A dimensão emancipatória

Foto de Christiana Carvalho
image_pdf

Por JULIAN RODRIGUES*

Desqualificar as lutas contra as opressões não é nem de esquerda nem marxista

“Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”
(Rosa Luxemburgo)

Os fundamentos do marxismo são a emancipação humana, em todas suas dimensões. Não é preciso mencionar as intuições de Engels ou o feminismo socialista nascido no século 19. Nem mesmo os avanços que a revolução russa promoveu em seus primeiros anos.

Se parte importante da esquerda socialista virou “careta” e conservadora ao longo do século XX, esse desvio conservador já vem sendo consertado desde os anos 1960. Igualdade de gênero, igualdade racial, liberdades sexuais, liberdades democráticas são elementos de qualquer programa de esquerda, socialista, marxista, comunista, revolucionário há muitos anos. Ou deveriam ser.

Ledo engano. O machismo economicista heterossexual elitista-branco segue firme e forte entre intelectuais da esquerda. Ávidos por desqualificar as lutas contra as opressões, como se a classe operária fosse uma massa homogênea de homens brancos heterossexuais de meia idade – esses escribas não param de menosprezar tudo que não seja o sindicalismo clássico.

A primeira operação deles é rotular a luta das mulheres, do povo negro, das LGBT como ‘identitárias’. Coisa menor, quase ridícula. Não se dão ao trabalho de conhecer as diferenças políticas que existem no interior dos movimentos. Tratam, por exemplo, o feminismo como um conjunto homogêneo – algo primário.

Esses “intelectuais”, além de não incorporarem a dimensão emancipatória da luta socialista – e entendendo o capitalismo como um sistema articulado de opressões sobrepostas – nem se dão ao trabalho de diferenciar as perspectivas liberais das perspectivas socialistas. Descartam tudo.

Sugestão para essa turma: leiam autoras feministas. Resgatem a história da luta das mulheres, da luta anti-colonial, da luta das minorias sexuais. Não há socialismo sem feminismo. Nem sem igualdade racial.

Como militante LGBT e comunista eu tenho que enfrentar simultaneamente tanto  os “neoliberais progressistas”  quanto a “esquerda conservadora”.

Para começar: evitem os termos pauta identitária ou luta identitária

Quando alguém de esquerda usa essa palavra geralmente quer desqualificar os movimentos e lutas das LGBT, mulheres, negros.

Não confundam a crítica aos limites do liberalismo progressista com a legitimidade das lutas contra as opressões estruturais.

Enfrentar o capitalismo patriarcal-racista-cisheteronormativo não é coisa menor, ou apenas reivindicação por representação, que ignoraria a luta de classes. Os liberais é que se limitam tais demandas à dimensão do “reconhecimento”. Os socialistas batalham por reconhecimento, igualdade material e participação política.

Então, não sejam como José Pacheco Pereira , ou como um certo escritor baiano que me recuso a divulgar o nome, nem deem uma de Mark Lilla. E tantos outros que é melhor nem citar. Olhem para o Chile, para o protagonismo das mulheres jovens. Na dúvida, Nancy Fraser resolve. Ou voltem à Rosa Luxemburgo. Uma esquerda marxista necessariamente é feminista, libertária, antirracista – tem como horizonte a própria emancipação humana. Desde sempre.

*Julian Rodrigues é professor e jornalista, ativista LGBTI e de Direitos Humanos

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES