Por DANIEL BRAZIL*
O que poderia ser uma bela homenagem a um importante compositor brasileiro acaba sendo mais água jogada no moinho dos equívocos
Um artista nem sempre é dono de sua obra. Não no sentido glorioso de cair em domínio público ou virar patrimônio da humanidade, categorias nobres que costumam ocorrer após a morte, mas no mesquinho e cruel destino de não ser reconhecido como verdadeiro autor.
É razoavelmente divulgado, no Brasil, o caso do poeta Eduardo Alves da Costa, que teve a (in)felicidade de batizar um de seus poemas como No Caminho com Maiakovski. O estudante de Direito do Mackenzie, nos anos 1960, que organizou saraus poéticos no Teatro de Arena, é autor de alguns dos mais citados, reproduzidos, copiados, estampados, impressos e recitados versos de revolta contra a ditadura, contra todas as ditaduras:
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada. (…)
Citar Maiakovski no título fez com que muita gente acreditasse que os versos fossem do poeta russo. Até o psicanalista Roberto Freire reproduziu os versos em um de seus livros, citando Alves da Costa como tradutor.
Também comum – sabe-se lá a origem da lenda! – é creditar a autoria dos versos a Bertolt Brecht. Talvez pela ligação do verdadeiro autor com o teatro e, por tabela, pela forte influência que o Arena absorveu da estética brechtiana em espetáculos como Arena conta Zumbi.
Na música popular há vários casos similares. É comum atribuir ao intérprete a autoria de uma canção, principalmente se ele for compositor. Uma pequena obra-prima de Geraldo Pereira, Sem compromisso, gravada por vários intérpretes até os anos 1970, teve seu autor apagado depois de ser cantada por Chico Buarque. Não por culpa do ilustre filho de Sérgio Buarque de Hollanda, que colocou os créditos corretos no disco, mas por culpa de uma legião de fãs que não lê créditos em capa de disco (Sinal Fechado, 1974).
Essa espécie de analfabetismo funcional se multiplicou com o advento da internet. Quem frequenta as redes sociais é atropelado por dezenas de poemas piegas e frases com a profundidade de um pires atribuídos a Gabriel Garcia Marquez, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Einstein, Freud e um vasto etc.
Voltando à música popular, outro grande equívoco envolve dois sambistas ilustres, Cartola e Candeia. O mangueirense gravou em 1976, em seu segundo LP solo, o samba existencial do portelense. Foram dez canções de Cartola, e duas exceções: “Preciso me encontrar”, de Candeia, e “Senhora tentação”, de Silas de Oliveira, orgulho e glória do Império Serrano.
O disco é um desfile exuberante de canções antológicas, como O mundo é um moinho, Cordas de aço e As rosas não falam. O melancólico samba de Candeia é embalado por um surpreendente arranjo, onde se destaca o fagote de Airton Barbosa, então integrante do quinteto Villa-Lobos. Entre tantas obras-primas de Cartola, acabou tendo a autoria trocada, embora corretamente creditado. (Aliás, também costumam atribuir erroneamente o solo de fagote a Noel Devos, professor de Airton Barbosa).
Mais de uma década depois, o dolente samba ganhou uma interpretação magnética de Marisa Monte, e virou sucesso nacional. Novamente, o crédito está certinho lá na contracapa do disco de estreia da cantora, de 1989. Uma portelense como MM, filha de um diretor da Portela, não ia marcar bobeira.
O equívoco, porém, se perpetua. Estreia nos cinemas em 2022 mais uma produção brasileira, Me tira da mira, uma comédia com trama policial estrelada por Cleo Pires. Na abertura, “Preciso me encontrar” é ouvida na voz rascante de Elza Soares, em magnífica interpretação. Seria ótimo, se o material de divulgação do filme e as entrevistas da produtora não creditassem a canção a… Cartola!
O que poderia ser uma bela homenagem a um importante compositor brasileiro acaba sendo mais água jogada no moinho dos equívocos.
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir, pra não chorar…
*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.