Soluções bonapartistas

Imagem: İrem Altindag
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DYLAN RILEY*

Os EUA não podem adotar uma solução bonapartista.  Assim, a burguesia americana está condenada a trabalhar dentro dos limites de um sistema partidário que agora se tornou uma relíquia disfuncional

Existe uma força considerável no argumento de que o livro 18 de Brumário ainda detém a chave para entender a política francesa contemporânea. Pois Karl Marx compreendeu que o segredo do poder burguês na França residia na divisão entre as forças populares urbanas e rurais; seu medo e aversão mútuos beneficiaram uma classe dominante altamente concentrada, que reivindicava uma missão civilizacional universal enquanto estabelecia um regime de bem-estar impressionantemente generoso, que atendia principalmente aqueles que menos precisavam dele. Esse modelo teve origem no Diretório, foi desenvolvido sob o primeiro Bonaparte e chegou à plena fruição em 1848.

Conforme Julia Cagé e Thomas Piketty apontam em Une historie du conflit politique (2023), um livro que às vezes parece uma reedição do clássico de Marx reforçado por enormes quantidades de dados quantitativos, a estrutura bonapartista só foi desafiada de fato no começo do século XX, por uma classe trabalhadora militante liderada por um partido comunista que forçou o sistema político a uma alternação esquerda/ direita.

Desde o começo dos anos 1990, no entanto, o bonapartismo reemergiu mais forte do que antes. Com Emmanuel Macron ele assume uma forma clássica. A direita do Rassemblement National e a esquerda da La France insoumise (os “extremos”, segundo os termos da imprensa) balançam um ao outro, enquanto o centro radical – o bloco burguês anatomizado por Serge Halimi – está livre para perseguir seu interesse próprio, enquanto reivindica para si o papel de protetor da dignidade da nação, da humanidade e da ecosfera como um todo. Uma fórmula política notável, conforme Gaetano Mosca teria colocado.

Isso levanta uma questão importante. Por que é que a classe capitalista estadunidense, certamente a mais poderosa da história, não consegue reproduzir essa fórmula? O paradoxo aqui é que essa classe foi paralisada por uma estrutura partidária que lhe serviu muito bem por décadas. Historicamente, o sistema bipartidário dividiu a classe trabalhadora entre democratas e republicanos, com os blocos verticais resultantes sendo cimentados por uma combinação de concessões prometidas e demagogia personalista.

Uma vez no poder, no entanto, os partidos normalmente abandonam seus programas eleitorais e se movem em direção ao centro.  Mas o que têm acontecido no período mais recente – um fenômeno relacionado ao surgimento daquilo que chamo de capitalismo político – são revoltas intrapartido na direita e na esquerda, sendo que as de direita são significativamente mais poderosas que as da esquerda. Essa turbulência dentro dos partidos reflete uma problemática mais ampla, de um sistema capitalista cada vez menos capaz de entregar ganhos materiais para a classe trabalhadora.

Isso cria uma situação perigosa para os governantes, já que não é fácil encontrarem um veículo para reestabelecer equilíbrio. Assim, uma série de sintomas políticos curiosos apareceu: projetos quixotescos de terceiros partidos sem chance de sucesso, antigos operadores republicanos tentando recrutar conservadores prestigiados para Joe Biden, reaparecimento de figuras do governo Bush na MSNBC e por aí vai. Todas essas pessoas gostariam de estabelecer uma versão americana do macronismo, mas não conseguem. Por quê?

Porque em um sistema político em que o duopólio força uma escolha, em que partidos parecem estar paradoxalmente se fortalecendo (uma das estranhas maneiras em que os EUA estão se europeizando e a Europa está se americanizando), é difícil reorganizar as lealdades dos eleitores para permitir uma solução bonapartista. Privada dessa opção, a burguesia americana está condenada a trabalhar dentro dos limites de um sistema partidário que agora se tornou uma relíquia disfuncional.

*Dylan Riley é professor de sociologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley. Autor, entre outros livros, de Microverses: observations from a shattered present (Verso).

Tradução: Julio Tude d’Avila

Publicado originalmente no site da New Left Review.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Benicio Viero Schmidt Eduardo Borges Maria Rita Kehl Daniel Costa Airton Paschoa Luiz Marques Francisco Fernandes Ladeira Chico Alencar Salem Nasser Celso Frederico Otaviano Helene Henry Burnett Bruno Machado Luís Fernando Vitagliano Vinício Carrilho Martinez Liszt Vieira Ronald León Núñez Luiz Carlos Bresser-Pereira José Costa Júnior Marcos Silva Paulo Fernandes Silveira Francisco de Oliveira Barros Júnior Valerio Arcary Ari Marcelo Solon Vladimir Safatle Mariarosaria Fabris Boaventura de Sousa Santos Rodrigo de Faria Gerson Almeida Renato Dagnino Marcelo Guimarães Lima Luiz Roberto Alves Gabriel Cohn Alysson Leandro Mascaro Eugênio Bucci Milton Pinheiro Luiz Eduardo Soares João Carlos Salles Afrânio Catani Ronald Rocha Marjorie C. Marona Daniel Brazil Jean Pierre Chauvin Lucas Fiaschetti Estevez Ricardo Antunes Bruno Fabricio Alcebino da Silva Annateresa Fabris Marcus Ianoni Chico Whitaker Anselm Jappe Tales Ab'Sáber Carlos Tautz João Carlos Loebens Rafael R. Ioris Caio Bugiato José Dirceu Manchetômetro Priscila Figueiredo Carla Teixeira Luis Felipe Miguel Paulo Capel Narvai Antonino Infranca Celso Favaretto Dennis Oliveira Michel Goulart da Silva Lorenzo Vitral José Raimundo Trindade Leda Maria Paulani Matheus Silveira de Souza Jorge Branco Sergio Amadeu da Silveira Paulo Nogueira Batista Jr Marcos Aurélio da Silva Bento Prado Jr. Henri Acselrad Walnice Nogueira Galvão Kátia Gerab Baggio Marilia Pacheco Fiorillo Atilio A. Boron José Luís Fiori Luiz Bernardo Pericás Antônio Sales Rios Neto Eugênio Trivinho Marcelo Módolo Tadeu Valadares Sandra Bitencourt Flávio Aguiar Valerio Arcary Paulo Sérgio Pinheiro Daniel Afonso da Silva Michael Löwy Claudio Katz Mário Maestri Juarez Guimarães Leonardo Sacramento Dênis de Moraes João Paulo Ayub Fonseca João Feres Júnior Plínio de Arruda Sampaio Jr. José Machado Moita Neto Alexandre de Freitas Barbosa Elias Jabbour Ricardo Musse José Micaelson Lacerda Morais Heraldo Campos Gilberto Lopes Luciano Nascimento Andrew Korybko Leonardo Boff João Adolfo Hansen Eleutério F. S. Prado Michael Roberts Francisco Pereira de Farias Ricardo Fabbrini Manuel Domingos Neto Julian Rodrigues Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Érico Andrade Ronaldo Tadeu de Souza Samuel Kilsztajn Leonardo Avritzer Luiz Werneck Vianna Luiz Renato Martins Yuri Martins-Fontes Marilena Chauí Rubens Pinto Lyra Eliziário Andrade Osvaldo Coggiola Fernão Pessoa Ramos Gilberto Maringoni Fábio Konder Comparato André Singer Lincoln Secco Antonio Martins Thomas Piketty Remy José Fontana Everaldo de Oliveira Andrade Paulo Martins Tarso Genro Vanderlei Tenório Jean Marc Von Der Weid Berenice Bento Ricardo Abramovay Andrés del Río Fernando Nogueira da Costa Eleonora Albano Slavoj Žižek Flávio R. Kothe Bernardo Ricupero Jorge Luiz Souto Maior José Geraldo Couto Denilson Cordeiro Alexandre Aragão de Albuquerque André Márcio Neves Soares Armando Boito Igor Felippe Santos Alexandre de Lima Castro Tranjan João Sette Whitaker Ferreira Ladislau Dowbor João Lanari Bo

NOVAS PUBLICAÇÕES