Por MÁRIO MAESTRI
É uma violência analítica propor a Rússia como nação imperialista, assim como defini-la como nação agressora da independência nacional ucraniana
A sorte do mundo do trabalho e da civilização nas próximas décadas pode depender da solução e dos desdobramentos do confronto militar que a Rússia enfrenta com o imperialismo estadunidense e europeu no território ucraniano. Registrando a sua enorme confusão e debilidade, boa parte da esquerda que se reivindica do marxismo revolucionário divide-se em torno dessa questão fulcral, assumindo posições no frigir dos ovos pró-Otan e pró-imperialista.
Não nos referimos às organizações há décadas alinhadas às operações militares imperialistas, como a LIT-QI, que, nos anos 1979-89, festejaram a derrota da Revolução Afegã e aplaudiram os mujahidins da contra-revolução; em 1989-1991, saudaram a explosão da URSS, a “unificação alemã” e a restauração capitalista nas nações do “socialismo real”. Apoiaram a destruição da Iugoslávia e o ataque à Servia, em 1999; as agressões ao Iraque, ao Afeganistão, a Cuba, à Síria, à Líbia e por aí vai. Sustentaram os golpes de 2013, no Egito; de 2014, na Ucrânia; de 2016, no Brasil. Sempre propondo apoiar revoluções populares jamais vistas e ouvidas, antes e após os sucessos.
Pela vitória da Otan
Agora, com outras organizações que se reivindicam marxistas revolucionárias, a LIT-QI exige o rompimento das relações diplomáticas e mais duras retorsões econômicas à Rússia; o envio de armas pesadas e o estabelecimento de “no fly zone” sobre a Ucrânia. Milita ativamente pela derrota da Rússia e a vitória da Otan e do imperialismo estadunidense. Repete como papagaio a narrativa e as fake news da Otan sobre os sucessos na Ucrânia.
No relativo à essa organização, trata-se de uma colaboração com o imperialismo que já dura há quase meio século, sobre questões candentes da luta de classes. Ela não pode ser imputada a “erros” ou “desvios” de análise política, no seio de uma ação revolucionária e anticapitalista. É expressão indiscutível de opções por políticas e orientações contra-revolucionárias.
Em um sentido contrário, organizações marxistas revolucionárias têm resistido à pressão das classes médias e do grande capital, avançando o princípio da defesa incondicional de nação oprimida contra o país imperialista agressor, independentemente da natureza de seu governo e da direção política da nação oprimida. Política largamente defendida por Lênin e León Trotsky, quando se referiram a sucessos internacionais semelhantes.
Essa trincheira político-ideológica vem, entretanto, em alguns casos, fraquejando, sob a pressão exercida pelo imperialismo ianque e seus súcubos, com o monopólio da narrativa dos sucessos em curso. No debate entre as organizações que se reivindicam do marxismo, o principal ariete, que golpeia a muralha dessa política correta sobre os presentes fatos, tem sido a definição da Rússia como nação imperialista e agressora e a Ucrânia como nação agredida.
Nação agredida
É uma violência analítica propor a Rússia como nação imperialista, ainda mais ao lado dos USA e da China. Assim como defini-la como nação agressora da independência nacional ucraniana. No presente, a Rússia não é, definitivamente, nação imperialista e luta, ao contrário, há anos, por sua independência e sobrevivência nacionais. O monopólio midiático do imperialismo obscurece a compreensão dessa realidade. Marx lembrava que, se a “aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária”. Temos portanto que ultrapassar a visão do senso comum.
A conquista territorial demarcou o imperialismo desde a Antiguidade. No sentido leninista e contemporâneo do termo, uma nação é imperialista quando sua acumulação e reprodução do capital é dominada pela exportação de capitais ou de complexos industriais, de serviços, etc. monopólicos, sob o domínio do capital financeiro. A nação imperialista moderna despreocupa-se com a expansão territorial. A Suíça é uma nação imperialista e jamais invadiu outro país. O Japão, também imperialista, não o faz, desde sua derrota em 1945.
Na América Latina, percebe-se facilmente o sentido da ação do moderno imperialismo, através do novo ativismo do grande capital financeiro chinês. No Brasil, nos últimos anos, parte substancial da distribuição de energia, minérios, petróleo, empresas de aplicativos, sistemas de diversão, etc. encontram-se em mãos chinesas. Anteriormente, apenas os EU, a Alemanha, a França, a Itália, o Japão, etc. se dividiam o saque sistemático dessa nação sul-americana. O mesmo pode ser dito para a Argentina, Peru, Equador, Colômbia, etc.
Não é imperialista
Na América Latina, não encontramos montadoras, mineradoras, portos, aeroportos, redes de comunicação, bancos, etc. controlados pelo grande capital russo. Ao contrário, foi a terra de Vladimir Putin que foi invadida pelas grandes marcas alemãs, francesas, holandesas, suíças, etc. – a lista é enorme. Entre elas estão a BASF, BP, Coca-Cola HBC, Danone, Engie, Equinor, Nestlé, Renault, Shell.
O fundamental dos ingressos russos chegados do exterior deve-se às exportações de bens primários e mercadorias. As exportações de capitais têm um peso relativo baixo, em relação às vendas de petróleo, gás, carvão, ouro, produtos químicos, grãos, carne de frango, etc. O investimentos de capitais russos no exterior (IED) apoiam sobretudo as atividades primárias nacionais – Lukoil, Gazprom, Mechel, Severstal Group Holdings, etc. Uma estrutura de exportação de um país semi-colonial, ainda que rico, à exceção dos itens tecnológicos herdados da era soviética – indústria armamentista e aeroespacial, sobretudo.
Em 2021, o PIB da Rússia foi inferior ao da Alemanha, cinco vezes menor do que o dos USA e seis vezes inferior ao da China. Ele é menor do que os PIB da Califórnia e do Texas somados, tendo a Rússia o dobro da população daqueles dois estados. O PIB russo é praticamente o mesmo do Brasil. É um abuso analítico propor a Rússia como nação imperialista, ao lado da China, dos USA, do Japão, da Alemanha, etc., exportadores de capitais e de empresas tecnológicas.
Brasil imperialista!
A fragilidade relativa da economia russa não impede que seus conglomerados, públicos e privados, disputem as beiradas dos mercados internacionais, apoiados pelo Estado, sobretudo em repúblicas da ex-URSS, na Ásia e na África. A orientação tendencial da Rússia é transformar-se em uma nação imperialista. E, contra isso, se mobilizam os USA e suas nações vassalas. Entretanto, hoje, definitivamente ainda não o é.
Sobretudo após 1967, quando da ditadura militar (1964-1985), o Brasil ensaiou exteriorização do capital nacional monopólico, apoiado pelo Estado, no relativo à indústria bélica, aos serviços, aos financiamentos, etc., através da América-Latina, África e Ásia. Prognósticos apressados definiram o Brasil como nação semi-imperialista e mesmo imperialista. Hoje, sob o tacão estadunidense, é um país em processo de regressão “neo-colonial globalizada”, exportador de energia, de minérios, de carne, de grãos, e com suas empresas monopólicas destruídas e internacionalizadas e uma indústria de baixa tecnologia.
É um velho programa do capital imperialista europeu transformar o oriente da Eurásia em territórios coloniais. O projeto do grande capital alemão de domínio das terras férteis e das reservas de matérias-primas sem fim da Ucrânia, da Rússia, etc. foi abraçado pelo nazismo, sob a narrativa racial do “espaço vital”. Não foi uma invenção nacional-socialista. A URSS perdeu 20 milhões de habitantes para enfrentar a barbárie alemã e livrar a Europa de seu domínio.
Às portas do paraíso
A URSS constituía uma grande muralha contra a expansão colonial-imperialista europeia. Em 1991, sua destruição, seguida pela Era Yeltin (1991-1999), materializou a possibilidade de consecução daquele programa. A Rússia tornou-se, então, o pátio traseiro do clube imperialista USA, que jamais perdoou Putin pela rápida recuperação capitalista relativa do país. Apoiado sobretudo na exportação de energia, aquele movimento retirou a Rússia da situação de semi-colônia do grande capital mundial, apesar de seguir fortemente determinada por ele.
A Rússia lutou por sua autonomia nacional e por uma integração harmônica, mesmo subordinada, na divisão internacional capitalista do trabalho. O que lhe foi negado. Na chefia do Estado, Putin chegou a propor o ingresso do país na Otan! Diante da negativa de uma parceria, mesmo subordinada, a resistência do Estado e da nação russa fechou suas portas ao neocolonialismo ianque e ocidental extremado. Piorando tudo, mais a oriente, nascia o Dragão Chinês, não só se negando a sofrer a mesma rapinagem semi-colonial, como disputando a hegemonia imperialista mundial. E o direito de participar da rapinagem do mundo.
O programa de desorganização-saqueio dos Estados russos e chineses não constitui opção malévola e aleatória do grande capital internacional. Ele não o faz por ser malvado. É a única possibilidade de garantir a retomada de uma longa expansão do capitalismo, em sua fase senil, sob o domínio pleno da ditadura estadunidense, em um cenário mundial de violência extrema e com o mundo do trabalho reduzido à semi-escravidão capitalista. Não há espaço para convivência pacífica entre o imperialismo estadunidense em regressão, o chinês em expansão e nações autônomas. Hoje, um mundo pluri-polarizado é uma ilusão.
Fome pantagruélica
A atual campanha militar do grande capital ocidental contra a Rússia é continuação da ofensiva que contribuiu à dissolução da URSS, em 1991. Foi um sonho dos burocratas moscovitas que dirigiram o fim do socialismo que a Rússia capitalista se sentaria à direita do deus-pai do capital. A ofensiva imperialista não era apenas anti-socialista. Era, ao mesmo tempo, um ataque neo-colonial à Rússia, como nação a ser subjugada, e uma ofensiva, lançada contra ela, enquanto o “ventre mole” da aliança sino-russa.
Mesmo com a dissolução da URSS, o assédio contra a Rússia jamais se interrompeu. Violando as promessas dos anos 199l, de não aproximar-se das fronteiras russas, a Otan absorveu faminta os países-satélites da antiga URSS e, logo, suas ex-repúblicas desgarradas. Em 1999, foi a República Tcheca e a Hungria; em 2004, a Bulgária, a Estônia, a Lituânia, a Letônia, a Romênia, a Eslováquia e a Eslovênia; em 2009, a Albânia e a Croácia; em 2017, Montenegro e em 2020, a Macedônia do Norte.
Estabelecia-se um anel de fogo em torno das fronteiras da Rússia, que já não era uma ameaça socialista. Era, agora, apenas região a ser dominada pelo grande capital internacional. Onde foi possível, os USA e a Otan promoveram o separatismo, tentando radicalizar o desmembramento territorial e populacional conhecido pela Rússia, quando da explosão da URSS – Chechenia, Georgia, etc. Assediaram-se as ex-repúblicas soviéticas. Promoveram-se “revoluções coloridas”, anti-russas e pró-ocidentais.
Apenas após o fim da Era Yeltsin [1991-1999], foram promovidas, entre outras, “revoluções coloridas” na Iugoslávia, na Georgia, na Ucrânia, no Quirguistão, na Síria, no Iêmen e por aí vai. O salto de qualidade deu-se, em 2014, quando do golpe de Estado na Ucrânia e a entronização de um governo títere filo-ocidental e russofóbico, de viés fascista. Foram perseguidos, assediados, massacrados a população ucranianas de raízes russas r partidos e movimentos que se opuseram à nova ordem.
De costas para o Muro
A pantomina burlesca e sangrenta da praça Euromaidan foi o mais duro golpe lançado contra a Rússia, após 1991. Com a nova ordem, muito logo, as tropas da Otan se estabeleceriam ao longo dos quase dois mil quilômetros de fronteira entre os dois países. O que exigiria um aumento insuportável dos gastos de defesa da Rússia e a tornaria indefensável, no caso do estacionamento fronteiriço de mísseis atômicos táticos. Em 1961, o veto estadunidense à colocação daquelas armas em Cuba colocou o mundo à beira de um conflito atômico.
A resposta russa veio em dois movimentos. Primeiro. A recuperação da Crimeia, que fora anexada à Ucrânia, em 1954, por ato administrativo sem maiores consequências, quando a península, a Ucrânia e a Rússia faziam parte da URSS. O retorno à Rússia jamais conheceu manifestação popular em contrário. Segundo. O apoio russo à revolta das repúblicas populares no Donbas, em parte dos territórios administrativos das províncias de Donetsk e Lugansk. Entretanto, ao contrário da Crimeia, o governo russo não reconheceu as novas repúblicas, deixando em aberto seu retorno à Ucrânia, sob ordem federativa e um estatuto especial.
O Estado russo exigia, também, a não adesão de Kiev à Otan. Sem qualquer compromisso com a própria nação, os governos títeres ucranianos seguiram atacando as repúblicas de Donbas e desrespeitando os acordos de Minsk, de setembro de 2014 e de fevereiro de 2015. Deixando clara sua submissão ao imperialismo estadunidense, introduziu-se na Constituição ucraniana o necessário ingresso na Otan. A situação de conflito de baixa intensidade em Donbas impedia a associação formal da Ucrânia à Otan, que foi porém avançada informalmente, em forma acelerada. Acredita-se que cem oficiais e conselheiros da Otan encontram-se cercados nos subterrâneos da siderúrgica de Azovstal, na cidade de Mariupol.
Em defesa da autonomia
Após 2014, os USA e a Otan promoveram um permanente atenazar à Rússia, através de uma incessante campanha russo-fóbica, não raro sob as acusações mais inverossímeis, entre elas: a “tentativa de envenenamento” e, a seguir, as “condições de aprisionamento” de Alexei Navalny, político russo pró-ocidental; os “ataques cibernéticos” contra satélites, partidos políticos, industrias estadunidenses e a distribuição de energia na Alemanha; a “intervenção” nas eleições estadunidenses; a “espionagem” generalizada dos diplomatas russos. Óperas bufas que receberam o apoio permanente dos partidos Democrata e Republicano estadunidenses.
Essas e tantas outras acusações, sem qualquer comprovação material, foram acompanhadas de importantes sanções contra o Estado, a economia e a população russa, pelos USA e a União Européia. Destacou-se nessa ofensiva a campanha contra a conclusão do oleoduto Nord Stream 2 e a exigência de que os países da Otan elevassem os orçamentos militares a 2% de seus PIB. O que lançaria a Rússia na corrida armamentista que devastou a economia da URSS.
Organizava-se, nos fatos, a ofensiva militar contra a Rússia. Para tal, foram ensaiadas as primeiras provocações diretas: maior número de aviões militares, de tropas e de manobras da Otan nas fronteiras russas. Em 23 de junho de 2021, deu-se um passo adiante. O destróier inglês HMS Defender invadiu as águas territoriais da Rússia, ao longo da costa da Crimeia, sendo expulso pela defesa aérea e naval daquele país. A ofensiva econômica, política, de intoxicação da opinião pública foi sustentada, apenas em maior ou menor grau, por praticamente todos os governos e partidos políticos europeus.
Sem oposição
Em inícios de 2021, o Partido Democrático italiano, ex-Partido Comunista, ingressou no governo propondo-se como radicalmente atlantista — pró-ianque. Em muitos casos, a direita nacionalista e xenofóbica europeia é a menos infensa à russofobia. Anti-globalização, ela defende, aberta ou veladamente, a saída da União Européia, o fim da Otan, a reindustrialização nacional. A ordem cesarista, anti-socialista, pró-capitalista do atual governo russo exerce igualmente atração sobre a direita europeia e alguns políticos no governo, como na Hungria. Muitos dos partidos da direita nacionalista contam com o apoio da classe trabalhadora tradicional, que abandonou, há décadas, os partidos de esquerda globalistas e social-liberais.
Há anos, a Rússia se preparou, como pôde, para ataque que sabia inevitável. Vendeu seus títulos da dívida estadunidense, deu-se uma rede internet nacional, formou reservas bilionárias em ouro, modernizou as forças militares. Diminuiu a dívida externa. Construi sistema alternativo ao SWIFT, ainda de pequeno alcance. Uma maior proximidade com a China garantiu-lhe uma retaguarda econômica e permitiu deslocar suas tropas militares das fronteiras orientais para as ocidentais.
Em fins de 2021, vendo avançar a aliança de fato da Otan com a Ucrânia, cada vez mais de costas contra o muro, o governo russo tentou abrir negociações com os Estados Unidos, centro de decisão da Otan. Exigindo, apenas, as garantias prometidas ao país, em 1991, com destaque para a neutralidade ucraniana e retirada da Otan para longe de suas fronteiras.
Tudo que os EUA queriam
Tratava-se do confronto perseguido pela administração sobretudo democrata estadunidense, que, em 2016, planejara travá-lo, contra a Rússia, também indiretamente, em associação com a Otan, na Síria. Projeto interrompido pela vitória de Donald Trump, que permitiu a consolidação do regime sírio. Ao rejeitar todas as exigências essenciais da Rússia, os USA não lhe deixou outra saída do que a invasão da Ucrânia, o eixo central da discussão e o coração da crescente ameaça.
Os Estados Unidos alcançaram, até agora, todos os objetivos buscados com o atual conflito. Com destaque para o rompimento relativo das relações diplomáticas e econômicas da União Européia com a Rússia, sobretudo no relativo à Alemanha. A guerra permitiu pôr fim, ao menos temporariamente, ao funcionamento do gasoduto russo-alemão Nord Stream 2, já concluído, projetando-se a substituição, também na medida do possível, do gás russo pelo estadunidense, mais caro.
A demonização de Putin e da Rússia avançou o prestígio da Otan entre a população européia, manipulada de forma vergonhosa, e a hegemonia estadunidense sobre ela e sobre a União Européia. O furor armamentista europeu, com destaque para a Alemanha, garantirá – e já está garantindo – excelentes encomendas para a indústria armamentista ianque e pretende lançar a Rússia em corrida bélica. Têm sido fabulosos os gastos com o armamento enviado para a Ucrânia, financiados pela União Europeia e os USA.
Até o último aliado
O grande sucesso do imperialismo estadunidense é que o conflito está se dando na Europa, sendo suportado essencialmente pelo Velho Mundo. Os Estados Unidos procuram alongar o atual confronto militar até o fim da capacidade de resiliência européia. Igualmente importante é a formatação da opinião pública europeia na mais desbragada russo-fobia, que tem em Putin o ogro da vez, após Milosevich, Fidel Castro, Bin Laden, Saddan Hussain, Khomeini, Gaddafi, Bashar al-Assad, Chaves, Maduro. Com um sucesso talvez jamais alcançado, mesmo nos piores tempos da chamada Guerra Fria.
O objetivo estratégico dos USA-Otan é manter a guerra frontal por meses e, se possível, uma situação de confrontos intermitentes, por anos, ao igual do ocorrido em Donbas, de 2014 a 2022, transformando a Ucrânia no Vietnã russo. Pretendem dessangrar a Rússia até a exaustão final, forçando seu depauperamento, convulsões internas, a queda do regime, a desorganização do Estado. O sonho de consumo dos USA-Otan é o o surgimento de um Volodymyr Zelensky russo, com a plasticidade pró-imperialista de Yeltsin.
Para concluirem tal operação, os USA-Otan dispõem-se a lutar até o último ucraniano, sem se envolver legalmente no conflito. O ator Volodymyr Zelensky, homem de imensa fortuna e fantoche escolhido a dedo para governar a Ucrânia como capitão-mor das donatárias lusitanas, com o futuro político e econômico garantido para sempre, despreocupa-se olimpicamente com a sorte do país e de sua população. Quando for necessário, o imperialismo retirará um outro político mediático e obediente da cartola.
Rússia delenda est
Não há cenário possível que sugira uma derrota russa, mesmo com os enormes investimentos militares ocidentais. Como proposto, os USA-Otan buscam sobretudo a erosão das forças militares e da economia russa, mesmo ao custo de uma ampla e desnecessária destruição de regiões da Ucrânia. Como estratégia de defesa, o exército ucraniano e as tropas nacional-fascistas internam-se nas cidades e impedem a evacuação de suas populações, utilizadas como escudos humanos. O que aumenta a complexidade dos combates para as tropas russas.
Na falta de vitórias militares, produzem fakes news, sobre supostos crimes russos monstruosos. Narrativas macabras que se sucedem umas às outras, sem qualquer preocupação para com a credibilidade das mesmas, asseguradas pelo domínio total da grande imprensa européia e mundial. As melhores peças publicitárias foram o “piloto fantasma de Kiev”, com dezenas de aviões russos abatidos, produzido através de animação virtual. Os treze marinheiros ucranianos da ilha da Cobra, no mar Negro, que teriam preferido a morte a se entregar a um navio de guerra russo. Após serem condecorados pós-mortem, apareceram bem vivos e bem tratados, como prisioneiros, todos, irritados por terem sido abandonados, sozinhos, na ilha, por seus superiores ucranianos.
Os massacres de civis pela aviação, mísseis balísticos e tropas russas se seguiram e se seguem, com enorme sucesso entre uma população privada de informação isenta: o do Teatro de Mariupol, o da cidade de Bucha, o de Kramatorsk, o de Járkovetc. A grande mídia internacional sequer se refere às inúmeras provas materiais que desmentem essas narrativas. Sobretudo na mídia alternativa, de escasso alcance, levantam-se vozes contra a enorme farsa midiática. Na guerra, a mentira é como terra – diziam os lusitanos.
O que podemos esperar da guerra
O fornecimento à Ucraina de modernas armas pessoais anti-aéreas e anti-blindados causaram perdas de meios de transporte, de tanques, de helicópteros e de aviões voando à baixa cota, retirando relativamente uma vantagem inicial das tropas russas. Alguns mísseis têm sido interceptados, registrando que o armamento entregue à Ucrânia tem sido ampliado na quantidade e na qualidade – os S-300, por exemplo. Entretanto, tudo indica que a Rússia pretende concluir o conflito, o mais rápido possível, com a transferência já realizada, para o sul das tropas que cercavam Kiev. Sobretudo, elas mantinham as forças armadas ucranianas imobilizadas, à espera de um ataque à capital ucraniana, que jamais esteve nos planos de Moscou. O objetivo militar parece ter sido, sempre, a Nova Rússia, no sul e no sudeste do país – região de forte população de fala e de etnia russa.
A nova batalha que já se inicia se dará em campo despejado, em uma enorme área de combate. Ela confrontará os em torno de 40 mil soldados ucranianos, armados e treinados pela Otan, que cercavam sobretudo Donbas. Nela, prevalecerá a qualidade da artilharia, das tropas mecanizadas, da infantaria, da aviação, da marinha e a coordenação entre essas armas. Apesar da disposição da Otan de fornecer o mais avançado material bélico, como blindados, mesmo que as baixas nas forças armadas russas sejam grandes, sua vitória está assegurada. Esse plano de guerra foi possivelmente delineado para o caso da negativa do governo ucraniano em negociar, para além das encenações atuais.
No caso do governo ucraniano não abrir reais negociações, é forte a possibilidade de partição da Ucrânia, entre o norte, por um lado, e o sul-sudeste, pelo outro. Na impossibilidade da Rússia impor a neutralidade de fato à Ucrânia, é uma possibilidade a opção por manter o controle do litoral ucraniano do mar Negro, o que uniria à Rússia, a Crimeia, por terra, através das repúblicas de Donbas e da cidade de Mariupol. É devida a isso a violência dos combates dessa nessa cidade, fortificada anteriormente sob a orientação de especialistas da Otan. No melhor dos casos, Odessa, uma cidade fundada pelos russos e fortemente russófona, seria, para a Ucrânia, a única saída para o mar.
A nova Rússia
As forças militares das repúblicas de Donbas estão avançando em forma acelerada o controle territorial sobre suas respectivas províncias – oblasts. De certo modo, a ocupação, dos territórios da Nova Rússia e das repúblicas de Donetsk e Lugansk, favoreceriam um afastamento da Otan das fronteiras históricas da Rússia. E, fortaleciam, igualmente, uma eventual negociação em favor de uma Ucrânia neutra e federalizada. Após as duras perdas, sobretudo em homens, será difícil ao governo russo abandonar a uma sorte incerta as populações russófonas da Ucrânia. A partição da Ucrânia terá, caso ocorra, desdobramentos difíceis de prever.
As duras e incessantes sanções econômicas ainda não revelaram a dimensão do estrago que elas podem causar à economia da Rússia. A dependência necessária da Europa da energia russa, no mínimo, por um curto e médio espaço de tempo, tem se mostrado maior do que o esperado. A Europa Ocidental segue financiando a campanha ucraniana, sem interromper o pagamento do gás e do petróleo que chega da Rússia diabolizada.
A política militarista, defendida e avançada pelos atuais governos europeus, acirrará a crise social no Velho Continente, o que já está ocorrendo, ensejando novos cenários políticos. A negativa sobretudo da Índia e da China de adesão à campanha de isolamento da Rússia, já dificulta a tentativa de impor um cerco como o sofrido por Cuba, Coréia do Norte, Irã. Quase um terço da população mundial vive naqueles dois países continentais. A capacidade de manipulação ocidental da África Negra e da Ásia recuou fortemente nos últimos anos. A Rússia sairá do conflito, para muitss nações, como exemplo de fortaleza e resistência diante de Estados significativamente mais ricos e poderosos.
A Terceira Guerra Mundial
Tem-se discutido se o atual conflito seria já o início ou poderia resultar na III Guerra Mundial. Um debate que nos parece improcedente. A II Guerra Mundial. De 1939 a 1945, foi conflito geral com o objetivo de conquistas de áreas terrestres e marítimas, que confrontou exércitos de terra, mar e ar. Ao igual do que ocorre na Ucrânia. Mas, hoje, essa modalidade de choque militar é inviável, em forma direta, entre nações com armamento atômico. Qualquer país em desvantagem estratégica, em um confronto geral, usará seu poderio atômico, nem que seja tático, antes de sucumbir. A Rússia possui em maior número armas atómicas táticas – defensivas – e já declarou que pretende usá-las, se for necessário.
Uma espécie de III Guerra Mundial, de 1947 a 1991, entre a URSS e os USA, e os respectivos aliados, foi lutada através de uma sucessão incessante de golpes de Estado e conflitos militares localizados e controlados, e jamais gerais – guerra da Coréia; golpes na Indonésia, no Brasil, no Chile; guerras africanas de libertação nacional; guerra do Vietnã, do Laos, da Camboja; guerra em El Salvador, na Nicaragua, no Afeganistão, etc. Buscava-se o enfraquecimento econômico do bloco inimigo, o que foi conseguido, com a dissolução da URSS.
Essa forma de conflito entre a Rússia e o Ocidente está em pleno desenvolvimento há anos, conformando o que poderíamos propor como a IV Guerra Mundial, com batalhas localizadas na Chechenia, no Iraque, na Bósnia e Herzegovina, na Georgia, na Síria, no Irã, na Líbia, etc. A luta pela imposição da hegemonia estadunidense exige a submissão da Rússia, da China, do Irã, da Coréia do Norte, da Venezuela, sobretudo.
O confronto militar na Ucrânia, contra a Rússia, foi um salto de qualidade nesse embate. Talvez, possivelmente, por falta de condições para o imperialismo avançar a mesma iniciativa contra a China, na qual não contaria com o apoio da Europa Ocidental e o Japão. Uma das possibilidades estadunidenses de lançar a China em um conflito, sem um embate frontal e total, é o incentivo à independência ou o estabelecimento de tropas ianques em Taiwan. De certo modo, o que foi feito na Ucrânia. O governo chinês tem declarado que uma tal realidade levaria à intervenção em Formosa. O perigo de um conflito generalizado é sempre real, mesmo se não é buscado ou desejado por nenhum dos dois blocos.
Aonde vai a China?
Os EUA ameaçam a China com retorsões, caso mantenha as relações privilegiadas com a Rússia, debilitando as políticas de sanções econômicas. Dependendo do mercado estadunidense para o escoamento de suas exportações, Pequim tem se mantido retraído, em aparente equidistância. Procura tumultuar ao mínimo as já agitadas águas de seu relacionamento com os Estados Unidos. Alguns analistas ocidentais sonham com a aproximação de Washington e Pequim, isolando Moscou e facilitando sua derrota. Entretanto, os EUA seguem definindo como seu inimigo estratégico a China, que sabe possuir superioridade ou paridade militar em relação ao inimigo prioritário, apenas em aliança com a Rússia. Propõe-se que uma derrota da Rússia e queda do regime atual, com o advento de um novo Zelensky-Yeltsin, levaria a um inevitável afastamento com a China. Outra razão para Pequim se preocupar, mesmo discretamente, com o bom sucesso do aliado russo.
O imperialismo estadunidense, em decadência relativa, possui uma janela de tempo estreita para desorganizar a China, imperialismo em acensão. A ofensiva USA é apresentada na linguagem justificativa como contenção da Rússia e da China, como se a pressão viesse das nações acossadas. Uma derrota geral russa avançaria o ataque contra a China e, no caso de vitória sobre o país oriental, inauguraria o “novo século americano”, com sequelas terríveis para o mundo do trabalho, para a população em geral, para a própria sorte da humanidade. A derrota dos Estados Unidos nessa operação geral ensejará, em um prazo de tempo mais largo, o surgimento da nova hegemonia imperialista chinesa sobre o mundo.
Os próximos tempos serão de tensão e violência jamais conhecidas pela humanidade, já que vividos sob o signo do confronto de nações com armamentos nucleares.Apenas a organização nacional e internacional dos trabalhadores e a construção de sua hegemonia geral, garantirá uma saída do terrível empasse em que nos encontramos, garantindo um futuro para a própria humanidade.
P.S. Agradecemos a leitura da linguista italiana Florence Carboni.
*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de O despertar do dragão: nascimento e consolidação do imperialismo chinês (1949-2021).
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