Por LUIS FELIPE MIGUEL*
Ao nominar o golpe de 2016, Lula dá importante passo para redemocratização
A direita se enfureceu com as referências de Lula ao golpe de 2016.
Um obscuro deputado bolsonarista viu nisso motivo para ingressar com um pedido de impeachment do presidente. O chefe da debilitada e envelhecida ala jovem do neofascismo brasileiro (o MBL), Kim Kataguiri, acionou a Advocacia Geral da União (AGU) contra Lula por “desinformação”.
Factoides baratos, mas que ganham espaço desproporcional na grande imprensa. Editoriais e colunistas também esbravejam contra Lula, pelo crime de ter chamado a deposição de Dilma Rousseff pelo nome.
O argumento sempre é que o impeachment é um instrumento previsto na Constituição, logo seu uso é legítimo. A questão, porém, é se este instrumento foi acionado de forma adequada.
Rubens Casara explica de forma didática: “Cheque é uma ordem de pagamento. Cheque ‘sem fundos’, porém, é um golpe. Impeachment é um instrumento de controle do poder. Impeachment sem ‘crime de responsabilidade’, porém, é golpe. Não se trata de uma questão ‘ideológica’, mas técnica”.
Em 2016, Dilma Rousseff foi retirada do cargo com base em pretextos frágeis, que não configuram, de forma nenhuma, crime de responsabilidade. Até Michel Temer, em sucessivos atos falhos, já chamou o episódio de “golpe”.
Um golpe ocorre quando partes do aparelho de Estado decidem mudar unilateralmente as regras do jogo, em seu próprio benefício. Foi o que ocorreu em 2016. Como costuma ocorrer nos “golpes de novo tipo”, as Forças Armadas tiveram papel discreto – embora fossem ganhando maior protagonismo em seus desdobramentos.
E não se tratou de uma intervenção pontual, destinada a retirar uma governante indesejada por alguns, o que já seria ilegal. Foi o momento fundador de um amplo realinhamento político e de implantação de um projeto político que, submetido às regras vigentes, havia sido repetidas vezes derrotado nas urnas.
A ruptura de 2016 levou à implantação de um projeto que não tinha respaldo popular. Portanto, mesmo que se afirme que é o impeachment não foi golpe (e foi), fica claro que ao menos ele foi usado para se desferir um golpe.
É importante marcar isso para deixar claro que o bolsonarismo é apenas a metástase de um projeto de retração democrática que o precede e o transcende.
Ao chamar o golpe de 2016 por seu verdadeiro nome, Lula mostra que sabe que o principal desafio da reconstrução democrática é reincorporar o campo popular como interlocutor legítimo do debate político. Foi isso que o golpe e sua derivação, o bolsonarismo, tentaram impedir.
*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica).
Publicado originalmente no jornal GGN .
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