Por MARCO BUTI
Em arte há inúmeras manifestações em que a intervenção física do artista é inseparável da criação de sentido
A elaboração de uma gravura, assim como de qualquer obra de arte, é acompanhada de uma intensa atividade mental. À manifestação no plano material corresponde uma rede de associações, influências, memórias, anseios, conhecimentos, reflexões que, justamente ao realizar-se, atinge a máxima concentração e exigência: torna-se forma. É um processo vivo, cuja consequência mais digna é a própria obra. É também o único resultado que o eventual espectador poderá avaliar. Porém, para o artista, esta mesma obra foi muito mais um processo, simultaneidade de matéria e pensamento, imperceptível de um ponto de vista externo. Até um observador postado ao lado do artista durante todo o período de elaboração só teria conhecimento da ação física, sem os correspondentes processos mentais.
No caso específico da gravura, parece haver ainda mais dificuldade em se compreender essa conexão, devido, creio, ao pouco conhecimento de sua história e seus processos, e à escassez de textos realmente reflexivos. O que exponho a seguir está totalmente contido nas próprias imagens, desde que se possua o conhecimento adequado. Mas este ponto de vista interno só se adquire pela experiência direta e prolongada.
Neste fazer não há contradição entre artesanato e conceito. Em arte há inúmeras manifestações em que a intervenção física do artista é inseparável da criação de sentido. Essa prática não é nunca uma finalidade em si, mas continuidade entre pensar e fazer. Nem puro conceito, nem ação sem pensamento. É uma situação impura, cujos elementos não podem ser separados sem destruí-la.
Uma gravura ou qualquer obra plástica é literalmente pensamento visual, contém em essência os conceitos do artista sobre arte e suas ligações com o mundo, que só pela continuidade e aprofundamento da reflexão até o plano material poderão desenvolver-se e gerar os significados mais densos. No campo das artes plásticas, uma exigência técnica nunca deveria estar voltada para si mesma, mas ligada a exigências de linguagem. O artista organiza qualidades sensíveis: é uma sintaxe tão rigorosa quanto a verbal, mas seu sentido é inseparável da materialidade.
Suas manifestações procuram uma estrutura totalmente significativa, cujas relações têm exigências de linguagem. O artista organiza qualidades sensíveis: é uma sintaxe tão rigorosa quanto a verbal, mas seu sentido é inseparável da materialidade. Suas manifestações procuram uma estrutura totalmente significativa, cujas relações têm um nível de dificuldade análogo, por exemplo, ao da rima ou outro princípio interno de organização na poesia. A linguagem visual, com intenção artística, é linguagem poética, com um nível de articulação infinitamente mais alto que o corrente. Como a palavra, os signos gráficos tecem uma rede de relações significativas: a matéria altamente organizada se transcende.
A atividade gráfica exibe uma face técnica e material muito vistosa. Um atelier de gravura tem numerosos equipamentos, prensas, e uma série de atividades manuais em andamento. Um observador desavisado, que não conhece bem o sentido daquelas operações, é facilmente levado a supervalorizar o aspecto técnico, que se exibe com tanta intensidade. Acredita que é a chave da realização da obra, ou talvez seja levado a deduzir daquele fazer uma correspondente falta de pensar.
A gravura tem um complicador a mais: a falta de resultado imediato. É um procedimento indireto, cujo resultado só é conhecido no fim, com a impressão. Mesmo o aspecto exterior dos procedimentos gráficos mal pode ser observado: à maior destreza não corresponde necessariamente a melhor obra. O próprio artista, enquanto grava a matriz, não tem certeza do resultado. É essa a grande dificuldade na prática da gravura, e não a inversão da imagem: a ação exercida sobre a matriz só terá sua plena consequência no ato da impressão; portanto, numa materialidade totalmente distinta, constituída pela soma da tinta com o papel.
Essa particularidade introduz um aspecto de grande exigência intelectual e sensível: o gravador trabalha com probabilidades, e não com certezas. Não dispõe da resposta imediata da pincelada ou da tela eletrônica no momento da construção da imagem, que nem por isso deverá ser menos articulada. Existe um esforço mental constante para visualizar algo que ainda não existe, fazer cada signo gravado corresponder às necessidades construtivas da imagem impressa.
Trabalha-se por antecipação, procurando controlar um fenômeno que só se realizará plenamente no futuro. Cada lance da gravação implica uma cadeia de outros, em busca de uma estrutura visual sujeita às variáveis da tinta, dos processos de entintagem e impressão e das qualidades dos papéis. O que parecia estritamente manual, observado internamente, revela também uma analogia com o xadrez. Sem conhecer suas regras e a estrutura de pensamento que o determinam, tomaremos o mero deslocamento de peças pelo jogo.
Ao usar a palavra gravura não podemos desprezar as nuanças que esta generalização oculta. Na verdade, existe uma gravura genérica e muitas particulares. A primeira é uma gravura inexistente, ou que pretenderia ser a soma de todas as gravuras, englobando suas características mais amplas. Não tem um autor, ou tem todos, do mais genial ao mais medíocre. Cada gravura particular tem um autor definido, um artista que pode operar sozinho ou com a colaboração de um grupo de técnicos, mas cuja presença impregna a imagem: ela é afetada por um momento histórico, tecnológico e cultural, e por uma personalidade definidos. A gravura genérica é potencial, enquanto a particular é uma realização viva, carregada de particularidades que criam um significado.
A essas gravuras, genérica e particular, correspondem técnicas distintas : a técnica de manual e o que eu chamaria de técnica vivida. A primeira procura apresentar o mais amplo leque de possibilidades, a fim de oferecer um apoio adequado às necessidades de um usuário anônimo. Está solidamente baseada nas propriedades físicas e químicas de materiais e instrumentos, procurando garantir a segurança de qualquer resultado. Leva sempre em conta um leitor sem experiência em gravura, começando a orientação pelos níveis mais elementares. Embora procure ser exaustiva, não é, já que os manuais são escritos com base na experiência do autor. É uma técnica adequada à iniciação, pois, em princípio, permite a realização correta de qualquer trabalho. Mas falta algo: quando se chega à práxis artística, as coisas mudam de figura.
Nenhum livro é suficiente sem uma orientação concreta, por parte de alguém mais experiente. O trabalho real com a gravura depende da educação da sensibilidade às qualidades e reações específicas dos materiais, que não são verbalizáveis. O orientador, se for competente, terá com certeza uma experiência artística madura, fruto do contato com seu próprio trabalho, infinitamente mais intensa que qualquer leitura. Sendo um artista, terá um projeto poético, em função do qual existe sua relação com a gravura. Portanto, saberá permitir a transformação progressiva da técnica de manual no trabalho do aprendiz na técnica vivida, a única adequada ao nível artístico.
Este é o ponto-chave para compreender a técnica como processo intelectual: a partir do momento em que associa a gravura a um projeto poético, o artista seleciona no arsenal técnico disponível apenas o necessário para produzir os signos correspondentes à manifestação integral do seu pensamento afetivo, incluindo dúvidas e desejos. Como diz Duchamp, “no ato criador o artista passa da intenção à realização, por meio de uma cadeia de reações totalmente subjetivas. Sua luta pela realização é uma série de esforços, sofrimento, satisfações, recusas, decisões que também não podem e não devem ser totalmente conscientes, pelo menos no plano estético”.
A técnica vivida serve unicamente para a realização daquele trabalho, em cuja busca poderá inclusive subverter a técnica do manual. Ao contrário desta, é uma atividade de risco, que opera sempre no limite das possibilidades, na linha divisória entre a realização plena e o fracasso. É mais que experimental: é soma das experimentações com sua crítica. Estende suas exigências ao espaço do atelier: se o coletivo é uma oficina com possibilidades para todos, o atelier do artista torna-se uma extensão de sua mente e de seu corpo.
No nível técnico assim entendido, já começam a se definir os valores do autor. Se o compromisso, ao trabalhar artisticamente no plano material, é com a estruturação de uma linguagem visual e poética, carregada de significados, e se presume que esses significados têm importância, ao menos para o artista, e talvez para o eventual espectador, contribuindo para a construção de ambos como seres humanos, então existe, já no nível técnico, um sentido ético em cada ação.
Esse processo, englobando a prática da gravura e manifestando-se por seu intermédio, cria uma distinção qualitativa no uso dessa tecnologia. A técnica torna-se um canal de comunicação da mente com a matéria: é elemento ativo de uma rede de associações culturais, sociais, econômicas, formais, históricas, afetivas, desenvolvendo-se em muitos níveis, mas sem fraturas. De agora em diante, não há mais exclusivamente técnica, como fazer material, mas também poesia, fazer intelectual. Não é mais artesanato, mas arte. Na bela expressão de Décio Pignatari, há uma passagem do tempo histórico (onde se localiza a tecnologia) ao tempo cultural (lugar da arte, do uso artístico e do meio tecnológico): “A passagem do tempo histórico para o tempo cultural é a passagem da tecnologia para a sabedoria”.
É útil comparar dois exemplos concretos: os procedimentos de gravação usados por Piranesi e Morandi. Escolho estes artistas por serem de primeiro plano, usarem técnicas aparentemente similares e por possuírem informações seguras sobre a elaboração de suas obras gráficas. Essa análise poderia ser feita com qualquer outro artista, desde que seus processos fossem conhecidos com precisão. Esse aspecto é problemático: se a obra como resultado pertence à humanidade, seus processos são totalmente individualizados e tendem a desaparecer.
Os dois artistas usam a gravura em metal, e de maneira quase exclusiva a água-forte como técnica de gravação. Trata-se de cobrir a matriz com um verniz resistente ao ácido, desenhando depois com pontas metálicas, atravessando essa camada protetora. A gravação propriamente dita é realizada pelo ácido, corroendo as linhas abertas no verniz, obtendo-se gravações tanto mais profundas quanto mais longa for essa corrosão. Com a impressão da matriz, transmitem-se para o papel linhas cujo tom é proporcional à profundidade das linhas gravadas. Essa é a descrição básica da água-forte, encontrada com poucas variações em todos os manuais de gravura.
Examinando a obra de Piranesi nota-se o uso constante da morsura múltipla, ou seja, vários banhos de ácido, chegando a um máximo de catorze, correspondente, portanto, a linhas de catorze tonalidades diferentes. Como tais linhas estão sempre estruturalmente organizadas como desenho, podem criar a ilusão de pelo menos catorze planos no espaço. Ora, Piranesi age dentro do universo visual da perspectiva renascentista, que conhece profundamente por ser também arquiteto. Ela pressupõe uma sucessão de planos até o infinito, mas o artista não a usa para representar o espaço real, e sim para criar um espaço gigantesco e labiríntico. Portanto, para sua construção plena – da qual depende o significado da obra – são necessários ainda mais valores tonais do que para criar uma ilusão de espaço real. Essa intenção está implícita no momento da gravação.
A obra gráfica de Morandi é realizada quase dois séculos mais tarde. Ele também usa a água-forte, que praticamente não mudou desde o tempo de Piranesi. Mas sua interpretação é diferente: estudos revelaram que, em cerca de 80% de suas gravuras, optou pela morsura plana, isto é, um único banho de ácido. Portanto, linhas impressas de um único valor tonal. Porém, o espaço morandiano não é mais o de Piranesi: é um espaço comprimido, onde não se tenta reproduzir o visível, mas sua vivência. Não há mais, como na perspectiva, uma sucessão infinita de planos num vazio virtual. É suficiente uma escala de meios-tons, sutilmente obtida pelo maior ou menor agrupamento de linhas com o mesmo valor tonal, para a construção plena da água-forte de Morandi.
Observando com cuidado a interpretação de um leitor sensível, podemos identificar os ecos das técnicas de gravação e perceber sua presença no significado que emana da obra. Nos dois textos seguintes, destaco as passagens que mostram com mais clareza o vínculo entre procedimento técnico e significado. O primeiro trecho é de Aldous Huxley, sobre a série dos Carceri de Piranesi:
“A fantasia dos Carceri de Piranesi é completamente diversa em qualidade da manifestada nos trabalhos de qualquer um de seus predecessores imediatos. Todas as pranchas da série são evidentemente variações sobre um único símbolo, que se refere a coisas existentes nas profundezas físicas e metafísicas da alma humana – acedia e confusão, pesadelo e angst, incompreensão e um desnorteamento pânico.
O fato mais inquietantemente óbvio de todos esses calabouços é a perfeita inutilidade que reina por toda parte. Sua arquitetura é colossal e magnificente. É-se levado a sentir que o gênio de grandes artistas e o trabalho de inumeráveis escravos entraram na criação desses monumentos, cada detalhe dos quais é completamente sem propósito. Sim, sem propósito: pois as escadas não levam a nenhum lugar, as abóbadas não suportam nada exceto seu próprio peso, e encerram vastos espaços que nunca são verdadeiramente aposentos, mas apenas antessalas, quartos de despejo, vestíbulos, anexos. E essa magnificência de pedra ciclópica é por toda parte tornada esquálida por degraus de madeira, frágeis passadiços e passarelas. E a esqualidez é apenas pela própria esqualidez, já que todos esses frágeis caminhos através do espaço são manifestamente sem finalidade[…] Piranesi: sempre consegue dar a impressão de que essa colossal inutilidade continua indefinidamente, e é coextensiva com o universo”.
Todos os textos sobre Piranesi destacam seus espaços monumentais e infinitos, extraindo deles a principal carga poética. Essa arquitetura não alcançaria tal capacidade sem seu processo peculiar de gravação. O mesmo vale para Morandi, como se pode notar neste trecho de Argan: “O que, para De Chirico, é outro espaço e, para Carrà, uma metamorfose geométrica, é para Morandi um espaço concreto, e mesmo saturado, resultando de uma equivalência entre nível e tensão, profundidade e densidade, entre a consciência do próprio ser e do ser do mundo integralmente vividos por igual, comunicando-se entre si, como que numa osmose contínua. Durante toda a sua vida, pinta as mesmas coisas: garrafas e recipientes vazios, poucas flores, poucas paisagens. São as paredes, o filtro da osmose: nelas, em torno delas, coagula-se e preenche-se, saturando-se de luz, o espaço que pertence à natureza e à consciência, e que não se apresenta como construção hipotética de uma espacialidade universal, e sim como espaço vivido, amalgamado ao tempo da existência. […] Ele chega a esta identidade essencial entre o eu e o mundo, a esta escolha do objeto em termos de mediação e aplainamento, por meio de um lento processo de seleção e redução de valores: é o que se vê nas águas-fortes, onde os calculados retículos gráficos geram com frequências várias uma luz que, a seguir, decantando-a, retêm em seu tecido”.
Uma realização técnica é também cultural, na medida em que permite manifestar no plano concreto o que existia apenas potencialmente, como ideia, teoria ou projeto, possibilitando então pensar coisas que não podiam ser pensadas. Quando o que existia no plano teórico adquire a possibilidade de se realizar praticamente, as consequências podem alterar o mundo. Basta pensar na imprensa, na fotografia, no cinema, na televisão, ou na máquina a vapor, na energia elétrica, na bomba atômica. A técnica nunca é um fator isolado, mas totalmente integrado – e poderosamente influente na rede de relações humanas.
Dizer que “a técnica” ou “a gravura” são isso ou aquilo significa apenas uma atitude comodista. Na práxis artística encontram-se tão amalgamadas ao pensamento que analisá-las isoladamente, desprezando contextos mutantes – econômicos, culturais, políticos, históricos e, principalmente, o papel decisivo do artista –, só pode produzir generalizações grosseiras, desviando a atenção dos valores realmente essenciais. Qualquer meio em si é apenas potencial, como um computador sem software. Só é possível arrancá-lo da inércia com um pensamento vivificador, fruto da experiência que, incorporando-se à matéria, transforme papel e tinta, feltro e gordura, em obra de arte.
*Marco Buti é professor titular do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da USP.
Publicado originalmente na Revista da USP, no. 29.