Por PHILIPPE SCERB*
A relação entre os mais pobres e a política da qual dependem é melancólica e desprovida de potência
De uns meses para cá, quem caminha pelo Minhocão, em São Paulo, não vê apenas fachadas desgastadas de prédios antigos e jovens descolados que passeiam, correm e pedalam nos fins de semana em que o elevado vira parque e fecha o acesso a automóveis. Muitas vezes ao lado de pichações e grafites que tão bem expressam um processo de gentrificação que convive em harmonia com a pobreza e a degradação, saltam à vista mensagens críticas a Jair Messias Bolsonaro e ao seu governo.
Em um domingo do início de fevereiro, notei uma delas pela primeira vez. Em um pano roxo, pendurado no parapeito de uma janela na altura da estação Santa Cecília, lia-se: “Quantas mortes faltam para o impeachment?”. Naquele momento, não pude deixar de lembrar de uma passagem de um livro que acabara de ler.
Nas últimas páginas de “Quem matou meu pai”, o escritor francês Edouard Louis descreve um episódio de sua infância em que sua família faz uma breve viagem à praia para comemorar uma medida do governo que aumentava em cem euros o benefício que pais de alunos recebem anualmente para financiar os custos ligados à volta às aulas.
Segundo Louis, que depois do ensino médio deixou a decadente cidade industrial em que morava no norte da França para estudar em uma prestigiosa faculdade parisiense, aquela lembrança guardada com tanto carinho reflete uma diferença fundamental na relação entre os mais pobres e os mais abastados com a política. Para os primeiros, a política é uma questão de vida ou de morte – e seu livro faz questão de deixar isso claro ao descrever os efeitos nocivos de algumas medidas governamentais sobre a saúde mental e física de seu pai. Já os dominantes nunca vão à praia para festejar uma decisão política. Eles podem reclamar de governos de direita ou de esquerda, mas a política não afeta sua saúde, não muda suas vidas – ou muito pouco. Para a maioria deles, diz Louis, “a política é uma questão estética: uma maneira de pensar, uma maneira de ver o mundo. Para nós, é viver ou morrer”.
Não parece exagerado dizer que poucas vezes esse foço foi tão profundo quanto é hoje. Por um lado, a política deixou de ser um assunto modorrento, desinteressante, secundário para se tornar um dos principais critérios para a definição da identidade de parte das classes média e média alta. Praticamente tudo é politizado, das preferências alimentares à audiência do Big Brother Brasil, pois o pertencimento a determinados grupos sociais passa agora pelo compartilhamento de uma visão de mundo em boa medida permeada por valores de ordem moral. Daí a necessidade, por exemplo, de respeitar orientações rígidas no que diz respeito à linguagem e ao comportamento.
Mas se a política ocupa hoje um lugar central na vida daqueles movidos, nessa relação, por imperativos estéticos e culturais, ela tem recebido pouca atenção daqueles cuja sobrevivência depende de seus rumos. Embora leis e medidas governamentais signifiquem a vida ou a morte dos mais pobres, seu desinteresse genuíno tende a contrastar com o engajamento virtuoso e por vezes histérico dos primeiros. E os motivos não são de impossível compreensão.
Durante um bom tempo, o sentimento que prevaleceu em relação à política foi a indiferença. Depois de décadas marcadas por forte conflito entre ideologias e projetos de sociedade antagônicos, os anos 80 trouxeram, ao mesmo tempo, o esfacelamento do mundo comunista e a sujeição de partidos progressistas à agenda neoliberal. O novo consenso extinguiu as distinções mais visíveis entre as forças em competição pelo poder político e retirou dela a relevância de outrora. A alternância entre governos de direita e esquerda, ao fim e ao cabo, resultava em mudanças incrementais e não mais justificava um interesse acentuado por uma política que, se já não expandia as possibilidades de vida dos trabalhadores, não as restringia drasticamente.
Com os desdobramentos da crise financeira de 2008, porém, a apatia deu lugar à indignação e a um desejo difuso de transformação em um ambiente de deterioração acelerada das condições presentes e das expectativas futuras. À medida que o sistema democrático se mostrava impermeável aos interesses e ao controle das maiorias e as forças políticas tradicionais não indicavam nenhum compromisso com a mudança, boa parte da população recorreu àquilo que, aos seus olhos, apareceu como a transformação mais radical que poderia encontrar. É nesse contexto que, tanto no centro como na periferia do capitalismo e depois de um ciclo significativo de protestos, lideranças e partidos de extrema direita ascenderam como única alternativa real a uma ordem que se esgotava.
Em vários países, eles chegaram, inclusive, a alcançar os principais espaços de poder. O que inaugurou um novo período no que concerne à relação dos cidadãos com a política. Parte daqueles que não dependem dela para sobreviver passou a ver na crítica contundente aos novos e lamentáveis governantes o melhor meio para reforçar a grandeza de sua identidade e de seus valores. Manifestações de reprovação nas mais diversas redes sociais, nas conversas com conhecidos e nas janelas, com faixas ou panelaços, cumprem bem essa função.
Mas entre aqueles para quem, nas palavras de Louis, a política é uma questão de viver ou morrer, o atual momento é menos de revolta e engajamento e mais de resignação. É como se a mudança que se mostrara possível se revelasse inócua para a ampliação das suas possibilidades de vida. É claro que nem todos eles apoiaram e votaram em lideranças como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Boa parte, inclusive, desaprova seus governos. No entanto, a grande maioria reconheceu neles a única renovação disponível, para o bem e para o mal, frente a um sistema dominado por elites homogêneas e a uma ordem insensível às suas demandas imediatas e incapaz de atender às suas expectativas de mais longo prazo.
Além dos seus efeitos material e simbolicamente regressivos, portanto, o populismo de direita ainda tem esvaziado qualquer esperança de alternativa política à combinação vigente entre um neoliberalismo a cada dia mais agressivo e uma democracia liberal a cada dia menos afeita ao controle e à participação popular. Pois a mudança que esses governantes prometem e, de maneira mais ou menos retórica têm entregado, não melhora em nada a realidade e as perspectivas dos subalternos.
A relação entre os mais pobres e a política da qual dependem se torna, assim, melancólica e desprovida de potência. Afinal, se seu cotidiano é marcado por uma luta dura e, via de regra, individual contra a degradação de suas condições objetivas e pela mais elementar sobrevivência, a política tem se mostrado um instrumento com o qual não podem contar para alterar essa realidade. E que sequer merece seu interesse e sua limitada energia.
A reação tímida da maioria dos governados em relação aos abusos do governo Bolsonaro é o sintoma mais claro desse problema. Mesmo frente a uma administração que não se priva de flertar abertamente com a morte e a restrição acentuada das possibilidades de vida, a resistência e a mobilização popular carecem da confiança, imprescindível, de que as coisas poderiam ser diferentes.
Não se pode esperar nada de uma direita dita democrática na medida que sua força social advém de uma burguesia disposta a abrir mão do poder político para acomodar seus interesses econômicos a regimes antidemocráticos.
O que chama a atenção é a incapacidade que tem demonstrado o campo progressista de fazer as pessoas, principalmente aquelas cuja vida depende da política, acreditarem na viabilidade de outro tipo de sociedade. Espremida entre fragmentadas bandeiras culturais, a esquerda apoia sua precária relação com as massas em lembranças distantes de tempos melhores e na defesa muitas vezes conservadora de determinadas normas e corporações.
Talvez nunca tenha sido tão urgente uma política capaz de fazer sonhar. E essa defesa não carrega consigo traços idealistas. Pelo contrário, é eminentemente pragmática. Trata-se de dar sinais claros e concretos para os setores sociais cuja relação com a política é uma questão de vida ou de morte de que, por meio dela, o futuro pode ser melhor do que o presente. Provavelmente, isso tirará da política o glamour que tem hoje, mas esse é outro problema.
*Philippe Scerb é doutorando em Ciência Política pela USP.