O governo Lula e a questão da vice

Imagem: Eugênio Barboza
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ MARQUES*

Os encargos da vice possuem um caráter simbólico na luta de classes

O elemento de classe & outros

O pré-candidato à Presidência, Lula da Silva, passa em entrevistas uma concepção expandida da luta de classes no Brasil. Às iniciativas para a conservação da Amazônia, associa o cuidado com o saneamento básico nas periferias. Às exigências de igualdade de gênero e raça, esconjura a misoginia e as discriminações. À contra-reforma trabalhista a pedido do laissez-faire, acena com a revisão aos moldes da experiência espanhola. À defesa dos ajustes ao salário mínimo acima da inflação, argumenta a formação do mercado interno de massas. À crítica sobre o modelo vigente, expõe antídotos ao capitalismo financeirizado.

“Essas lutas se interseccionam com e são sobredeterminadas pelas linhas divisórias de raça / etnia, gênero e classe, agora compreendidas em sentido mais amplo”, na interpretação de Nancy Fraser, em Capitalismo em Debate (Boitempo). Abarcam o trabalho precário, uberizado, não assalariado e expropriado. O elemento de classe se entrelaça com outros componentes na confecção de políticas para a saúde, a educação, a segurança, a habitação, e assim por diante. “No entanto, dizer que o problema tem um elemento crucial de classe não significa voltar a uma visão excessivamente simplificada de que a classe é o problema ‘real’, enquanto raça e gênero são epifenômenos”, ressalta a professora de Nova York.

A separação entre produção e reprodução social gratuita atribuída às mulheres traz uma inflexão de gênero. Herança maldita de um patriarcalismo sexista e arcaico. As reparações afirmativas das cotas em universidades trazem uma inflexão afrodescendente e indígena. O combate aos preconceitos, uma inflexão nos agrupamentos LGBTQIA+. O amanhã é um prenúncio de lutas, não a paz dos cemitérios. O horizonte capitalista é repleto de crises: ecológica, econômica, política, cultural e social. A “lei do valor” submete os dominados e os dominadores à coerção que bloqueia as conexões com as gerações e a natureza não humana.  A crise e a heteronomia afetam todos. Mas a expressão mais aguda das crises recai sobre as classes pobres e trabalhadoras. Motivo pelo que merecem ter priorizadas as suas demandas. Os mecanismos de alienação e escapismo tergiversam ao focar a vida privada e a sofrência.

A vantagem extraordinária que um terceiro governo Lula propicia está na retirada de temas  relegados ao mercado, entre os quais, o zelo com o meio ambiente, o padrão das relações de trabalho e a regulação dos meios de comunicação para serem auscultados pela opinião da maioria. Itens antes inacessíveis ao alcance das resoluções democráticas. Politizá-los, torná-los alvo de interlocução é descortinar uma sociabilidade solidária. A marcha civilizatória se efetiva, in concreto, sob o farol-guia do pluralismo político, da liberdade e da solidariedade públicas. Não nas sombrias trevas do fundamentalismo despótico e do pensamento único.

O caminho é cheio de obstáculos incrustados na própria estrutura institucional, para que as discórdias se exprimam livre de amarras e se resolvam institucionalmente. Mesmo assuntos que a tradição sufocou com uma rígida divisória entre a política e a economia, como a duração da jornada de labor, precisam ser escaneados pelo debate público. O neoliberalismo colonizou a política com categorias econômicas. Contudo, daí não se depreende a inversão dos sinais na busca de uma revanche caricata através da colonização da economia com categorias da política. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Conquistas democratizantes necessitam ter correspondência no grau de politização e organização da sociedade civil para não suscitar retrocessos, em resposta. Dependem da corajosa e árdua arte de governar.

Um governo Lula, mais ousado e igualitário, “com os pobres no Orçamento e os ricos na Receita Federal”, será cobrado com maior rigor do que os anteriores, onde a esperança estagiou “sem medo de ser feliz”. Vai requerer audácia e prudência para saldar a agravada dívida social da pátria – e ter os pés no chão para o exercício da governança, sem receio de olhar para cima. Não se trata de frear o ímpeto de transformação, senão de alertar para um jogo cujo desfecho não depende apenas do espírito de rebeldia, sob o risco do voluntarismo. Nada indica a repactuação do sistema representativo. Exclusão é certificado de brasilidade. Uma Reforma Política por dentro do Congresso Nacional é inviável, como uma Reforma Tributária que vise a justiça fiscal progressiva e a justiça social distributiva. Reformas que o país se recusa encaminhar, preso à metáfora freyreana da “casa grande” e da “senzala”.

A discussão incontornável num premente governo Lula é sobre o crescimento econômico. Em certas regiões da Europa, numa espiral, irrompem numerosos grupos de intelectuais e ambientalistas que rejeitam a pauta, à medida que se difundem evidências do caos ambiental e do aquecimento global. Uns propõem então o “decrescimento”, como se pudéssemos parar de crescer ou encolher. Na Alemanha, o termo é rejeitado em proveito do “pós-crescimento” que repele o imperativo abstrato para o crescimento, entregando às comunidades o poder de contenção sobre a dinâmica irracional do desenvolvimento, com custo socioambiental. Em tese, para o bem-estar da sociedade. Na real, para a insaciável ganância do capital. A consciência ecológica confronta problemáticas que estavam fora do radar da prevenção para que catástrofes, tipo Brumadinho, não se espalhem e naturalizem na paisagem lúgubre.

 

A polêmica questão da vice

Seis anos depois do impeachment e quatro distantes do impedimento de Lula nas eleições de 2018, a pergunta é: alavancada pela ideologização da operação Lava Jato com alas do Judiciário / MPF, a FIESP, a FEBRABAN, as Forças Armadas e a imprensa controlada pelas finanças, para atender interesses das empresas de engenharia estrangeiras, em particular, das petrolíferas norte-americanas, a articulação golpista acatará a vontade das urnas em outubro próximo? A derrota de Trump e a ascensão dos progressistas na América Latina, Fernández e Cristina na Argentina e Boric no Chile, se pintaram em tons de otimismo o mapa-múndi, não induzem uma exagerada superestimação da musculatura em prol da democracia, no continente. O traço entreguista da burguesia latino-americana é uma constante, com ataques e traições em série ao poder constitucional ao longo dos séculos. A conjuntura se desenha como um copo com água pela metade. Para uns, meio vazio. Para outros, meio cheio.

Para quem o momento é defensivo, à gauche, Alckmin abre mão da corrida ao Palácio dos Bandeirantes que concentra a grande fatia do PIB brasileiro, embora ponteie as pesquisas de intenção de voto. Incorpora-se à campanha de Fernando Haddad (PT/SP). Ao se filiar numa sigla de centro-esquerda e compor com Lula, contribui para um nó tático na narrativa do antipetismo. O ex-governador modera um cenário tóxico, exorciza o cesarismo de extrema-direita e devolve os ratos ao esgoto. “O fascismo está na porta. A correlação de forças ainda não nos é favorável”, sublinha o sociólogo Lejeune Mirham. “Lula projeta uma imagem de amplitude e conciliação”, atesta o jornalista Luís Costa Pinto. “Lula está fazendo tudo certo”, lamenta à droite o estratego do bolsonarismo sem cabeça, Merval Pereira, que propõe o Genocida no Senado. A Globo aferra-se ao embuste, Sérgio Moro. O pressuposto comum aos defensivistas, lá e cá, é a disjuntiva do neofascismo em face do neoliberalismo.

Para quem o momento é de ofensiva, “Alckmin é a contradição a tudo que o PT fez. Lula não precisa de muleta eleitoral”, enfatiza o deputado que presidiu o partido da estrela, Rui Falcão. O prócer tucano relativiza o conteúdo de classe alternativo ao status quo. “O PSDB, foi a matriz e centro histórico das coalizões neoliberais no Brasil. Na maior crise da história, pretender derrotar o bolsonarismo sem derrotar as forças econômicas e políticas neoliberais que elegeram Bolsonaro, sustentaram e ainda sustentam é trilhar a direção do desastre político”, lê-se na corrente interna do PT (Democracia Socialista). O passado de serviços aos mercados e às privatizações condenariam o “novo cristão”. Pior, ameaçariam o futuro. Para a DS há uma unidade estreita e indissolúvel “entre programa, estratégia e alianças”. Equivale a falar que o agouro neofascista se desmancha no ar, com o esfacelamento dos já não tão sólidos alicerces financistas. O pressuposto dos ofensivistas é de que o figurino político autoritário se desfaz com a destruição das excludentes casamatas do neoliberalismo.

A insinuação a vice despertou a memória do MTST: “Completam-se dez anos do massacre do Pinheirinho. Em 2012, a polícia de São Paulo executou uma operação de guerra para despejar milhares de famílias de um terreno, em São José dos Campos. Muita gente ferida, casas incendiadas. ‘Uma barbárie’, avaliou a presidenta Dilma Rousseff. Pude presenciar o desespero. Diante do conflito de competências entre as Justiça estadual e federal, que suspendera a ordem, a palavra final para a ação veio do governador Geraldo Alckmin”, lembra Guilherme Boulos (PSOL/SP). À época, escolas foram fechadas. Estudantes, em protesto, atingidos por bombas de gás lacrimogêneo. Presídios eram inaugurados. Cresciam os índices de letalidade policial. A empresa de saneamento (Sabesp), capitalizada na Bolsa. A empresa de energia (Cesp), privatizada. “Política deve ser feita com grandeza e com capacidade de diálogo, mas jamais com o esquecimento”, arremata o ativista dos sem-teto. As circunstâncias, apesar dos pesares, podem desembocar em apoiamento – constrangido.

Valério Arcary reitera o desconforto psolista no artigo O ultimato de Lula, ao objetar que “o afã de chegar ao poder a qualquer preço é fatal”. A admoestação serve para Sérgio Moro, julgado incompetente e parcial pela Alta Corte. Não para Lula, que tem óbvia empatia com o povo, não amor ao “poder pelo poder”. Dado o desconto, Arcary tem razão ao afirmar que as sensibilidades reunidas, nas mobilizações Fora Bolsonaro, não seriam contempladas na dobradinha integrada por Alckmin. A chapa recenderia um tempo em que se votava, em separado, para presidente e para vice como sucedeu com Jânio Quadros e João Goulart.

O programa governamental é auspicioso: fim da liquidação do patrimônio estatal, recuperação da Petrobrás para orientar a produção, fortalecimento das relações Sul-Sul, empoderamento popular com as Conferências Nacionais. Coisas que não se refletem na biografia alckminiana. O gesto do pindamonhagabense é um significante à captura de um significado. Ninguém se iluda. A cunha nas classes médias depende de políticas que modifiquem a tabela regressiva do Imposto de Renda e qualifiquem os equipamentos da Saúde e da Educação públicas, para fazer ocioso o recurso aos exorbitantes planos privados.

Os encargos da vice possuem um caráter simbólico na luta de classes. Cobram explicações republicanas claras, ao invés de ruídos nas mentes e nos corações. Com José Alencar era a aliança do trabalho com a fração produtiva do capital. Com Alckmin é o esgotamento do clima artificial de polarização ideológica. O equívoco está em assumir a equalização da esquerda com a extrema-direita, propagandeada pela mídia corporativa. Visivelmente, a aglutinação em curso das oposições antineofascistas e antineoliberais ocorre na perspectiva das classes subalternizadas. “Não posso querer ser presidente para resolver os problemas do sistema financeiro, dos empresários, daqueles que ficaram mais ricos durante a pandemia”, afiança o líder petista. Para Paulo Nogueira Batista, “o que ocorrerá agora é o deslocamento da atividade política para a disputa de espaços dentro do futuro governo Lula”. Tomem seus assentos nos vagões. A locomotiva do trem da democratização da democracia vai partir.

 

Por um bloco contra-hegemônico

O neoliberalismo sofre questionamentos contundentes na AL, nos EUA e na Europa. A civilização que prometeu devora a si própria, conforme a síntese de Anselm Jappe, em A Sociedade Autofágica: Capitalismo, Desmesura e Autodestruição (Elefante). Em cinquenta anos de dominação e hegemonia, enfim, escancaram-se as fragilidades neoliberais no pântano civilizacional onde se meteu a humanidade. Quem sabe faz a hora, não espera.

Lula oportuniza a formatação de um bloco contra-hegemônico, em torno do que Nancy Fraser denomina de “populismo progressista”, condensando um projeto emancipador:

a) com uma orientação econômica igualitária pró-classe trabalhadora convencional, ligada à manufatura e à construção, capaz de reenergizar o sindicalismo de luta em escala nacional;

b) com reconhecimento laboral dos hiperexplorados no serviço doméstico, telemarketing, entregas a domicílio, lidas do campo, para alcançar a unidade do universo do trabalho.

 Reza a lenda que o complexo de inferioridade, entre nós, nasceu com a derrota da seleção do Brasil para a seleção do Uruguai no recém-inaugurado estádio do Maracanã, em 1950. Subsidiários das desigualdades, que se refestelam com a reatualização cotidiana do escravismo, posam de cultos por incriminar o povo brasileiro pelas cruéis mazelas do país.

Não cansam da piada de que Deus criou o paraíso com uma fauna e uma flora exuberantes, aqui, em compensação um povinho… Convenhamos, são as elites (do atraso) que estão fora do lugar. O mito acoberta os crimes do mercado e responsabiliza os escravizados de ontem e de hoje pelos (nossos) infortúnios, como Jessé Souza tem demonstrado de sobejo em livros.

Getúlio, Jango e Lula sofreram um espúrio lawfare por prospectar uma nação inclusiva internamente e, altiva, externamente. Um legou uma carta testamento denunciando o imperialismo. Outro morreu no exílio, para evitar uma guerra civil. A diferença é que o filho de dona Lindu poderá complementar a sua missão redentora, aprovada com entusiasmo por 87% da população ao deixar o governo após dois mandatos épicos… Xô, vira-latas. Xô!

 *Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Luiz Roberto Alves Rodrigo de Faria Priscila Figueiredo Anderson Alves Esteves Francisco Pereira de Farias Marcelo Módolo Tadeu Valadares André Márcio Neves Soares Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luis Felipe Miguel Dennis Oliveira Vladimir Safatle Luiz Bernardo Pericás Érico Andrade Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Luiz Eduardo Soares João Carlos Loebens Eleutério F. S. Prado Henry Burnett Matheus Silveira de Souza Gerson Almeida Lincoln Secco Ricardo Antunes Ricardo Abramovay Antonio Martins Thomas Piketty João Feres Júnior Osvaldo Coggiola Chico Whitaker Heraldo Campos Jean Marc Von Der Weid Paulo Capel Narvai Leonardo Avritzer Andrew Korybko Tales Ab'Sáber Flávio R. Kothe Vinício Carrilho Martinez Marcus Ianoni Caio Bugiato Plínio de Arruda Sampaio Jr. Luiz Renato Martins José Dirceu Antonino Infranca Ricardo Musse José Geraldo Couto Renato Dagnino Marjorie C. Marona Luiz Werneck Vianna João Sette Whitaker Ferreira Remy José Fontana Henri Acselrad Julian Rodrigues Celso Frederico José Costa Júnior Fábio Konder Comparato Luciano Nascimento Chico Alencar Anselm Jappe Bernardo Ricupero Gilberto Maringoni Daniel Brazil José Machado Moita Neto Juarez Guimarães Eugênio Trivinho Milton Pinheiro Andrés del Río Michael Roberts Marilia Pacheco Fiorillo Slavoj Žižek Ari Marcelo Solon Alexandre Aragão de Albuquerque Ronald León Núñez Alexandre de Lima Castro Tranjan Marcos Aurélio da Silva Eugênio Bucci José Luís Fiori Michel Goulart da Silva Berenice Bento Marcos Silva João Adolfo Hansen Fernando Nogueira da Costa Antônio Sales Rios Neto Bruno Machado Ladislau Dowbor Fernão Pessoa Ramos Carla Teixeira José Raimundo Trindade Leonardo Sacramento João Paulo Ayub Fonseca Daniel Afonso da Silva Celso Favaretto Paulo Nogueira Batista Jr Ronaldo Tadeu de Souza Luís Fernando Vitagliano Francisco de Oliveira Barros Júnior Boaventura de Sousa Santos Sandra Bitencourt Eliziário Andrade Leonardo Boff Valerio Arcary Benicio Viero Schmidt José Micaelson Lacerda Morais Liszt Vieira Mariarosaria Fabris Eduardo Borges Atilio A. Boron Paulo Fernandes Silveira Airton Paschoa Leda Maria Paulani Armando Boito Tarso Genro Jorge Luiz Souto Maior Daniel Costa Jean Pierre Chauvin Alysson Leandro Mascaro Manuel Domingos Neto Dênis de Moraes Lucas Fiaschetti Estevez Gabriel Cohn Paulo Sérgio Pinheiro André Singer Bento Prado Jr. Luiz Marques Everaldo de Oliveira Andrade Francisco Fernandes Ladeira João Carlos Salles Luiz Carlos Bresser-Pereira Ricardo Fabbrini Lorenzo Vitral Elias Jabbour Vanderlei Tenório Michael Löwy Denilson Cordeiro Manchetômetro Alexandre de Freitas Barbosa Sergio Amadeu da Silveira Annateresa Fabris Claudio Katz Afrânio Catani Walnice Nogueira Galvão João Lanari Bo Flávio Aguiar Eleonora Albano Rafael R. Ioris Gilberto Lopes Ronald Rocha Marilena Chauí Kátia Gerab Baggio Paulo Martins Salem Nasser Jorge Branco Maria Rita Kehl Otaviano Helene Yuri Martins-Fontes Mário Maestri Carlos Tautz Igor Felippe Santos Rubens Pinto Lyra Marcelo Guimarães Lima Samuel Kilsztajn

NOVAS PUBLICAÇÕES