Por BENITO EDUARDO MAESO*
Em nome do lucro, hasteia-se a bandeira bizarramente distorcida do conceito de liberdade de expressão
1.
A conjuntura: dias antes, o CEO da Meta (empresa proprietária do Instagram, Facebook e WhatsApp) anuncia publicamente o afrouxamento das políticas de checagem de informação em suas redes, afirmando também que o mundo carece de “energia masculina” e dando uma guinada ideológica de alinhamento ao novo governo Donald Trump e às pautas de extrema direita no mundo.
A Advocacia-Geral da União pede explicações aos representantes da empresa no país, salientando que tal postura da empresa apresenta dano potencial à preservação dos direitos de minorias étnicas, sociais e de gênero. O escritório da empresa no Brasil responde protocolarmente que os direitos serão preservados.
O fato: em menos de 24 horas, um vídeo de um deputado de extrema direita brasileiro recebe mais de 150 milhões de visualizações no Instagram, cerca de três a quatro vezes o número de acessos diários à rede a partir de endereços de IP brasileiros. O material é cheio de informações falsas sobre uma suposta taxação do Pix, mecanismo de transferência de valores muito popular.
O resultado: o assunto rompe a bolha das redes e passa a ser discutido abertamente no mundo off-line. A velocidade e o volume de propagação das informações distorcidas foram tão grandes que, estrategicamente, somente restou ao governo brasileiro recuar na proposta de combate à sonegação que originou as mudanças na forma de processamento do Pix, sob promessas de “melhorar a comunicação” com as pessoas e ameaças de processo criminal contra as e os difusores das fake news.
Todo este caos que gerou um forte desgaste do governo entre parte da opinião pública soa como uma declaração de guerra dos quatro cavaleiros do apocalipse informacional (X, Facebook, Instagram e WhatsApp) contra qualquer país ou instituição que apresente propostas de regulação para a obtenção de mais-valia psíquica e informacional. Como de hábito, a cruzada imperialista para a exploração das pessoas precisa de disfarces palatáveis ao público.
Em nome do lucro, hasteia-se a bandeira bizarramente distorcida do conceito de liberdade de expressão. Não se duvide que, no futuro próximo, esse conceito fake substituirá a propalada e desgastada “defesa dos direitos humanos” como justificativa para os EUA invadirem militarmente países e garantirem um gordo faturamento a seu complexo empresarial.
Se em outras áreas o capitalismo soube se disfarçar sob o manto do progresso e da tão falada civilização, sua vertente neoliberal informacional não tem pejo de se mostrar na sua face mais selvagem, no melhor estilo “terra-sem-lei” dos filmes de bangue-bangue, onde quem saca mais rápido a informação distorcida fere de morte o inimigo.
Neste sentido, é quase uma tautologia supormos que o caminho até 2026 e depois será de guerra constante entre o complexo informacional dos EUA e as instituições brasileiras, em mais um capítulo da guerra híbrida a que somos submetidos, no mínimo, desde 2013. O fato novo é a postura belicosa e escancarada pró-intervenção direta das big techs e de seus criminal masterminds no processo político e social brasileiro.
2.
Porém, alguns fatores precisam ser interpelados de frente para entendermos as ameaças subjacentes a este processo. É bastante plausível – e já ocorreram casos no passado, notadamente em 2016 – que a Meta tenha, por meio de direcionamentos algorítmicos, “incentivado” as visualizações do vídeo em questão. Muitas pessoas que não seguem o tal deputado ou desconhecem sua existência receberam o vídeo diretamente ligado ao perfil deste político. Todavia, este procedimento, isoladamente, não resolve todo o enigma.
Há algum tempo já é possível afirmar que aquilo que erroneamente chamamos de fake news não se restringe à desinformação, à notícia falsa ou à boataria, constituindo-se em um modo de vida[i] caracterizado pela dissolução das fronteiras epistêmicas e ético-políticas entre verdade e falsidade, construindo uma compreensão da realidade na qual somos agentes e pacientes simultaneamente.
O fake tornou-se o concreto, possuindo dimensão material e efeitos na chamada realidade, desnudando algo que já estava presente no cotidiano: o ressentimento latente, o medo generalizado, a antipolítica e a mentalidade de competição de todos contra todos. Isso impacta não apenas a vida de quem, de certa forma, escolhe ou é levado a escolher abraçar esta realidade paralela, mas todos os processos sociais e a vida de todos os integrantes dos círculos relacionais nos quais esta pessoa se insere.
A informação e a visão de mundo tidas como falsas (por não corresponderem aos fatos) tornam-se o próprio índice de verdade em si, uma verdade construída sem necessidade de correspondência completa aos dados e que passa a ter valor absoluto para quem a abraça, o que, no limite, chega a abarcar o próprio conceito do real e sua compreensão deste. A pessoa que adota o discurso e a prática cínica não percebe (ou escolhe ignorar) a dissonância cognitiva existente entre sua visão de mundo e os processos que ocorrem na realidade. Isso é chamado, por Theodor Adorno e Marilena Chaui, de cinismo.
Como exemplo, para um/a terraplanista, fatos ocorrem e se explicam metodologicamente como se o planeta fosse plano, independentemente do consenso científico e das explicações corroboradas em sentido contrário à crença deste sujeito. Numa subversão solipsista do método cartesiano, o fato da pessoa pensar tal absurdo dá a ela a convicção que, pelo fato de poder ter sido pensado, há Verdade no pensado. Ou, ainda, o indivíduo cínico pode até ter consciência do alcance de seus atos, mas deliberadamente prefere não se importar com isso ou se esconder sob o dístico de “apenas cumprir ordens” em nome de uma universalidade fictícia ou uma coerência de superfície entre ação e pensamento.
Agora, o que esta névoa entre a verdade e a falsidade tem a ver com o neocolonialismo informacional e a pretensa tolice das pessoas em acreditar em informações sem pé nem cabeça e não conferirem o que recebem? Dois fatores se sobressaem neste processo: a existência de viés de confirmação prévio àquelas informações e algo que podemos chamar de índice emocional da verdade.
No primeiro caso, as pessoas tendem a aceitar como verdadeiras as informações às quais já possuem alguma familiaridade ou que ressoam suas crenças prévias sobre o tema em questão, tornando-se especialmente incisivas nas estratégias inconscientes de persuadirem as e os demais. Somando-se a isso um estudo da revista Science que apurou que uma informação distorcida tem potencial e velocidade de compartilhamento até 100 vezes maior do que uma informação verdadeira, é simples constatar que o volume de compartilhamento sobe exponencialmente se alguma coisa da notícia já está pré-validada pelo receptor e potencial emissor, principalmente se ataca um “inimigo” deste emissor – e, na guerra santa da direita bolsonarista contra a “ameaça vermelha”, só o fato de compartilharmos o mesmo oxigênio que eles coloca um alvo bem chamativo em nosso peito.
Já o índice emocional da verdade pode ser entendido como a relação emocional prévia não com o conteúdo da informação, mas com a pessoa emissora. Você pode até saber que sua tia compartilha notícias falsas no grupo de WhatsApp da família, mas é sua tia, faz um café bom, etc., e você deixa barato, deixando inclusive de corrigi-la. Outros parentes balançarão mais, pensando “será que ela está tão errada assim?” e isso cria um ambiente favorável, no mínimo, à aceitação de parte da história. Junta-se a isto a sensação de “dono da verdade” e de se sentir especial que habita a mente de uma pessoa propensa a cair em fake news (ela sabe a “verdade”, o resto do mundo não) e está dada a receita para um desastre informacional sem precedentes.
Logo, o que fez a notícia descabida sobre o PIX prosperar, além de um cálculo político bem pensado da oposição e a little help from their friends das empresas de tecnologia e redes sociais, alinhadas à extrema direita mundialmente? O medo gerado pela informação distorcida.
Os golpes de Estado contemporâneos não precisam de “um cabo e um soldado”, mas da manipulação da percepção da realidade de uma população inteira com base em estímulos emocionais. Sob a égide do medo, as pessoas abdicam da liberdade em prol da segurança, e não se incomodam em ser oprimidas desde que possam transferir a carga de opressão recebida para alguém mais “fraco” – ou seja, também querem a chance de oprimir.
Querem crer no falso por ser mais palatável que o verdadeiro, ou mais estimulante que este. Querem crer, mesmo que não saibam que querem, pois isso proporciona satisfação psicológica a elas. Amam ter medo, amam ter prazer – e isso se confunde.
3.
Os moguls das redes sociais entendem como ninguém como esta operação psicopolítica funciona, pois é desta economia pulsional que retiram sua mais-valia assombrosa. Agora, assim como os burgueses fizeram com os aristocratas na passagem entre a Idade Média e a Idade Moderna, parece terem se cansado de “apenas” exercer o poder econômico e político definindo os fluxos monetários, desejando no presente tanto o culto à personalidade como a organização das estruturas políticas e sociais à sua imagem e semelhança, sem a máscara de um estado pretensamente impessoal a dificultar sua glorificação.
Combater este aparato digital – mas, principalmente, este modo de vida no qual tanto os megaempresários do ramo como o cidadão comum se compreendem como os protagonistas de suas próprias histórias, aqueles que, com sua presença, fazem a diferença no mundo (e outros jargões neoliberais meritocráticos) – persistindo apenas em ferramentas analógicas como o ingênuo apelo à racionalidade da política e da vida social, ao dever moral dos seres humanos em agir categoricamente e outras platitudes carregadas de esperança, mas completamente desajustadas da vida real, somente resultará em uma varrida sem precedentes nos próximos anos.
A lei precisa ser utilizada em toda a sua força, é claro, mas sem uma operação que funcione no mesmo terreno – o pulsional – podemos até ter a certeza de que a verdade factual está do nosso lado, mas receberemos em troca a manjada frase “isso é só a sua opinião”.
Isso não é um problema de comunicação da esquerda ou do governo, ainda que tenha havido deslizes no processo. É uma questão de que este modo de vida fake é a realidade em que vivemos hoje, uma realidade na qual até mesmo as lutas sociais agem pelo princípio universal da concorrência de todos contra todos, no qual o medo é estimulado para maior controle social. Sem decifrarmos o funcionamento e as possibilidades desta esfinge, é certo que seremos devorados por ela.
*Benito Eduardo Maseo é professor de filosofia no Instituto Federal do Paraná (IFPR). Autor, entre outros livros, de As diferenças em comum: Deleuze, Marx e o agora (Appris).
Referências
ADORNO, T. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo, Unesp, 2019
ADORNO, T. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo, Unesp, 2020
CHAUÍ, M. Contra a servidão voluntária. Escritos v.1. Belo Horizonte, Autêntica, 2013
_____, Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Escritos v.2. Belo Horizonte, Autêntica, 2014
_____, Sobre a Violência. Escritos de Marilena Chauí v.5. Belo Horizonte, Autêntica, 2017
DELEUZE, G. Diferença e Repetição. São Paulo, Paz e Terra, 2018.
DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia. São Paulo, n-1, 2018
HAN, B-C. Psicopolítica. São Paulo, Âinyé, 2020
MAESO, B. O Fake: o que é isso? E por que vivemos nele? Curitiba, Platô, 2024
Notas
[i] Como abordo em recente livro chamado O Fake.
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