Por RICARDO ABRAMOVAY*
O contraste entre ecoeficiência e sobriedade exprime-se bem no vínculo entre padrões produtivos e regimes alimentares
Dê um Google em “eco-eficiência” (eco-efficiency em inglês) e encontrará mais de 1,9 milhão de referências. Já o termo sem o qual a ecoeficiência se torna um verdadeiro furo na água, a eco-suficiência (eco-sufficiency), recebe pouco mais de sete mil menções. É uma expressão emblemática do estado em que se encontra o esforço global para que o sistema econômico não ultrapasse as fronteiras ecossistêmicas além das quais a própria vida na Terra encontra-se sob ameaça.
De fato, o mundo está se tornando cada vez mais eficiente no uso dos recursos necessários para a oferta de bens e serviços. Produzir mais com menos é consigna unânime. Já a eco-suficiência (que, nas línguas latinas, pode ser traduzida por sobriedade), fica relegada a uma espécie de nota de rodapé no almanaque das orientações socioambientais. A evidência de que há bens e serviços dos quais é importante estabilizar e até mesmo reduzir a oferta é ofuscada em benefício do cândido otimismo que faz da ciência e da tecnologia caminhos quase exclusivos no enfrentamento da crise climática, da erosão da biodiversidade e da poluição.
Não há melhor exemplo deste contraste entre ecoeficiência e sobriedade que o oferecido pelo sistema agroalimentar global. Os documentos vindos de algumas das mais importantes consultorias e organizações globais postulam que, para fazer frente ao aumento da renda e ao crescimento populacional de um mundo que deve chegar a dez bilhões de habitantes até 2100, será preciso aumentar drasticamente a produção agropecuária e, especialmente, a oferta de carnes. Mas esta previsão costuma ser imediatamente acompanhada pela ressalva de que expansão de tal magnitude é incompatível com a meta de conter a elevação da temperatura global média abaixo de 1,5º e com o objetivo de reduzir a destruição da vida no solo, nas florestas e nas águas.
Entre 2020 e 2100, a oferta de alimentos, energia e fibras a partir dos atuais padrões produtivos, provocará emissões de 1.365 gigatoneladas de gases de efeito estufa. Ora, o orçamento carbono para que o mundo tenha 67% de chance de conter a elevação da temperatura global média em 1,5% é de 500 gigatoneladas. Se a meta for uma elevação não superior a 2º a margem é maior, mas chega a apenas 1.405 gigatoneladas. Isso significa que mesmo que a economia global fosse inteiramente descarbonizada, a agropecuária sozinha ultrapassaria os limites além dos quais o sistema climático entraria em colapso, como mostra importante artigo de Michael Clark, da Universidade de Oxford e colaboradores, na Science.
O contraste entre ecoeficiência e sobriedade exprime-se bem no vínculo entre padrões produtivos e regimes alimentares. Se o mundo adotasse a dieta típica norte-americana, isso exigiria seis vezes mais área agrícola que a adesão ao regime alimentar da Índia, segundo estudo de Peter Alexander e colaboradores. Esta dieta está na raiz da pandemia de obesidade que atinge nada menos que 40% dos norte-americanos, com consequências desastrosas para a saúde humana.
Não se trata, é claro, de encontrar padrões universais que não levem em conta as condições e as culturas alimentares e culinárias de cada região. Trata-se sim de contestar que o caminho para uma alimentação saudável e um sistema agropecuário sustentável é a produção cada vez maior.
A luta por um regime agroalimentar saudável e sustentável está organicamente vinculada à aspiração de redução das desigualdades. Condicionar o uso dos recursos ecossistêmicos voltados à alimentação às reais necessidades dos indivíduos é a premissa básica para que a agricultura contemporânea não ultrapasse as fronteiras planetárias que até aqui ela tem agredido. Documento do WWF internacional estabelece cinco objetivos em direção a uma dieta planetária voltada para as pessoas e para a regeneração ecossistêmica.
A primeira é que a alimentação contemporânea tem que zerar e reverter a perda de biodiversidade à qual, até aqui, ela é associada. A segunda é a drástica redução das emissões do sistema agroalimentar. Hoje estas emissões chegam a 16,5 gigatoneladas de gases de efeito estufa e a meta deve ser que o sistema agroalimentar em alguns poucos anos não emita mais que cinco gigatoneladas. Como as carnes estão no epicentro do sistema agroalimentar mundial, atingir este objetivo exige a migração para dietas muito mais baseadas em plantas do que em carnes. Regimes alimentares menos carnívoros tendem a exigir menores superfícies de cultivo que os padrões atuais. A terceira orientação, portanto, é de que a demanda alimentar seja satisfeita sobre a mesma superfície hoje já usada ou até reduzindo esta ocupação.
A quarta orientação está na busca de emissões negativas por parte da agropecuária. Zerar o desmatamento é, na América Latina, o principal caminho nesta direção. Mas reduzir as emissões de metano da pecuária e encontrar técnicas produtivas que favoreçam o bem-estar animal é um caminho fértil para adaptar a oferta agropecuária às reais necessidades de alimentação saudável das pessoas. Por fim, a quinta orientação refere-se à eficiência no uso de todos os insumos necessários à produção agropecuária.
O mundo empresarial tem ampliado os parâmetros que medem a eficiência de suas atividades, muito além daquilo que o sistema de preços é capaz de revelar. Levar a sério esta transformação exige mais que a avaliação dos impactos da oferta de bens e serviços sobre os ecossistemas. Não só no sistema agroalimentar, mas na economia como um todo, sem a pergunta de Ghandi sobre “o quanto é o suficiente”, o combate à pobreza e às desigualdades converte-se numa corrida maluca em direção a um destrutivo infinito que jamais poderá ser alcançado.
*Ricardo Abramovay é professor titular sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Terceira Via).
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