Quem tirou o fascismo da coleira?

Leon Gol, Cão, 2004
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Por FRANCISCO FERNANDES LADEIRA*

Não é por acaso que, após períodos de crises econômicas mais agudas, a extrema direita registra um vertiginoso crescimento

Bertolt Brecht – dramaturgo, poeta e encenador alemão do século passado – no epílogo de sua peça A resistível ascensão de Arturo Ui trouxe a seguinte reflexão: “A cadela do fascismo está sempre no cio”. Isso significa que, certas ideias obscurantistas, ligadas à extrema direita, por mais que possam estar adormecidas numa determinada época, jamais serão eliminadas por completo, pois sempre haverá condições para que o fascismo se reproduza nos diferentes tipos de organização humana.

De acordo com o pensamento marxista, o fascismo pode ser entendido como uma alternativa a qual a classe dominante recorre quando a chamada “democracia burguesa” não dá mais conta de manter os lucros do grande capital. Afinal de contas, o jogo não pode parar! Desse modo, não é por acaso que, após períodos de crises econômicas mais agudas, a extrema direita registra um vertiginoso crescimento.

Infelizmente, no atual momento da história do Brasil, a “cadela do fascismo” não apenas está no cio, como também se sente à vontade para reproduzir seus discursos de ódio e “morder” todos aqueles a quem considera seus “inimigos”. Diante disso, é importante refletirmos sobre “quem”, “quando” e o “porquê” de o fascismo ter sido retirado da coleira por aqui, haja vista que, conforme Bertolt Brecht, trata-se de uma cadela que “está sempre no cio”; porém, são necessárias determinadas condições para que ela possa se manifestar.

Nesse sentido, não há como abordar a atual onda fascista no Brasil sem mencionar o antipetismo e, principalmente, as “Jornadas de junho de 2013” (mais precisamente a apropriação desses movimentos por parte dos setores conservadores da sociedade, o que contou com a participação decisiva da mídia hegemônica).

Conforme é do conhecimento de todos, as Jornadas de junho de 2013 começaram como legítimos movimentos populares, contrários ao aumento das tarifas de transporte público (entre outras demandas ligadas às questões urbanas), mas que, paulatinamente, foram capturados pela direita tradicional (sobretudo por meio dos discursos midiáticos) e passaram a adotar pautas do pensamento conservador, como o moralista e hipócrita combate a corrupção (só a estatal, não a do mercado), o fim dos partidos políticos, a redução da maioridade penal e o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff.

Como bem explicou Jessé Souza, em seu livro A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado, a mídia brasileira, notadamente o Jornal Nacional, se aproveitou da grande mobilização popular que ocorria em todo o Brasil em junho de 2013 para “federalizar” as manifestações que, até então, estavam centradas em questões municipais. Assim, estes movimentos, que anteriormente reivindicavam demandas históricas do povo brasileiro, se transformaram em grandes atos contra o governo de Dilma Rousseff.

Para engrossar essas mobilizações antipetistas, a cadela do fascismo, “sempre no cio”, foi convocada. Consequentemente, todo tipo de obscurantismo pôde, enfim, sair do armário. Viúvas da ditadura não mais se intimidavam em sair às ruas para pedir golpe militar. Discursos de ódio ao pobre se tornaram cada vez mais comuns nas redes sociais. Racistas, homofóbicos e misóginos se sentiram à vontade para reverberar suas ideias preconceituosos. Enfim, a parte mais obscura da personalidade humana, designada por Jung como “sombra”, chegou à superfície. Lembrando um dos slogans das Jornadas de junho: o “gigante acordou”, mas ele era autoritário, excludente, homofóbico, machista, racista e moralista. Melhor seria se continuasse dormindo!

Enquanto isso – seja por ingenuidade política ou mero oportunismo eleitoreiro (por acreditar que ocuparia o lugar do PT como principal organização do campo progressista) – boa parte da esquerda fez coro com o antipetismo propagado pela direita e não denunciou os perigos que já se anunciavam nessa guinada autoritária da sociedade brasileira (com mais um golpe de Estado no horizonte). Indiretamente, a partir de Cavalos de Troia como o movimento “Não vai ter Copa”, essa esquerda contribuiu para a atual ascensão do fascismo no Brasil.

Sem dúvida, o político que mais angariou dividendos com o antipetismo, com junho de 2013 e o posterior Golpe de 2016 foi Jair Bolsonaro (até então um parlamentar do baixo clero, mais conhecido por suas polêmicas aparições em programas televisivos popularescos, onde, de forma caricata, propagava suas ideias extremistas). No entanto, não se tratou de algo planejado. O objetivo da empreitada contra o PT era a volta da direita tradicional ao poder (PSDB, por exemplo). Com bem sintetizou o ex-presidente Lula: “Plantaram Aécio e colheram Bolsonaro, o subproduto do ódio contra o PT”.

Solta para “morder” a esquerda, a cadela do fascismo não quer voltar para a coleira; tampouco ser coadjuvante na cena política nacional. Seu objetivo é ditar os rumos da nação. Diante disso, aqueles mesmos indivíduos que ajudaram a libertar a cadela do fascismo, hoje fingem não ter nada a ver com isso. Mas, lembrando uma expressão popular, é preciso “dar nome aos bois”. A imprensa hegemônica (porta-voz da “direita tradicional”), em seus noticiários, busca demonstrar uma falsa indignação contra as falas misóginas de Jair Bolsonaro; mas, se preciso for, o apoiará em um possível segundo turno contra o PT (assim como fez em 2018). A esquerda antipetista, para não admitir a atuação como massa de manobra das forças conservadoras, reverbera a falaciosa hipótese de que as Jornadas de junho de 2013 não foram responsáveis pela recente ascensão fascista no Brasil.

Fato é que, mesmo Jair Bolsonaro sendo derrotado nas eleições, o bolsonarismo continuará como um espectro obscurantista que assombra a sociedade brasileira; seja compartilhando fake news em grupos de whatsApp, na intolerância a religiões de matriz africana, se recusando a dar comida a eleitores petistas, apontando armas para adversários ou eliminando quem pensa diferente. Infelizmente, a caixa de Pandora fascista está entre nós. Abri-la foi fácil; fechá-la, em contrapartida, é muito mais complexo.

*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em geografia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de A ideologia dos noticiários internacionais (CRV).

 

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