Os cinco problemas histórico-estruturais do Estado brasileiro

Imagem: Todd Trapani
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Por JOSÉ CELSO CARDOSO JR.*

A superficialidade e insuficiência dos diagnósticos liberais dominantes acerca do Estado nacional

Uma das razões pelas quais é infrutífero tentar identificar virtudes ou acertos nas propostas recorrentes de reformas administrativas de índole liberal é que todas elas partem de diagnósticos equivocados acerca da natureza e formas de funcionamento dos Estados contemporâneos. Em síntese, tais propostas se perfilam a uma visão econômica liberal-conservadora do mundo e por isso sugerem medidas que visam, essencialmente, à redução do peso e papéis do setor público em suas relações com a sociedade e com o mercado.

A sua ênfase recai, quase que exclusivamente, sobre a dimensão fiscal do problema, como se de mais eficiência (o mantra de fazer mais com menos recursos disponíveis) fosse possível obter, automaticamente, mais eficácia e efetividade da ação estatal. A ampliação ou melhoria do desempenho institucional agregado do setor público se converte, portanto, numa promessa irrealizável do mero corte de gastos e de pessoal, objetivo esse indisfarçável da PEC 32/2020 e suas congêneres.

Assim sendo, se tais propostas estivessem de fato voltadas para uma reforma capaz de melhorar o desempenho institucional da máquina pública, deveriam estar olhando para onde se encontram os problemas histórico-estruturais da gestão e do funcionalismo no Estado brasileiro. De acordo com a nossa interpretação, eles estão localizados em traços históricos arraigados ao burocratismo, autoritarismo, fiscalismo, privatismo e corporativismo, aspectos que, em função dos limites e objetivos desse texto, serão apenas brevemente explicitados abaixo, mas ainda assim importantes para fundamentar a crítica à superficialidade e insuficiência dos diagnósticos liberais dominantes acerca do Estado nacional, bem como para justificar, adiante, a nossa própria proposta alternativa para o tema central deste texto.

Embora difíceis de mensurar, os cinco problemas histórico-estruturais do Estado brasileiro e sua administração pública se referem a dimensões qualitativas profundas da cultura política e institucional do país, as quais nem de perto serão afetadas pelas medidas sugeridas pela proposta de reforma constitucional ora felizmente congelada no Congresso Nacional. Senão, vejamos.

 

Burocratismo: aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei!

O burocratismo remete-nos à tradição histórica brasileira de origem ibérica, por meio da qual as relações econômicas e sociais entre partes autônomas (indivíduos, famílias, empresas) vão sendo convertidas em regramentos formais e códigos de conduta sujeitos a sanções de vários tipos e níveis pelo poder instituído.

Esse longo processo de normatização, positivação das leis ou burocratização que se vai espraiando por praticamente todas as dimensões da vida coletiva, numa sociedade dominada pela lógica capitalista, também toma conta do próprio Estado, tanto internamente como em suas relações com o mercado e a sociedade da qual faz parte.

Mas ao contrário do que seria de se esperar numa sociedade que gradativamente almeja republicanizar e democratizar as relações intra estatais e entre segmentos do Estado, do mercado e da sociedade, tais códigos de conduta e legislações impostas não se aplicam igualmente a todas as partes envolvidas.

Há excesso de formalismos, legalismos, controles burocráticos e muitas etapas intermediárias que se estabelecem entre a maioria das empresas e da população em suas relações entre si e com agentes públicos, ao mesmo tempo que níveis variados de informalismos e acessos privilegiados aos tomadores de decisões de todos os tipos e lugares sociais.

Por detrás de tais hierarquias e assimetrias de poder escondem-se práticas patrimoniais, privatistas, oligárquicas, autoritárias e seletivas, enfim, pequenos e grandes atos de corrupção público-privados que filtram os acessos e favorecimentos às políticas públicas, dificultando ou mantendo na berlinda a inclusão de segmentos imensos de população e de empresas a bens e serviços de índole pública.

Há muita hierarquia formal e pouco comando efetivo, na esteira do que emerge a hipertrofia da cultura de controles formais e informais sobre o planejamento, a implementação, a gestão e a participação social nas políticas públicas. Minimiza-se, portanto, todo o potencial e poder de um Estado supostamente pensado para se organizar e agir consoante princípios republicanos, estes assentados na máxima equidade e transparência dos processos decisórios, voltados ao interesse geral e ao bem comum, e procedimentos democráticos, esses responsáveis pela ampliação e diversificação da participação social, da representação política e da deliberação coletiva acerca das questões-chaves da sociedade que atravessam os processos decisórios.

 

Autoritarismo: você sabe com quem está falando?

O autoritarismo incrustrado como traço distintivo e forma dominante de relacionamento entre agentes do Estado, do mercado e da sociedade, bem como entre eles mesmos, remonta no caso brasileiro ao Estado monárquico absolutista português que nos deu origem e direção.

A ideia de um poder centralizado de cunho ou pretensão absolutista nunca deixou de estar presente no Brasil, mesmo após a separação formal entre Estado e Igreja, a qual veio junto com a separação formal entre poderes executivo, judiciário e legislativo após a instauração da República em 1889. Esse aspecto é reforçado pelo fato de que a própria República foi aqui implantada por um pacto entre elites, tendo sido promulgada por um poder militar com apoio da burguesia capitalista emergente e aquiescência da antiga nobreza imperial. Não houve no Brasil nenhuma ruptura institucional dramática, ou evento de amplitude e aderência social que pudesse fundar uma ordem política nova ou oposta à ordem escravocrata que sempre esteve na base de nossa formação histórica.

Por esta razão, jamais se consolidou no país um processo histórico intenso de republicanização, entendido aqui como aquele por meio do qual um país e sua nação buscam se aproximar de uma forma de organização política do Estado que visa (e prevê) a repartição e o equilíbrio do poder entre seus cidadãos e organizações. Tampouco se instalou aqui um processo denso de democratização, entendido como uma forma de organização política da sociedade por meio da qual opiniões, vontades e interesses diversos podem ser agregados, manifestos e representados, e os conflitos podem ser disciplinados, regrados e periodicamente equacionados.

O autoritarismo, portanto, amalgamou-se como traço distintivo da cultura política senhorial brasileira, tendo sido relativizado em momentos de republicanização e democratização do Estado, tais como durante o segundo governo Vargas, o governo JK, o momento constituinte que antecedeu e culminou com a CF-1988 e, sob contradições abertas até 2016, viveu seus melhores dias. Mas ele também foi reforçado nos momentos de autoritarismo explícito, vivenciados pela política brasileira durante a ditadura Vargas, a ditadura militar e durante os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Em suma, a história política e institucional brasileira pode ser resumida como uma sequência desequilibrada de espasmos democráticos, combinados com dominância autoritária ao longo da maior parte do tempo.

 

Fiscalismo e Austericídio

As políticas de austeridade tratam as finanças públicas e o orçamento público como sendo similares às finanças domésticas e ao orçamento familiar, de modo que ambos, setor público e famílias, deveriam operar segundo o preceito do orçamento sempre equilibrado ou superavitário.

Por esta razão, na visão liberal, reformas da previdência e administrativas seriam fundamentais, pois ao apontar para uma redução do gasto público, transmitiriam ao mercado e agentes econômicos relevantes a sensação de solvabilidade e confiança na gestão da dívida pública. Medidas de austeridade seriam, portanto, o instrumento e a solução para restaurar a confiança empresarial e, com isso, estabelecer fundamentos para o crescimento econômico.

Essa relação entre austeridade governamental e confiança dos investidores é um mantra constante nos discursos correntes, o que tem levado governos a implementar reformas e políticas contracionistas – acompanhadas de recessão, estagnação ou mesmo deflação – em todo o globo. Considerar que o orçamento público funciona como o doméstico é uma abordagem simplista como também equivocada, ao não considerar que o governo, diferentemente de famílias e empresas, pode, por exemplo, incrementar ou reduzir suas receitas por meio de alterações nos tributos.

Ademais, não leva em conta que uma parte dos gastos públicos retorna para o governo sob a forma de impostos, e que estes mesmos gastos, pelo volume e qualidade, podem agir favoravelmente sobre a atividade econômica de modo a ampliar a própria base arrecadatória. Famílias e empresas, por fim, ao contrário do governo, não emitem moeda e nem títulos públicos, bem como não controlam a taxa de juros sobre suas dívidas, como faz o Banco Central.

Desta maneira, a equiparação entre o setor público e as finanças domésticas é, portanto, falaciosa, e seu objetivo é limitar o papel e a importância da política fiscal para o crescimento ou a atenuação dos efeitos dos ciclos econômicos, especialmente em momentos de retração ou recessão econômica. É importante fixar: as restrições ao gasto no Brasil, um país que emite sua própria moeda e cujo governo é credor internacional, são auto impostas pela legislação que sempre se pode alterar.

O dinheiro do governo, portanto, não acabou nem acabará, mas as regras fiscais brasileiras, excessivamente rígidas, o impedem de gastar num momento em que a economia, depois de vários anos de crise, ainda não logrou recuperar o nível de renda de 2014. Mas felizmente, já vão se avolumando opiniões contrárias ao austericídio como ideia e prática dominantes no mundo. Economistas estrangeiros de grande influência internacional (tal como Ben Bernanke), e mesmo alguns brasileiros de formação liberal (como André Lara Resende) vêm afirmando que essa crença na austeridade como fim em si mesmo está assentada em suposições teórica e empiricamente equivocadas.

As evidências e estatísticas disponíveis mostram que os países que seguiram o receituário da austeridade cresceram menos e/ou saíram mais tardiamente de situações de crise econômica. Ao contrário, países que adotam políticas econômicas que combinam virtuosamente o gasto público (gastos correntes e investimentos) com incentivos corretos, segurança jurídica e perspectiva econômica positiva, conseguem mobilizar complementarmente os investimentos privados no sentido de um crescimento econômico mais elevado e sustentável.

No caso brasileiro, apesar dos índices de confiança empresarial terem crescido desde a deposição de Dilma Rousseff, da aprovação da EC 95/2016 referente ao teto de gastos, das reformas trabalhista e previdenciária e da eleição de Bolsonaro à Presidência, os índices reais de atividade econômica e da produção industrial permanecem estagnados ou declinantes desde 2016, bem antes, portanto, da crise pandêmica (sanitária, econômica e social) deflagrada em 2020.

Por isso, nada assegura que reformas administrativas liberal-conservadoras, todas centradas em redução de direitos e redução de entregas de bens e serviços à população, em arrocho salarial e em demissões diretas de servidores (e indiretas de trabalhadores cujas rendas dependem dos gastos daqueles) melhorem este quadro. Pelo contrário, devem agravá-lo, ou na melhor das hipóteses instaurar a estagnação com retrocesso social e concentração da renda como o novo normal brasileiro.

 

Privatismo: vícios privados, prejuízos públicos!

Uma análise mais amiúde desses dispositivos propostos pela PEC 32/2020 revela, indubitavelmente, tratar-se de peça que visa à instauração de poderes quase absolutos do mercado sobre o Estado, do dinheiro sobre a política, da esfera e lógica privadas sobre a esfera e lógica públicas. É claro que dessa proposta de (re)desenho constitucional para pior, que pretende priorizar, na formulação, implementação e gestão das políticas públicas, o domínio de uma visão economicista e microeconômica de curto prazo, sobre uma visão holística e macrossocial de longo prazo, não se pode esperar nada promissor para as capacidades de condução futura do país.

Como se sabe, o papel do Estado no domínio econômico é alvo de inúmeros debates no Brasil. Adeptos de um Estado regulador, ou mínimo, costumam se enfrentar com os defensores de um Estado intervencionista, ou desenvolvimentista. No entanto, uma análise histórica da estrutura administrativa brasileira revela que a Constituição de 1988 recebera um modelo de Estado estruturado sob a ditadura militar (1964-1985), ou seja, o Estado reformado pelo Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG, 1964-1967), cujas concepções de eficiência empresarial e de privilégio do setor privado já estão presentes cerca de trinta anos antes da reforma gerencial da década de 1990.

O discurso oficial do regime militar já era o da ortodoxia econômica. As próprias constituições outorgadas pelos militares, em 1967 e em 1969, chegaram, não à toa, a incorporar o chamado princípio da subsidiariedade, cuja concepção é entender o Estado como complementar, subalterno à iniciativa privada. O Decreto-Lei 200/1967, pioneiro na exigência da gestão empresarial dos órgãos administrativos, vai sobreviver à ditadura militar e continuará em vigor mesmo sob a Constituição de 1988, tendo sido reforçado pela reforma administrativa gerencialista do governo FHC e, agora, ressuscitada pela PEC 32/2020.

Ocorre que, mundo afora, com a consolidação dos Estados desenvolvimentistas, as constituições do século XX incorporaram em seus textos o conflito existente entre as forças sociais, buscando abranger toda uma nova série de direitos e matérias. Apesar disso, as relações entre o direito constitucional e o direito administrativo são ainda difíceis. Enquanto o direito constitucional avançou, o direito administrativo continuou preso aos princípios liberais do século XIX, entendendo o Estado como inimigo. Por isso, a necessidade de construção de um direito administrativo dinâmico, a serviço da concretização dos direitos fundamentais e da constituição, é cada vez mais importante.

Na contramão disso, a proposta de incluir um artigo 37-A na Constituição de 1988 vai muito além da péssima técnica legislativa. A intenção da PEC 32/2020 era instituir a permissão para que os entes da Federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) firmassem “instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicos e privados, para a execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira”. Em resumo, trata-se da terceirização geral da Administração Pública. Mas ora, o regime dos serviços públicos está previsto no artigo 175 da Constituição, que determina serem eles atividades que devem ser obrigatória e diretamente prestadas pelo Poder Público. Se não forem prestadas pelo Estado, só o podem mediante concessão ou permissão e sempre precedidas de licitação. Ao prestar serviço público, o Estado, ou quem atue em seu nome por meio de concessão ou permissão, está obrigado a acatar o interesse social como métrica e destino de suas ações.

Outra aberração da PEC 32/2020 está na tentativa de incluir dois novos parágrafos ao artigo 173 da Constituição, que trata da atuação direta do Estado no domínio econômico. O novo – e pior – artigo 173, §6º prevê que: “É vedado ao Estado instituir medidas que gerem reservas de mercado que beneficiem agentes econômicos privados, empresas públicas ou sociedade de economia mista ou que impeçam a adoção de novos modelos favoráveis à livre concorrência, exceto nas hipóteses expressamente previstas nesta Constituição”. Ou seja, trata-se do fim definitivo do fomento público, pois seria possível a qualquer agente privado (nacional ou estrangeiro) acionar o Poder Judiciário contra a concessão, por exemplo, de linhas especiais de crédito, ou financiamento de projetos por parte do BNDES, como sendo medidas de “reserva de mercado”.

As implicações desse processo são perniciosas para a dinâmica de crescimento econômico, bem como para as condições de reprodução social da população. Posto tratar-se de opção política de política econômica, esse arranjo institucional que se está se querendo impor ao Brasil é passível de contestação teórica e empírica, razão pela qual é importante desnudar as suas implicações e apontar alternativas críveis para redesenhar a referida institucionalidade com vistas à promoção de um desempenho econômico e social mais condizente com o potencial e anseios de crescimento e de inclusão social do país.

 

Corporativismo: farinha pouca, meu pirão primeiro!

O corporativismo é comumente definido na literatura especializada como um sistema de representação, tramitação e implementação de interesses coletivos específicos junto ao poder público instituído. Não cabe aqui discorrer sobre suas variantes histórico-institucionais, ou seja, se corporativismo estatal (organizado e tutelado pelo Estado), se corporativismo societal (animado e sustentado pelo pluralismo de interesses presentes na sociedade), bem como as combinações e derivações observadas empiricamente de ambos os modelos principais ao longo do tempo.

Para os interesses desse texto, basta dizer que o corporativismo se firmou, na história do capitalismo contemporâneo (basicamente após a 2ª guerra mundial), como uma forma politicamente legítima e relativamente eficaz de explicitação de atores e interesses e de canalização e resolução de conflitos, tanto na relação entre setores públicos e privados, como internamente ao setor público. No caso do setor público, em função da grande diversidade de áreas de atuação estatal, burocracias e arenas decisórias, interesses e processos institucionais envolvidos.

Mas em ambos os casos, para além das decisões de Estado emanadas das regras tradicionais da democracia representativa, o corporativismo (via atividades formais e informais de lobby, advocacy etc.) veio a ser considerado também uma forma – complementar e mais direta, ainda que menos regulada – de manifestação, negociação e intermediação de interesses organizados, corporativamente, visando influenciar e moldar processos decisórios em âmbitos governamentais.

Até aqui, então, nada demais, apenas as coisas como efetivamente são e funcionam nas sociedades capitalistas contemporâneas. Mas o problema começa quando, saindo da discussão formal e abstrata sobre os conceitos e categorias acima, chegamos ao chão da política como ela é. E ela é dominada, no Brasil e alhures, por grupos e corporações mais poderosos e privilegiados que outros. Essa hierarquia e assimetria de poder e de recursos (econômicos e simbólicos) distorce a legalidade, a legitimidade e os resultados concretos obtidos pelos diversos grupos organizados da sociedade (públicos e privados) que se relacionam corporativamente com o Estado, o qual, portanto, acolhe, tramita e implementa diferenciadamente as suas decisões e políticas públicas, mais em favor de uns que de outros grupos sociais.

Nesse sentido, sempre e quando o Estado age apenas como canal de transmissão dos interesses mais fortes e bem representados em seus circuitos decisórios, ele colabora para sacralizar as desigualdades econômicas e sociais presentes na sociedade, e também a reforçar a assimetria de recursos e o poder de voto e de veto dos atores mais influentes. Ao fim e ao cabo, é a própria política em regimes formalmente democráticos que vai perdendo potência transformadora, já que por meio do corporativismo predatório vão-se consumando posições de poder dos grupos já privilegiados e fragilizando-se as posições de atores com menos recursos e voz menos potente na sociedade e junto aos governos.

Pode-se dizer que o mesmo fenômeno acontece nas relações intraestatais, onde determinadas elites burocráticas conseguem não apenas impor e manter seus próprios privilégios de classe, como por meio disso afastar a sua atuação dos interesses e necessidades verdadeiramente nacionais. Que isso seja a regra das corporações privadas já o sabemos, mas que tal comportamento seja a tônica de burocracias corporativas sobrerepresentadas no seio do setor público, é um péssimo sinal de esvaziamento substantivo do republicanismo e da democracia em nosso país.

 

À guisa de conclusão: o que fazer?

Tendo em tela, portanto, apenas o caso brasileiro, a nossa proposta consiste em lançar mão de três ideias-força, de cujo resgate teórico-histórico se poderia partir para avançar tanto na crítica aos formatos e conteúdos atualmente dominantes na esfera estatal, como – indo além – avançar também na reafirmação ou proposição de novos princípios, diretrizes, estratégias e táticas de ação (coletiva, contínua e cumulativa) que nos permitam conduzir a situação para um patamar qualitativamente superior de entendimento, organização e funcionamento do Estado nacional para as novas gerações de brasileiros e brasileiras, ainda no século XXI.

São elas:

(i) Projeto de país: o desenvolvimento nacional é o carro-chefe da ação do Estado, ou seja, o Estado não existe para si próprio, mas como veículo para o desenvolvimento da nação. Nesse sentido, fortalecer as dimensões do planejamento estratégico público, da gestão participativa e do controle social – estratégias essas de organização e funcionamento do Estado – é condição necessária para que possamos dar um salto de qualidade ainda no século XXI no Brasil.

(ii) Capacidade de governo: a necessidade de uma reforma do Estado de natureza republicana, que traga mais transparência aos processos decisórios, no trato da coisa pública de modo geral, é condição inescapável para redirecionar a ação governamental para as necessidades vitais da população.

(iii) Governabilidade: por fim, mas não menos importante, a revalorização da política e da democracia, pois não há como fazer uma mudança dessa envergadura sem a participação bem informada da maioria da população. A democracia não é apenas um valor em si, mas também um método de governo, por meio do qual as vontades da maioria da população se manifestam, eleitoral e periodicamente. Mas para além da democracia representativa em crise, há elementos de uma democracia participativa – e mesmo deliberativa – que pressionam por mais e melhores espaços de existência e funcionamento.

A proposta acima reafirma o fato de que para debater tais desafios e lutar por um Estado moderno e serviços públicos de qualidade no Brasil, é preciso ter claro que em todas as experiências internacionais exitosas de desenvolvimento é possível constatar o papel fundamental do ente estatal como produtor direto, indutor e regulador das atividades econômicas para que essas cumpram, além dos seus objetivos microeconômicos precípuos, objetivos macroeconômicos de inovação e inclusão produtiva e de elevação e homogeneização social das condições de vida da população residente em território nacional.

Sendo o Brasil um país de dimensões continentais e com uma população estimada, em 2022, na casa dos 210 milhões de habitantes, trata-se, sem dúvida, de um enorme desafio político e econômico a provisão (quantitativa e qualitativamente) adequada de bens e serviços à totalidade da população residente no país. Daí não só a necessidade, mas inclusive a urgência, de iniciativas governamentais que não se restrinjam à mera gestão (ainda que eficiente) das políticas e programas já existentes de infraestrutura econômica, social e urbana. Trata-se, na verdade, da necessidade e urgência de iniciativas mobilizadoras das capacidades estatais e instrumentos governamentais à disposição dos governos e a serviço do desenvolvimento nacional.

Pelo dito até aqui, fica claro que pela abrangência, profundidade e velocidade da destruição nacional em curso desde 2016, a reconstrução do país será obra para uma geração inteira ou mais de cidadãos e cidadãs, cientes de que um Plano de Refundação do Brasil, para além do seu Bicentenário da Independência (1822/2022), deveria enfrentar os seguintes pontos cruciais, dentre muitos outros, evidentemente:

(1) “Nova Comissão da Verdade”, ou outro nome mais adequado que se possa dar, para apurar e julgar crimes do governo Bolsonaro contra o seu próprio povo e instituições.

(2) Referendo Revogatório das principais medidas legislativas aprovadas desde 2016, por terem sido formuladas e implementadas em contexto hoje sabidamente ilegal, imoral e ilegítimo, além de possuírem caráter antipopular, antinacional e antidesenvolvimento.

(3) (Re)ativação das capacidades estatais de planejamento governamental e de coordenação estratégica (inter e intra setorial, territorial e social) das políticas públicas nacionais e dos investimentos público-privados. Neste particular, é preciso compatibilizar a sustentabilidade empresarial de longo prazo com a função social pública das estatais, já que a eficiência microeconômica de curto prazo não pode estar acima da eficácia macroeconômica e da efetividade social nos médio e longo prazos.

(4) Nacionalização, reestatização e/ou criação de novas empresas estatais estratégicas e/ou empresas mistas de controle público, visando a retomada do poder decisório sobre políticas fundamentais ao crescimento econômico e ao desenvolvimento nacional.

(5) Reforma Tributária/Fiscal progressiva na arrecadação e redistributiva nos gastos públicos: revisão das Regras Fiscais e Monetárias vigentes (teto de gastos, regra de ouro, superávit primário e relação STN-BC) para uma melhor e mais efetiva governança orçamentária, vale dizer: orçamentação, alocação, monitoramento, avaliação e prospecção dos gastos públicos.

(6) Inovação e Gestão Pública Democrático-Participativa: governo digital, dimensionamento, planejamento e profissionalização da força de trabalho, monitoramento, avaliação e gestão do desempenho institucional e das competências profissionais.

(7) Relações de Trabalho no Setor Público: regulamentação dos direitos e condições de negociação coletiva e greve no setor público nacional, tal que uma verdadeira política de recursos humanos para o setor público brasileiro leve em consideração de modo articulado as etapas de seleção, capacitação, alocação, remuneração, progressão e aposentação.

(8) Criação da CLS (Consolidação das Leis Sociais), Modernização Progressista da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e do RJU (Regime Jurídico Único).

(9) (Re)adequação do peso e papel institucional dos Controles Burocráticos (interno e externo) do Estado e (Re)institucionalização da Participação Social como método de governo: medidas para conferir mais e melhor transparência dos processos decisórios intragovernamentais e nas relações entre entes estatais e privados, bem como sobre resultados intermediários e finais dos atos de governo e das políticas públicas de modo geral.

(10) Regulação e desconcentração econômica dos veículos de mídia, mais democratização e melhor controle social sobre os meios de comunicação (públicos e privados) em operação no país.

(11) Refundação do modelo político-partidário representativo e (re)institucionalização de modelos democráticos de cunho participativo e deliberativo para a manifestação pública de interesses coletivos, arbitragem e resolução de conflitos em arenas e processos democráticos, além de legitimação política das decisões acordadas.

(12) Refundação do Sistema de Justiça, com controle social público, transparência dos processos decisórios e substituição dos mandatos vitalícios por mandatos fixos, ainda que longos e estáveis.

(13) Combate aos privilégios, injustiças e à corrupção: ter claro que a corrupção não diz respeito especificamente ao Estado e à dimensão política do poder, mas sim às relações espúrias que se estabelecem entre interesses privados/privatistas e o Estado/esfera pública. Por isso, a luta contra a corrupção deve ser concebida de modo subordinado ao aprofundamento do caráter democrático e republicano do Estado brasileiro.

Tal refundação deve ancorar o Estado em novas bases, assentadas no aprofundamento permanente da soberania popular, na defesa diuturna da vontade geral da população, no combate sem tréguas às desigualdades de toda ordem e na busca incessante pela formação de uma opinião pública livre e plural, sem descuidar de manter e aprofundar os direitos de cidadania conquistados em 1988.

O tempo urge! Mãos à obra!

*José Celso Cardoso Jr., doutor em economia pela Unicamp, é servidor público federal no Ipea e atual presidente da Afipea-Sindical.

 

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