O voto dos evangélicos

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Por Rubens Pinto Lyra*

A perplexidade face à opção por Jair Bolsonaro, em desacordo com os princípios do cristianismo, torna necessário examinar os fatores psicossociais envolvidos nessa escolha.

Sempre identifiquei como virtude cardeais do cristianismo a caridade, o amor ao próximo, a busca da Justiça, a solidariedade com os pobres e oprimidos, acompanhadas da denúncia da injustiça, do luxo, da ostentação, do egoísmo e da intolerância.

Dessa forma, não são poucos os que, como eu, até hoje, se interrogam sobre as razões pelas quais uma parte expressiva do eleitorado cristão – no caso, a maioria evangélica – pôde votar, para o exercício do cargo máximo da Republica, em um candidato que, mesmo tendo fugido dos debates, nunca deixou de proclamar, alto e bom som, sua simpatia por regimes que torturaram, mataram ou perseguiram milhares de brasileiros. Voto que contribuiu, decisivamente, para a vitória do Mito.

Lembremos que Bolsonaro manifestou-se sadicamente, na votação do impeachment de Dilma Rousseff, tripudiando sobre o sofrimento experimentado pela ex-Presidente, no período em que esteve presa durante o regime militar. Ele o fez ao exaltar, na oportunidade, a figura do torturador de Dilma, o Coronel Brilhante Ustra – o que mais se destacou, durante a vigência da ditadura, nessa repulsiva prática.

O ex- capitão também não escondeu suas posições sobre os direitos humanos, por ele sistematicamente criticados, nem disfarçou, em diferentes ocasiões, atitudes agressivamente machistas. E também externou concepções regressivas, em matéria social, ao defender a falsa alternativa entre diminuição de direitos sociais ou desemprego.

A perplexidade face à tão chocante escolha torna particularmente oportuno o estudo dos fatores psicossociais do voto depositado pelos evangélicos. Entendemos que os condicionamentos psicológicos, no que se refere a esses fieis, não são estranhos à doutrina dos dois maiores ícones do protestantismo: Martinho Lutero e João Calvino – semelhantes, na questão em análise, a despeito de suas muitas diferenças doutrinárias. Esses teólogos enfatizam a impotência do individuo face aos insondáveis desígnios do Senhor. Para eles, apenas a vontade divina determina a vida das pessoas e dos acontecimentos históricos.

Calvinistas e seguidores de Lutero – mas não apenas estes – transferiram para o plano político, nas eleições presidenciais de 2020, esse sentimento de submissão incondicional, em momento de crise e de desesperança. Acreditavam que somente um demiurgo poderia evitar a derrocada econômica e social: o Mito, tal como o Füher, na Alemanha, e o Duce, na Itália.

Com efeito, para luteranos e calvinistas, mesmo o pior tirano não pode ser contestado: se governa, é porque Deus quer. Nas palavras de Lutero, citadas por Fromm: “Deus prefere aguentar a continuação de um governo, por pior que seja, do que deixar a ralé rebelar-se, não importa quão justificada ela se ache para fazê-lo” (Fromm:1970, p.74).

Essa mesma visão fatalista, de forma ainda mais acentuada, está presente em Calvino     para quem “os que vão para o Céu não o fazem, absolutamente, por seus méritos, assim como os condenados ao Inferno o são simplesmente porque Deus assim o quis. Salvação, ou condenação, são predeterminações feitas antes do homem nascer” (Calvino:1928).

Tais concepções, que negam radicalmente a autonomia do indivíduo, abriram, nolens volens, o caminho para sua submissão às autoridades seculares detentoras do poder de Estado. Estas, na atualidade, têm preponderantemente pautado suas políticas nos exclusivos interesses do capital. Elas visam à desconstrução do modelo socialdemocrata de Estado (o de Bem Estar Social) e sua substituição pelo “Estado mínimo”, mero instrumento da política neoliberal das classes dominantes.

As concepções supramencionadas se afinam com as das mais destacadas igrejas evangélicas – pentecostais ou neopentecostais – inspiradas na chamada Teologia da Prosperidade, que valorizam o sucesso material, o acúmulo de riqueza e soluções puramente individuais para os problemas sociais. Essa adequação nem sempre se dá de forma consciente. Mesmo para os reformadores religiosos em comento teria sido inaceitável a ideia de que a vida do homem viria a transformar-se em meio para alcançar fins econômicos.

Na dicção de Fromm: “Conquanto o seu modo de encarar as questões econômicas fosse tradicionalista, o destaque dado por Lutero à nulidade do indivíduo contrariava essa concepção, abrindo caminho para uma evolução em que o homem não só deveria obedecer às autoridades seculares, mas igualmente subordinar as suas vidas aos fins de realização econômica” (Fromm, 1970: p.75).

De forma similar, a evolução da doutrina calvinista põe em relevo a ideia do sucesso na vida secular ser sinal de salvação (1970, p.80), tema que mereceu a atenção de Max Weber como sendo um importante elo entre a doutrina de Calvino e o “espírito” do capitalismo. Conforme lembra Ghiardelli, pastores das maiores igrejas evangélicas, alcunhadas de “caça- níqueis”, figuram entre as grandes fortunas do país. Nas suas palavras: “A onda conservadora de costumes no Brasil tem a ver com o crescimento dessas igrejas. Bolsonaro é, em grande parte, a sua expressão O atraso cultural desse movimento é um líquido no qual ele gosta de se banhar” (Ghialdelli, 2029, p.78).

A ideologia de Lutero e de Calvino tornou-se hegemônica em várias igrejas, pentecostais e neopentecostais. O pastor de uma igreja – a Central Presbiteriana de Londrina chegou a pedir explicitamente aos seus membros para assinarem o apoio à criação do novo partido de Bolsonaro, a Aliança pelo Brasil (Pacheco, 2020). Desvela-se, portanto, o elo entre os aspectos autoritários das doutrinas dos teólogos, acima mencionados, e os de importantes setores evangélicos, apoiadores do capitão reformado, que promovem a adequação da ideologia religiosa aos valores do mercado.

Como recompensa à contribuição de expoentes calvinistas à sua eleição, Bolsonaro nomeou para o alto escalão de seu governo alguns dos mais destacados dentre eles, como o professor Benedito Aguiar Neto para a presidência da CAPES, o pastor Sérgio Queiroz para a Secretaria de Desenvolvimento Social e o pastor Guilherme de Carvalho para a Diretoria de Promoção e Educação em Recursos Humanos (Pacheco, 2020).

Não podemos, decerto, olvidar que, a despeito das posições de Lutero e Calvino , acima descritas, o protestantismo surgiu, objetivamente, como um movimento de grande impacto, na luta por liberdade e por autonomia, no seio da Igreja Católica. Contudo, o estudo dessa questão extrapola o objetivo desse trabalho.

Ele visa, tão somente, identificar os aspectos fatalistas da doutrina protestante, que favorecem, a nível político, a aceitação do autoritarismo e, no plano econômico, o ideário neoliberal. Tais aspectos conduziram a um notável retrocesso, especialmente em países como o Brasil, ganhando espaço considerável o neopentecostalismo, e, com ele, opções econômicas, morais e políticas de viés conservador.

Simultaneamente, ficou evidenciada a severa diminuição, dentre os pastores evangélicos, da qualidade de sua formação que se dá, frequentemente, em apenas seis meses, enquanto a dos clérigos da Igreja Católica dura pelo menos cinco anos. Tudo isso concorre para que o “núcleo duro” do bolsonarismo tenha alcançado um expressivo número de evangélicos, mediante combinação deletéria de fundamentalismo, baixo nível cultural e concepção de religião impregnada dos valores do mercado.

*Rubens Pinto Lyra, doutor em Ciência Política, é Professor Emérito da UFPB.

Referências

CALVINO, João. Filadélfia: Institutes of Christian Religion. Presbyterian Board of Christian Education, 1928.

FROMM, Eric. O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970. GHIARDELLI, Paulo. A filosofia explica Bolsonaro. São Paulo: Casa dos Mundos, 2019.

PACHECO, Ronilson. Quem são os evangélicos calvinistas que avançam silenciosamente no governo Bolsonaro? Intercept Brasil, 20 fev. 2020.

 

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