permite repensar e expressar o que um discurso político não consegue. Que um texto se torne canônico, imposto como leitura obrigatória, é decisão do poder. Um sistema – como uma Igreja ou um Estado – não costuma promover o que não tenha um mínimo de condições de qualidade. Ele a define, porém, como aquilo que está no seu gosto, adequado aos seus interesses.

Qualidade não é, no entanto, apenas a impressão que algo causa em alguém, mas a estrutura que caracteriza algo, o estado em que se encontra, seu modo de ser. Não é mero gosto subjetivo. O que agrada ao poder é o que está no perfil da imagem que ele tem de si mesmo, algo muito diferente do que ele efetivamente é. Essa diferença entre imagem e realidade é o espaço em que vive a escrita.

O escriba oportunista procura incensar a imagem idealizada, que não é apenas narcísica e sim legitimação de privilégios, auratização de quem tem poder. Não é o rancor contra a estrutura social tzarista que fez o gênio de Dostoiévski, mas lhe deu impulsos para fazer o que autores conformistas não fariam.

Na acomodação oportunista e no negacionismo, problemas graves não se resolvem. Eles são objetivos. Boas obras sobre eles também não resolvem, mas permitem que sejam vistos com maior clareza. Para crer na força de uma cena épica, é preciso aderir a valores guerreiros, capazes de mudar a história. Homero não faz o elogio dos acaios só por serem vitoriosos nem degrada os troianos por terem perdido: pelo contrário, descobre relações mais “humanas” entre os perdedores, enquanto mostra o arrependimento de Aquiles por ter optado pela fama, em vez de pela vida mais longa (dele próprio, não daqueles que ele matou).

O problema corrente mais sério de leitura talvez não seja sequer o analfabetismo funcional por via eletrônica nem o analfabetismo fático e a falta de leitura da maior parte da população. O texto mais importante na sociedade ocidental ainda é a Bíblia, mas não há um curso de Letras no país que a discuta para valer, enquanto padres, pastores e doutrinadores ficam ocupando canais e mais canais de televisão, templos e púlpitos, microfones e públicos cantantes para ditar caminhos da salvação. Não há enfrentamento, não há liberdade de contestação. Uma antena emissora é como um púlpito: ditado de cima para baixo, sem perguntas.

O que prepondera socialmente é a adesão a ficções negacionistas, há a leitura dogmática que não reconhece a ficção do texto que está lendo e não vê na literatura um espaço para dizer o que outras formas de discurso não conseguem. A história preserva longas distorções de valores, erros celebrados como acertos, enquanto o que representa outras visões é posto de lado, eliminado. Não basta a inversão da estrutura vigente. Ela não chega a ser um percurso pelo novo. Não temos público preparado para esse novo.

Discursos de políticos não são espaço para debater e rebater fundamentos. São falas de segundo grau. Antes deles estão pensadores que rearticulam pressupostos e, antes ainda, poetas originários (não meros fazedores de versos). Filosofar não é ensinar clichês, comentar biografias e bibliografias. Mais fundante é a grande poesia. Para captar sua grandeza é preciso estar à sua altura, talvez no alto de outra montanha.

Pensar exige que se vejam as coisas de fora daquilo que se supõe que elas sejam. Quando se converte uma coisa em objeto do conhecimento, passa-se a crer que a coisa seja esse objeto mental, mas ele serve para encobrir o que a coisa é, e a deixa inatingida embora tenha a pretensão de ter resolvido tudo. Que o ser humano seja dominado pela ânsia de dominação que o caracteriza tem por sequela a devastação que ele deixa como rastro de sua história.

Quem pensa pode pensar errado. Tem de “pensar errado”, na errância de uma busca por veredas sem placas de sinalização. Não pensa quem pensa nos parâmetros do estabelecido: apenas faz variações em torno do já sabido e dito. Finge que pensa, não pensa. Quem pensa “direito” supõe que pensa errado quem pensa diferente.

“Entender” o dito alheio é fazer a sua tradução para os conceitos de quem supõe estar entendendo. Ele supõe estar, porque reduziu a alteridade à sua egoidade (num ego que é incapaz de saber seus limites), porque pressupõe estar apenas dizendo as delimitações e os limites do “objeto” de sua identificação. Ele recobre a “coisa” com seu objeto identitário. É uma projeção que não se percebe como tal.

Quem pensa está fora dos trilhos do entendimento consolidado. O ficcionista gera personagens e situações que lhe permitem pensar e sugerir o que outras formas de discurso não conseguem. Ele foge ao enquadrado, ao “existente”. Mente para dizer verdades que de outro modo não poderiam ser ditas. Cria outros mundos para ver melhor o mundo.

Qual é a diferença entre obra menor e obra maior? Não é questão de tamanho, de quantidade de páginas. É diferença de qualidade. Um poema ou conto podem valer mais que um romance alentado. Na obra menor, pontas soltas mostram faíscas não implementadas em energia canalizada. Na obra maior se tem aquilo que deixou de ser feito na menor. A menor fica aquém de suas possibilidades latentes, mas o leitor é treinado na escola para não perceber isso. Um rosário de fracassos pode ser apresentado como enlevada elevação.

Uma narrativa trivial não é capaz de fazer um movimento de efetiva negação, que permita formular antíteses e, assim, abrir espaços para a superação do status quo. Ela pressupõe que certo clichê represente o bem e outro o mal, e que no fim o bem vence e os bons são recompensados. Apenas se reafirma o que se entende por bem e por mal: exatamente o que Raskólnikov desde o começo questiona. É uma estrutura religiosa que não é lida como tal. Tudo se acomoda, parecendo o casamento uma solução geral. Quem adere à narrativa trivial também adere à mentira nela implantada. Quem mente para si nas pequenas coisas logo mente para outros nas grandes causas.

A narrativa trivial exorciza o trágico e o embate épico que muda os passos da história. Ela fica no superficial, fazendo o jogo do contente. Não passa por eles. A arte realiza o que Nietzsche chamava de “grande política”, princípios morais que se tornam práticas sociais e exigem reavaliações radicais em situações de crise. A literatura russa foi capaz de fazer isso, emergindo como grande continente literário na segunda metade do século XIX, algo que a literatura brasileira talvez não tenha sido capaz de fazer por não ter tido autores que sustentassem passos tão ousados.

A grande obra não se rende aos limites de ideologias. Ela não é mera “comunicação”, um tornar comum o que era de um. Conceitos não conseguem resolver com “análises” esse diferencial da arte maior, que está nela e pode ser vivenciado por quem tiver abertura e sensibilidade. Ele justifica sua existência, só consegue ser sugerido na linguagem dela. É um sentido que transcende o significado das palavras.

Há nela um dizer apenas sugerido, um dizer não dizendo, algo que resguarda a obra, para que transcenda o seu aqui e agora. É preciso um esforço para captar isso que está aí como uma cantilena suave e não é redutível a conceitos, ainda que alguns possam ser uma chave para captar esse a mais. A grande obra tem sombras, partes sombreadas, ela repousa em algo que não se vê, mas que a sustenta, deixa de pé. A parte visível repousa na invisível e, ao mesmo tempo, sugere lados que não estão diretamente à mostra, mas existem nela. A obra menor não tem isso. Por conceitos se consegue mostrar o que nela não foi feito.

A arte não se resolve pelas ciências do entendimento, pois o belo e o sublime estão além do que pode ser apreendido por conceitos. É preciso a vivência da obra, captar suas pulsões e tensões internas, para sentir sua abrangência transconceitual. Só começamos a entender a obra quando captamos algo daquilo que não conseguimos entender. Se ela não consegue expressar isso, não se realiza como arte. A hermenêutica deve nos levar mais a interrogações do que a respostas.

A exegese não repensa os textos, apenas repete modos habituais de entender. Tenta expor o que crê ver neles. Com isso, não consegue ver o que eles são, apenas repete banalidades consolidadas. Não repensa os fundamentos. Acha que “entender” é pontuar o denominador comum entre autor e leitor: o autor menor é mais fácil, mais “adequado”.

Quando de uma coisa formamos um objeto de conhecimento, fazemos de conta que a coisa é esse nosso objeto: da perspectiva da coisa, o nosso “objeto” a deixou intangida e intocada. Temos a ânsia de que, quanto mais signos usamos, mais chegamos às coisas, quando de fato mais delas nos afastamos. De certo modo, a coisa é o inconsciente do nosso objeto de conhecimento, que se torna então um objeto de encobrimento.

Quando se fala em hermenêutica, supõe-se que ela seja um modo de explicar e explicitar o que estaria contido num texto: o “conteúdo subjacente”. O que nisso se faz é, no entanto, a tradução do seu desconhecimento ao nosso modo de entender. Aí não se vê o que foi “contido”: impedido de ser acessado: manipulado para que não se visse. Não entendemos o “original”, pois ele se torna a projeção de nossa reconstrução, a tradução de nós no outro como se fosse algo outro. Traduzimos como original a versão que dele fizemos para nós.

A “análise” deveria partir de um não-texto, de algo que o texto não é, mas que nos é apresentado para ser explicitado em outra linguagem. A análise precisa se negar como mera aplicação de esquemas a priori para chegar a si mesma. O texto proposto só se entende a partir do texto não posto. A compreensão do texto somente emerge quando entendemos o que não foi dito, o que só foi “presentificado” como ausência: escamoteado. O ausente, aquilo que não foi dito, pode delinear, porém, com mais clareza o perfil do que nos é proposto e imposto. A compreensão do ser surge a partir da concepção do não-ser. Só se pode pensar o ser a partir do não-ser, mas também o não-ser só a partir do ser.

*Flávio R. Kothe é professor titular aposentado de estética na Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Benjamin e Adorno: confrontos (Ática). [https://amzn.to/3rv4JAs]


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