O terraplanismo histórico

Imagem: Michelangelo Pistoletto
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Por JOSÉ RICARDO FIGUEIREDO*

O senso comum e os preconceitos mais difundidos podem ser poderosas armas políticas

É bem conhecida a reação ao heliocentrismo nas formas da condenação religiosa ao livro de Copérnico e do julgamento de Galileu. Outra revolução científica ocorrera dois milênios antes, com a descoberta da esfericidade da Terra, mas pouco se sabe de uma reação terraplanista; um breve parágrafo de Francis Bacon dará uma pista sobre isto.

A esfericidade da Terra já era admitida pelos pitagóricos e por Platão (427-347 a.C.) e sua Academia, portanto desde o século IV a.C., ou antes.  O tema é tratado por Aristóteles (384-322 a.C.) com argumentos a posteriori e a priori. Argumentos a posteriori seriam, por exemplo, a forma da sombra da Terra em eclipses lunares, assim como o aparecimento e desaparecimento de constelações para um viajante na direção Norte-Sul. Um argumento clássico, também fundado na experiência de viagens marítimas, seria acrescentado por Adrastus: “Frequentemente, durante uma viagem, não se pode ver terra ou um navio que se aproxima estando no convés, enquanto os marinheiros que sobem ao topo do mastro podem ver estas coisas porque estão muito mais altos e assim superam a convexidade do mar que é o obstáculo” [1].

O argumento a priori de Aristóteles relaciona-se à sua visão dos fenômenos dinâmicos. Concebia dois tipos de movimentos: natural e forçado. O movimento forçado seria devido a causa externas, enquanto o movimento natural corresponderia à tendência dos corpos irem para o centro da Terra, que também seria o centro do Universo. Embora esta tendência para o centro do Universo atuasse sobre todos os corpos, “os pesos mais poderosos estão aptos a deslocar os menores”, de forma que o lugar natural dos corpos mais pesados seriam baixas alturas, e o lugar natural dos corpos leves seriam as maiores alturas. O peso não provaria rigorosamente que a Terra seria esférica, apenas introduziria uma tendência neste sentido; entretanto, no caso das superfícies de água, a fluidez do líquido para posições minimamente mais baixas conduziria à esfericidade [1].

Aristóteles relata uma medição realizada por matemáticos a ele ligados cifrando a circunferência da Terra em 400.000 estádios. Arquimedes (287-212 a.C.) estimou-a em 300.000 estádios. Como é sabido, Eratóstenes (276-194 a.C.) encontrou um método que permitiu chegar à cifra de 250.000 estádios. Esta unidade de medida não era padronizada; o estádio grego equivalia a cerca de 185 metros, mas o estádio empregado por Eratóstenes seria 157,5 metros conforme Porto da Silveira [2], ou 158,76 metros conforme Rey [3], de forma que os 250.000 estádios equivaleriam a 39.375 quilômetros ou a 39.690 quilômetros respectivamente. Em ambos os casos, a medida é surpreendentemente próxima dos 40.009 quilômetros hoje reconhecidos para a circunferência polar terrestre.

Este feito de Eratóstenes não pode ser explicado sem referência ao contexto histórico e pessoal. Eratóstenes trabalhou no Museu de Alexandria, instituição criada após o desmembramento do império de Alexandre (356-323 a.C.) por Ptolomeu I (367-283 a.C.) ou Ptolomeu II (309-246 a.C.), e que foi controlada sucessivamente pelo Reino Ptolomaico, pela República Romana e pelo Império Romano.

Bernal [4] constata que o Museu foi o primeiro instituto de investigações subvencionado por um Estado, numa tentativa consciente e deliberada de desenvolver a ciência, e observa que no Museu de Alexandria “a ciência grega cresceu em contato direto com os problemas tanto da técnica quanto da ciência das velhas culturas asiáticas, e não só do Egito e da Mesopotâmica como também, em certa medida, da Índia”. Entre os que estudaram ou trabalharam em Alexandria citam-se os matemáticos e astrônomos Arquimedes, Aristarco de Samos (310-230 a.C.), Euclides (300 a.C.-?), Hiparco (190-129 a.C.), Heron (5?-70 d.C.), Claudio Ptolomeu (90-168 d.C.), Papus (?-350 d.C) e outros, além de literatos e médicos.

Eratóstenes era matemático e geógrafo, autor de um tratado denominado Geografia. Foi o primeiro a dar a esta ciência uma base matemática, referindo-se à Terra como um globo e registrando distâncias medidas ao longo do que hoje se denominam paralelos de latitude e meridianos de longitude. Como linha base para seu mapeamento, empregou um paralelo que se estendia de Gibraltar, pelo meio do Mediterrâneo, ao Himalaia. [5]

A descrição conhecida da medição da circunferência terrestre segue relato do astrônomo Cleomedes, que viveu 200 anos depois. Eratóstenes partiu da informação de que em Siena, hoje Assuã (localizada no Trópico de Câncer), o Sol estava absolutamente a pino ao meio dia do solstício de verão, podendo-se vê-lo refletido no fundo de um poço. Mediu a inclinação do Sol na mesma data e horário solar em Alexandria, obtendo 7o12, equivalentes a 1/50 dos 360o da circunferência.  A distância relevante entre ambas localidades fora determinada em 5.000 estádios, que multiplicados por 50 levam aos 250.000 estádios para a circunferência da Terra. O método de medição de longas distâncias baseava-se nos bimetatistes, agrimensores treinados a caminhar com passos regulares [5], método instituído por Alexandre e Ptolomeu I, imitando aos babilônios [3].

Rey [3] considera que o relato de Cleomedes seria simplista por não fazer referência à diferença de longitude de 3o entre Assuã e Alexandria. Porém, pelo método geométrico de Eratóstenes, o problema não depende propriamente da distância entre as cidades, mas da distância, medida ao longo de um meridiano, entre os paralelos que passam por Assuã e Alexandria, e que seria de 5.000 estádios. Os 3o de diferença de longitude não interferem: correspondem a uma diferença em torno de 12 minutos entre os meio-dias solares daquelas cidades, de forma que o experimento em Alexandria repetia o que se passara, cerca de 12 minutos antes, no cruzamento do paralelo de Alexandria com o meridiano de Assuã.

Posteriormente, Hiparco corrigiria o valor da circunferência da Terra para 252.000 estádios, o que é antes uma confirmação que uma correção.

Diante de tamanha conquista científica, difícil conceber um retrocesso. Mas uma breve menção a uma reação terraplanista aparece em Francis Bacon [6], para quem a Filosofia Natural enfrentou em todas as épocas, como duros adversários, “a superstição e o zelo cego e imoderado da religião”. Lembra a acusação de impiedade contra os primeiros pensadores gregos que propuseram causas naturais para trovões e tempestades, e em seguida comenta: “alguns dos antigos padres (ou pais, fathers no original) da Igreja Cristã não mostraram maior tolerância com aqueles que, sob as mais convincentes bases (tais que ninguém em seus sentidos pensaria contradizer) mantinham que a Terra era redonda, e por conseqüência afirmavam a existência de antípodas.”

A expressão “antigos padres da igreja Cristã” remete ao início da afirmação da Igreja Católica, após ter sido legalizada e institucionalizada no império de Constantino (306-337 d.C.). Deste período são conhecidos dois episódios, relativos ao museu de Alexandria e à Academia platônica.

Embora tenha perdido dinamismo com o expurgo de intelectuais por Ptolomeu VIII em 145 a.C., bem como durante a dominação romana, o Museu de Alexandria e sua Biblioteca sobreviveram por alguns séculos. Um dos últimos diretores foi Theon (335-405 d.C.), cuja filha Hipátia (355?-415 d.C.) seguiu seus passos acadêmicos. Filósofa neoplatônica, matemática e astrônoma, Hipátia era também respeitada voz pública. Tinha o apoio de Orestes, Prefeito Romano de Alexandria, que enfrentava uma disputa pelo poder com Cirilo, Bispo de Alexandria, que via o Museu e a Biblioteca como instituições pagãs a serem derrotadas. Num momento de agravamento da tensão política, Hipátia foi seqüestrada e assassinada após horríveis suplícios por uma turba de seguidores de Cirilo. Orestes abandonaria o cargo depois disso. Cirilo viria a ser canonizado como São Cirilo de Alexandria.

Na mesma linha, em 529 d.C., o imperador bizantino Justiniano fechou a quase milenar Academia de Platão como política de abolição da cultura helenista pagã.

Haveria incompatibilidade de fundo do Cristianismo com a filosofia grega? Isso é negado pela história. Aurélio Agostinho de Hipona (354-430 d.C.), após converter-se ao cristianismo em 386, introduziu no meio cristão a filosofia de Platão, e foi canonizado como Santo Agostinho. Aristóteles tornar-se-ia referência fundamental da Igreja Católica após Tomás de Aquino (1225-1275).

Como se vê hoje em dia, o senso comum e os preconceitos mais difundidos podem ser poderosas armas políticas. No assassinato de Hipátia, a misoginia salta aos olhos. Já o terraplanismo intolerante citado por Bacon deve ter sido muito funcional no combate de “alguns dos antigos padres (ou pais) da Igreja Cristã” contra os intelectuais do Museu de Alexandria e da Academia de Platão.

*José Ricardo Figueiredo é professor aposentado da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp. Autor de Modos de ver a produção do Brasil (Autores Associados\EDUC). [https://amzn.to/40FsVgH]

Notas


[1] Dugas, R., A History of Mechanics, Dover Publications, New York, 1988.

[2] Porto da Silveira, J. A., Erathostenes e a medida da Terra, UFRGS.

[3] Rey, A., El Apogeo de la Ciencia Tecnica Griega, Union Tipografica Editorial Hispano Americana, Mexico, 1962.

[4] Bernal, J. D., História Social de la Ciencia, v.1, La ciência en la historia, Ediciones Península, Barcelona, 1967.

[5] Ronan, C. A., História Ilustrada da Ciência, v.I, Das origens à Grécia, Zahar, Rio de Janeiro, 1983.

[6] Bacon, F., The New Organon, in Selected Philosophical Works, Hackett Publishing Company, Indianapolis, 1999.


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