Dois anos de desgoverno – neoliberalismo fascista

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Por LINCOLN SECCO*

A resistência episódica de uma esquerda de pauta fragmentada é incapaz de derrotar o fascismo

Jair M. Bolsonaro não ascendeu sem a cumplicidade das elites empresariais, da mídia, do Congresso, das Forças Armadas e do Judiciário. A única exigência daquelas instituições era que, uma vez passado o processo eleitoral, ele se adaptasse ao modus operandi tradicional da governabilidade.

No entanto, ele se estabilizou no poder sem abandonar o discurso sectário. Apesar de sucessivas trocas de ministros e destempero verbal dos seus integrantes, o governo manteve-se firme e sobreviveu a todas as falsas profecias de sua queda iminente. A política econômica obteve apoio da maior parte do Congresso, mídia corporativa e empresariado, além dos países imperialistas, é claro.

Bolsonaro também manteve capacidade de mobilização popular porque defende valores morais enraizados numa parte da sociedade. Além disso, dotou-se de um dispositivo militar de sustentação do seu poder. Em junho de 2020 havia 6.157 militares no governo federal e eles chefiavam 36% dos ministérios.

No segundo ano de seu mandato, contrariou sua equipe econômica, concedeu Auxílio emergencial aos trabalhadores durante a quarentena mediante autorização legal. Mesmo assim, colocou em dúvida a própria manutenção do limite constitucional dos gastos públicos. O valor oferecido foi superior ao do Bolsa família, o programa social mais elogiado do período petista. Isso garantiu que em meio à tragédia da pandemia, houvesse uma ascensão da popularidade do presidente, apesar dele duvidar da letalidade do vírus. Ela se retraiu com o fim do auxílio emergencial e a segunda onda de mortes em Manaus.

A adesão de Bolsonaro a este ou àquele programa econômico nunca foi questão de princípio, como observamos por sua biografia política; ela está subordinada a um propósito de desmontagem do que ele acredita serem os aparelhos de Estado infiltrados pelo “marxismo cultural”.

Neoliberalismo Fascista

Bolsonaro é fascista, embora não tenha ainda fascistizado completamente as instituições. Na era do capital monopolista, o fascismo é a mobilização oportunista e racional do que há de irracional nas pessoas, particularmente das camadas médias ressentidas. O fascismo pode ou não cumprir as fases históricas que o transformam de uma crença marginal e desagregada num movimento de massas, num partido, num governo ou mesmo em um regime político.

Se levarmos a sério a definição, precisamos reconhecer que o bolsonarismo não representa apenas uma onda passageira de alucinação coletiva. Mesmo que venha a ser eleitoralmente derrotado, as bases de sua política e os antivalores que defende continuarão em estado larvar na sua base social.

O bolsonarismo fornece ao capital financeiro sua base de massas, fundada numa ideologia que traduz em ação política os elementos mais reacionários do senso comum. Em nossa época, eles são os do individualismo neoliberal e formam uma teia de crenças que orienta a própria esquerda. Isso se chama hegemonia, ou seja, a capacidade de dirigir moral e intelectualmente até os adversários. Assim como o “homem médio” acredita no mérito dos grandes magnatas das finanças, a esquerda crê no equilíbrio fiscal temperado por políticas sociais compensatórias.

O fascismo precisa do terror permanente e opera no interior da hegemonia do grande capital, reforçando-a. Quando o seu custo político ameaça a existência econômica das classes dominantes, ele pode ser descartado.

No entanto, a história é sempre mais complexa. O fascismo tem uma autonomia relativa que pode levar à destruição do próprio aparelho de Estado e do país. Para quem duvida, basta lembrar que a Alemanha esteve próxima disso em 1945 e sobreviveu pela piedade e interesse econômico de seus adversários. Alguns deles propuseram simplesmente o seu desmembramento nas pequenas monarquias anteriores à era bismarckiana.

A classe dominante alemã, que financiou os nazis e, depois, lucrou com as compras governamentais e as efêmeras conquistas de territórios e escravos, não se opôs nunca ao regime. Mesmo outras burguesias, como a francesa, buscaram se adaptar e lucrar com o colaboracionismo. Portanto, não adianta esperar nada de qualquer burguesia interna. Em última instância ela opta por sacrificar sua sobrevivência política em nome da econômica. Centros e centrões perdem utilidade quando os empresários desertam de seus partidos tradicionais.

O Índice de confiança do Empresário Industrial foi, na média, maior no governo Bolsonaro do que nos dois mandatos de Dilma. Apesar da depressão econômica, as classes dominantes continuaram apoiando o governo com a expectativa de que ele desmontasse ainda mais o Estado. Não bastaram os ataques à previdência e aos direitos do trabalho. Nem a tragédia de um país que perdeu a capacidade de produzir sua própria vacina ou de um governo que deixou o Amapá sem energia comovem o capitalista. Ele é a mera personificação de uma categoria econômica e não de ideais. As exceções do passado, como Roberto Simonsen, confirmam a regra dos Skaf, dos Lemann e de uma burguesia industrial reduzida ao capitalismo de galpão.

O comportamento dos empresários e de seus porta-vozes midiáticos se explica porque ainda é mais vantajoso sustentar a taxa de lucro diminuindo a parte do salário na composição do preço do produto. Quando falam em produtividade, eles não pensam em inovações tecnológicas, mas na diferença entre o que o trabalhador produz e o que ele custa. A tradução de expressões como “ajuste fiscal” e “reformas” é simplesmente pagar menos impostos e salários.

A melhoria do ambiente macroeconômico não é atribuída ao papel indutor do Estado e a um mercado interno robusto, mas ao fim de direitos trabalhistas e previdenciários e ao corte de gastos públicos com saúde, pesquisa e educação. Na racionalidade microeconômica dos empresários, eles não são externalidades econômicas que viabilizam investimentos de largo prazo. Seu único interesse histórico é a taxa de lucro, ainda que não haja mais uma sociedade onde realizá-la. Eles não são inocentes e sabem perfeitamente o que estão fazendo com o país. Transformaram-no de novo numa plataforma de exportação de bens primários e, ao lado das celebridades da mídia e do esporte, vivem no exterior e de lá apoiam as maldades do governo pelo twitter.

Para o trabalho negativo da crítica não deixa de ser fascinante: Bolsonaro exacerbou finalmente as tendências imanentes do capitalismo periférico de um país continental: mais que a superexploração, assumiu uma economia de enclaves para exportação de commodities e energia; e reduziu o Estado ao papel de guarda noturno. Tudo de forma explícita e sem provocar até aqui qualquer motim social. Na melhor das expectativas, ele poderá sofrer uma derrota nas eleições de 2022, embora hoje isso ainda seja improvável.

Bolsonaro reduziu até as Forças Armadas a uma polícia política, reforçou seus privilégios, distribuiu cargos e oportunidades de enriquecimento ilícito e derrubou sua última ilusão: a de defender a soberania do território.

O modelo neoliberal não vai desaparecer mesmo com uma derrota do governo. O jogo político se reduziu à contradição no interior do neoliberalismo entre sua modalidade fascista e a “democrática”. A República Liberal-Social de 1988 chegou ao fim. Na “república neoliberal” o país voltou à condição de uma feitoria disfarçada de sociedade, para usar a expressão de Caio Prado Júnior.

Eppur si muove

O capitalismo selvagem da periferia possui contradições insanáveis que nenhum governo pode resolver. Bolsonaro não pode simplesmente adotar um programa keynesiano num país em que os bancos, os empresários e as camadas médias funcionam numa lógica rentista e não produtiva; ao mesmo tempo, ele precisa gerar emprego, renda e serviços públicos para os pobres porque eles são a grande maioria do eleitorado; restaria a opção de um novo golpe, algo sempre proclamado por algum membro da famiglia no poder.

Os preceitos moralistas que Bolsonaro apresenta têm respaldo social porque satisfazem, de maneira real ou imaginária, problemas cotidianos das pessoas. Mas ao mesmo tempo eles contrariam práticas vigentes na base da sociedade e que são dificilmente reversíveis, como a sexualidade livre e a noção de que alguns serviços públicos são um direito adquirido historicamente.

A resistência episódica é incapaz de derrotar o fascismo porque numa sociedade dilacerada ele oferta o reencontro da comunidade; diante de uma esquerda de pauta fragmentada, ele apresenta o engajamento numa causa nacional. Ainda que tudo isso seja tão falso quanto a arma secreta do Führer que salvaria a Alemanha.

A ideia de uma sociedade socialista levou milhões à revolução, à resistência antifascista e até mesmo às reformas sociais e ampliação de direitos. Havia um mundo a ganhar e não um artigo da constituição a defender.

Como escreveram os autores do Manifesto, “está mais do que na hora de os comunistas exporem abertamente ao mundo inteiro seus pontos de vista, seus objetivos, suas tendências, e de contrapor à lenda do fantasma do comunismo um manifesto de seu próprio partido”.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê Editorial).

 

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