Por DANIEL BRAZIL*
Comentário sobre o romance recém-lançado de Henriette Effenberger
Um rápido passeio pelo cenário da literatura brasileira contemporânea vai revelar um fenômeno típico do século XXI: a multiplicidade de estilos e de formas, enterrando de vez o conceito do século anterior de “correntes” ou “movimentos”. O mesmo ocorre nas artes plásticas ou na música, mas é sempre bom salientar que sintomas já surgiam em meados do século anterior.
A literatura de ficção, especialmente, é cada vez mais contaminada por uma urgência narrativa, fruto da adaptação às novas mídias. Os microcontos, as crônicas de caráter impressionista, a escrita célere e quase sempre superficial, são marcas de uma época em que as formas de comunicação parecem cada vez mais trocar a profundidade elaborada pelo alcance logarítmico de um público virtual.
Algumas obras ficarão, sem dúvida. No mínimo, como retrato de época. A maioria será esquecida, e é bem possível que boa parte dos escrevinhadores não tenham o menor interesse em serem lidos daqui a cinquenta anos, como almejavam os literatos de antanho. Alguns, na verdade, nem querem que seus escritos sejam lidos daqui a quinze dias, pois já estarão velhos. “Escrevo hoje para ser lido hoje, amanhã falarei de outro assunto”, parece ser uma das máximas adotadas pelos “pós-tudo” da www.
Por tudo isso, é sempre uma boa surpresa quando encontramos autores que conseguem costurar enredos mais elaborados com linguagem ágil e direta, logrando bom resultado. Henriette Effenberger faz parte desse seleto grupo. Seu romance Quase nada de azul sobre os olhos constitui um belo exemplo de escrita que se despe de todos os maneirismos da “velha” literatura, como descrição de cenários ou psicologismos (embora até haja um psiquiatra na trama), e investe em diálogos e ações, reduzindo ao mínimo a descrição de situações e locais.
No primeiro capítulo, uma personagem ainda sem nome tranca a casa, joga a chave fora e embarca para a Europa. Os capítulos seguintes introduzem um elenco onde todos são protagonistas em alguns momentos e coadjuvantes no conjunto da narrativa. A trama interliga todos, com nuances inesperadas. A mocinha pode ser cruel, o marido infalível pode ser descartado, o inútil pode ser um elemento motivador, a mulher forte pode ser um fiasco emocional. A complexidade humana se instaura em poucas linhas, e os conflitos nunca emergem de forma gratuita.
São magistrais os capítulos onde, só através de diálogos, se estabelece a relação entre uma filha cuidadora e o pai com Alzheimer. A princípio podem parecer excessivos, até angustiantes, mas se revelam fundamentais para o desenlace da trama. A autora cria um clima de suspense progressivo, que vai desembocar num final surpreendente.
Final surpreendente? Isso não é coisa do século XIX? A maestria de Henriette Effenberger está justamente em filtrar e incorporar de forma equilibrada os grandes trunfos da literatura clássica, moderna e contemporânea: uma boa história, um desenvolvimento arguto e não-linear, e uma linguagem concisa e coloquial, que incorpora as imperfeições da fala sem prejuízo do conteúdo.
Contista premiada, autora de literatura infantil, a escritora é geralmente apresentada como “feminista”, participante do Coletivo Mulherio das Letras. Independente da carga simbólica do adjetivo, Henriette desnuda de forma democrática homens e mulheres em sua escrita, apontando suas limitações e mesquinharias, seus ódios e paixões, mas deixando também entrever momentos de coragem e resistência. Não é fácil, não é raso, e não é pouco.
*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.
Referência
Henriette Effenberger. Quase nada de azul sobre os olhos. São Paulo, Alcaçuz/ Telucazu, 2021, 162 págs.